O Vento
de Victor Sjöstrom, The Wind, EUA, 1928 (PB)

O Invisível Material

Vento, areia e Liliam Gish são a matéria prima desta obra-prima. Trata-se de um mito fundador dirigido por um estrangeiro. Melodrama histórico no velho oeste; espécie de expressionismo pastoral. O diferencial aqui começa em Victor Sjöstrom. Hoje mais conhecido como o protagonista de Morangos Silvestres, Sjöstrom foi o primeiro grande cineasta do cinema sueco (ele começou na mesma época que Griffith), que em meados dos anos 20 foi importado para Hollywood pela recém fundada MGM. Seus filmes americanos são os únicos aos quais se tem acesso relativamente fácil, mas servem como amostra do seu talento, com destaque particular para O Vento.

Sjöstrom já havia dirigido Liliam Gish numa popular versão de A Letra Escarlate um ano antes, portanto foi natural a MGM ligá-lo a outro dos veículos melodramáticos que preparava para a atriz. A trama era bem simples: moça vai ao oeste ao encontro do irmão, se apaixona pelo homem errado, tem dificuldades de se adaptar ao dia a dia do lugar, é obrigada a se casar; e aos poucos aprende a amar o marido e ser uma boa esposa no oeste. Gish estaria em praticamente todas as cenas (onde teria muitas oportunidades de sofrer); as seqüências com a ventania garantiriam um certo diferencial em relação ao outros melodramas da temporada (útil considerando que esta foi uma das ultimas produções "A" mudas feitas em Hollywood). Não há nada num primeiro momento que o diferencie muito em relação a outros veículos da atriz, mas O Vento acaba se afirmando como o melhor veículo da atriz (com a possível exceção de um ou dois filmes de Griffith, onde de qualquer forma ela era coadjuvante da História).

É uma questão de brutalidade. Há algo de muito agressivo na forma como Victor Sjöstrom apresenta seu filme. Dentro de uma estrutura que é puro mito histórico, onde um elemento invisível da natureza (o vento) é figura essencial parece não haver espaço algum, a priori, para qualquer realismo. Só que O Vento é dos filmes mais terrenos possíveis: o mundo como um espaço essencialmente materialista. Isto está nos cenários, nos figurinos - onde é visível uma busca pela autenticidade (o cinema de Sjöstrom tem seus pontos de contato com o naturalismo de Stroheim); na maneira como cada um destes elementos é apresentada de forma a ser sentida da forma mais direta possível pelo espectador. Mas também em como a saga de Gish é mostrada. Pensemos na seqüência de abertura, no trem. Num filme menor, no momento em que a heroína encontra seu primeiro pretendente procuraria-se logo de início ressaltar que se trata de um mau-caráter. Mas as passagens no trem são filmadas de forma a valorizar a química de Gish e Montagu Love: se O Vento é todo contado do ponto de vista daquela mulher, por que deixar antever quem aquele personagem é e se ela está apaixonada por ele? Da mesma forma, o futuro marido será apresentado como um coadjuvante desinteressante.

A vida na fronteira, limite da civilização, nunca é vendida como fácil para o espectador. Pelo contrário, se Victor Sjöstrom encara de alguma forma seu filme como exercício mitificador é na sua admiração por aquela personagem. Admiração sentida na forma que o filme ao mostrá-los afirma: "estas pessoas viviam mesmo assim". Tudo em O Vento simplesmente é, inclusive a protagonista. Sjöstrom a admira, ela sofre, tudo é visto do ponto de vista dela, mas a excelente atuação de Liliam Gish nunca pede por simpatia.

Mas também é impressionante como este filme tão marcado pelo concreto se dedica a filmar o invisível. Há o vento e há a sensação de deslocamento e isolamento da personagem para o qual ele serve de metáfora. O Vento se dedica com afinco a mostrar estes elementos na tela: não é só uma questão de usar máquinas de areia para a tempestade (apesar da areia criar um grande espetáculo visual no fim). A terra é importante, afinal ela é o território que esta sendo desbravado, e o filme tem enorme prazer em filmá-la - respira nestes momentos. Tanto a terra que está sendo pisada quanto a areia que o vento carrega são essências nesta construção materialista da fronteira que O Vento apresenta. Mais bonito do que esta dedicação à terra, às coisas, a Gish é o modo como Sjöstrom sucede em filmar o vento. O cinema sendo uma arte do visível e do plenamente representável tende a evitar a escolha, como tema, de objetos que não possa efetivamente mostrar: como se filma o vento? Victor Sjöstrom sabe. O vento surge primeiro mais como uma evocação, um temor da personagem; progredirá, porém, até ganhar forma material.

O Vento é um filme para se ver sem música, porque não importa quão bem escolhida seja a trilha ela se coloca entre o espectador e a imagem. Porque haverá o momento onde na sala escura e silenciosa poderá se ouvir o vento. Seu barulho brotará naturalmente das imagens da tela. Victor Sjöstrom sucede: o vento está lá captado. O cinema torna o invisível material.

Filipe Furtado