Roma, Cidade Aberta
de Roberto Rosselini, Roma, Cittá Aperta, Itália, 1945 (P/B)

A filmografia de Roberto Rossellini é sempre muito discutida e sobretudo evocada, mas bem pouco conhecida no Brasil. Uma parte considerável de sua obra, a que foi destinada às televisões italiana e francesa e que compreende títulos como A Idade do Ferro (1964), A Tomada do Poder Por Luís XIV (1966), A Luta do Homem Por Sua Sobrevivência (1967-69), Sócrates (1970) e Agostinho de Ippona (1972) permanece, na maioria dos casos, inédita. São filmes que pertencem a um período no qual Rossellini decidiu abandonar o esquema tradicional do cinema comercial para se dedicar a um trabalho de natureza pedagógica através da televisão. Esta atitude respondia a uma série de reflexões críticas desenvolvidas por Rossellini acerca da sociedade de consumo e da indústria cultural. Também a fase inicial de sua carreira nos é desconhecida. Não chegaram ao Brasil filmes como Fantasia Sottomarina (1936-37), La Nave Bianca (1941), Un Pilota Ritorna (1941) e L’Uomo Dalla Croce (1942), realizados durante a vigência do regime fascista na Itália, época em que Rossellini chegou a trabalhar em colaboração direta com o filho de Mussolini, Vittorio.

Em 1943, Rossellini ingressou na Resistência, passando a viver na clandestinidade. Dois meses após a liberação da Itália, em 1945, deu início às filmagens de Roma, Cidade Aberta, obra que, incompreendida e recusada pela crítica italiana, foi, um ano depois, aclamada pela crítica francesa e se tornou um dos marcos fundamentais do neo-realismo italiano (juntamente com Ossessione, de Luchino Visconti, Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica e Paisà, do próprio Rossellini). Contudo, Roma, Cidade Aberta e Paisà (1946) extrapolaram o contexto do cinema italiano, influenciando decisivamente o moderno cinema do pós-guerra.

Moralismo, misticismo, incoerência política, traição aos pressupostos estéticos do neo-realismo: inúmeras foram as acusações imputadas, tanto por católicos quanto por comunistas, ao conjunto da obra rosselliniana. Mas se filmes como Roma Cidade Aberta, Stromboli, Alemanha Ano Zero, Viagem à Itália e Francisco, Arauto de Deus mantêm entre si evidentes diferenças no tratamento e na escolha temática, Rossellini não foi, em nenhum deles, menos fiel a si próprio. Há, em cada um desses títulos, a busca por uma representação anti-espetacular do homem em confronto com a realidade; uma realidade que, por sua vez, não quer significar nada, mas simplesmente existe. Ou seja, não importa que estejamos diante de um vulcão em erupção, como em Stromboli, ou até mesmo de um milagre, como em Francisco, Arauto de Deus: o que vem a primeiro plano é sempre o homem diante do mistério.

É por este motivo que Roma, Cidade Aberta, quase sessenta anos após sua realização, continua a ser um dos momentos mais fortes da história do cinema. O impacto estético conseguido por Rossellini, nasce, por um lado, de uma violenta absorção da realidade, e, por outro, de uma construção dramática que foge inteiramente às regras de um cinema narrativo então hegemônico.

As condições de produção que possibilitaram Rossellini filmar Roma, Cidade Aberta foram, segundo seus próprios relatos, as mais impraticáveis. Impulsionadas por cheques sem fundo, emitidos por "mecenas" improvisados em produtores (e que escondiam a própria falência), as filmagens se arrastaram por meses, tendo como "quartel general" um picadeiro desativado sob um bordel, nas proximidades de uma redação de um jornal do exército americano. Filmando numa cidade em ruínas e assumindo dívidas cada vez maiores, Rossellini trabalhou com atores em sua maior parte desconhecidos, com exceção de Anna Magnani, àquela época uma atriz de relativo sucesso no teatro. A falta de recursos incluía até mesmo película virgem. Rossellini a conseguia comprando no mercado negro, em pequenos rolos de 20, 30 ou 50 metros, o que o forçava a rodar planos curtos e a redimensionar constantemente o roteiro. A filmagem em exteriores, por outro lado, não era apenas uma saída para a inexistência dos estúdios: correspondia à natureza fílmica da obra, quase um documentário da paisagem semi-destruída do pós-guerra. Com todas estas pré-condições e obstáculos, Roma, Cidade Aberta resultou no que mais tarde se convencionou chamar de "modelo neo-realista", muito embora, em Rossellini, o neo-realismo fosse antes uma tomada de posição moral do que um "estilo".

