O Invisível
Material
Vento, areia e Liliam
Gish são a matéria prima desta obra-prima.
Trata-se de um mito fundador dirigido por um estrangeiro.
Melodrama histórico no velho oeste; espécie
de expressionismo pastoral. O diferencial aqui começa
em Victor Sjöstrom. Hoje mais conhecido como o
protagonista de Morangos Silvestres, Sjöstrom
foi o primeiro grande cineasta do cinema sueco (ele
começou na mesma época que Griffith),
que em meados dos anos 20 foi importado para Hollywood
pela recém fundada MGM. Seus filmes americanos
são os únicos aos quais se tem acesso
relativamente fácil, mas servem como amostra
do seu talento, com destaque particular para O Vento.
Sjöstrom já
havia dirigido Liliam Gish numa popular versão
de A Letra Escarlate um ano antes, portanto foi
natural a MGM ligá-lo a outro dos veículos
melodramáticos que preparava para a atriz. A
trama era bem simples: moça vai ao oeste ao encontro
do irmão, se apaixona pelo homem errado, tem
dificuldades de se adaptar ao dia a dia do lugar, é
obrigada a se casar; e aos poucos aprende a amar o marido
e ser uma boa esposa no oeste. Gish estaria em praticamente
todas as cenas (onde teria muitas oportunidades de sofrer);
as seqüências com a ventania garantiriam
um certo diferencial em relação ao outros
melodramas da temporada (útil considerando que
esta foi uma das ultimas produções "A"
mudas feitas em Hollywood). Não há nada
num primeiro momento que o diferencie muito em relação
a outros veículos da atriz, mas O Vento
acaba se afirmando como o melhor veículo da atriz
(com a possível exceção de um ou
dois filmes de Griffith, onde de qualquer forma ela
era coadjuvante da História).
É uma questão
de brutalidade. Há algo de muito agressivo na
forma como Victor Sjöstrom apresenta seu filme.
Dentro de uma estrutura que é puro mito histórico,
onde um elemento invisível da natureza (o vento)
é figura essencial parece não haver espaço
algum, a priori, para qualquer realismo. Só que
O Vento é dos filmes mais terrenos possíveis:
o mundo como um espaço essencialmente materialista.
Isto está nos cenários, nos figurinos
- onde é visível uma busca pela autenticidade
(o cinema de Sjöstrom tem seus pontos de contato
com o naturalismo de Stroheim); na maneira como cada
um destes elementos é apresentada de forma a
ser sentida da forma mais direta possível pelo
espectador. Mas também em como a saga de Gish
é mostrada. Pensemos na seqüência
de abertura, no trem. Num filme menor, no momento em
que a heroína encontra seu primeiro pretendente
procuraria-se logo de início ressaltar que se
trata de um mau-caráter. Mas as passagens no
trem são filmadas de forma a valorizar a química
de Gish e Montagu Love: se O Vento é todo
contado do ponto de vista daquela mulher, por que deixar
antever quem aquele personagem é e se ela está
apaixonada por ele? Da mesma forma, o futuro marido
será apresentado como um coadjuvante desinteressante.
A vida na fronteira, limite
da civilização, nunca é vendida
como fácil para o espectador. Pelo contrário,
se Victor Sjöstrom encara de alguma forma seu filme
como exercício mitificador é na sua admiração
por aquela personagem. Admiração sentida
na forma que o filme ao mostrá-los afirma: "estas
pessoas viviam mesmo assim". Tudo em O Vento
simplesmente é, inclusive a protagonista. Sjöstrom
a admira, ela sofre, tudo é visto do ponto de
vista dela, mas a excelente atuação de
Liliam Gish nunca pede por simpatia.
Mas também é
impressionante como este filme tão marcado pelo
concreto se dedica a filmar o invisível. Há
o vento e há a sensação de deslocamento
e isolamento da personagem para o qual ele serve de
metáfora. O Vento se dedica com afinco
a mostrar estes elementos na tela: não é
só uma questão de usar máquinas
de areia para a tempestade (apesar da areia criar um
grande espetáculo visual no fim). A terra é
importante, afinal ela é o território
que esta sendo desbravado, e o filme tem enorme prazer
em filmá-la - respira nestes momentos. Tanto
a terra que está sendo pisada quanto a areia
que o vento carrega são essências nesta
construção materialista da fronteira que
O Vento apresenta. Mais bonito do que esta dedicação
à terra, às coisas, a Gish é o
modo como Sjöstrom sucede em filmar o vento. O
cinema sendo uma arte do visível e do plenamente
representável tende a evitar a escolha, como
tema, de objetos que não possa efetivamente mostrar:
como se filma o vento? Victor Sjöstrom sabe. O
vento surge primeiro mais como uma evocação,
um temor da personagem; progredirá, porém,
até ganhar forma material.
O Vento é
um filme para se ver sem música, porque não
importa quão bem escolhida seja a trilha ela
se coloca entre o espectador e a imagem. Porque haverá
o momento onde na sala escura e silenciosa poderá
se ouvir o vento. Seu barulho brotará naturalmente
das imagens da tela. Victor Sjöstrom sucede: o
vento está lá captado. O cinema torna
o invisível material.
Filipe Furtado
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