Dois grandes temas atravessam Roma, Cidade Aberta: a resistência, entendida não apenas como a luta travada nos domínios da guerra, mas como o próprio sentimento de luta contra toda e qualquer opressão, e o desespero, entendido aqui como toda a forma de desistência da fé no homem, e também como a sua maior perversão: o ódio e a intolerância do nazi-fascismo. Todos os personagens que se movem neste drama representam, ou melhor, pertencem à categoria dos que resistem ou dos que se entregam ao desespero. Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um esquema maniqueísta de entendimento histórico. Roma, Cidade Aberta é um discurso político que toma o partido dos que resistem, mas que também confere substância ao drama do desespero, e o repõe em termos humanísticos.

Não é à tôa que o roteiro impede que o espectador atribua de imediato a este ou aquele personagem o estatuto de "personagem principal". Não há maior ou menor heroísmo entre Manfredi (Marcello Pagliero) e Don Pietro (Aldo Fabrizi). O que os une é um princípio, se quisermos, de coragem humana, que independe das convicções ideológicas (Manfredi é um militante comunista e Don Pietro um padre). Se há um "herói" em "Roma..." ele é simplesmente o próprio ato de resistência.

No lado oposto estão o oficial nazista Bergmann (Harry Feist) e sua assistente Ingrid (Giovanna Galletti). O curioso na caracterização destes personagens é que eles reúnem tudo aquilo que a Rossellini pareceria sintetizar as fraquezas e os vícios do homem: as drogas, a covardia, a homossexualidade etc. Ambos são capazes de atrocidades como a tortura, mas recuam diante da indignação de Don Pietro. São ao mesmo tempo monstros e criaturas frágeis: um sopro poderia derrubá-los, assim como uma única frase racional pode pulverizar qualquer teoria da superioridade das raças. Bergmann e sua assistente representam a fragilidade do fascismo, que justamente por ser frágil precisa apoiar-se no massacre e nas armas, e necessita da fraqueza espiritual e do irracionalismo dos que o admitem. Caso da personagem interpretada por Maria Michi, a cantora Marina, que adere ao nazismo em troca de casacos de pele e de drogas.

Há, por fim, a personagem de Pina, vivida por Anna Magnani, que, a despeito do pouco tempo que toma nas telas, assume uma dimensão bem maior do que se poderia prever. É com Anna Magnani uma das cenas mais impactantes de Roma, Cidade Aberta, justamente a que introduz um outro tema talvez tão importante quanto a resistência e o desespero: a morte. E ela chega de forma brutal, embora não propriamente como tragédia e sim como um fato, numa chave de abordagem que terá reflexos posteriores em um filme como Viver a Vida (Vivre Sa Vie - 1962), de Jean-Luc Godard.

Assim como a morte não constitui material melodramático, Rossellini evita envolver o espectador nas "razões" psicológicas de cada personagem, deixando que eles se movam (surjam e desapareçam) sem que nós tenhamos o domínio de suas individualidades. Há um distanciamento crítico em torno das ações, de forma a deixar em relevo o "lugar" (social, histórico, ideológico) de onde cada personagem fala. Esta busca por um olhar "horizontal" na relação entre os personagens e destes com o espectador é coerente com a própria estrutura narrativa; o filme abre e fecha com planos similares (tomadas gerais da cidade de Roma), criando uma circularidade apenas aparente: se no início são as botas militares dos soldados alemães que marcham sobre a cidade ocupada, no plano final as crianças caminham para um futuro - o ano zero da reconstrução.

Luís Alberto Rocha Melo