LOUCA PAIXÃO
Paul Verhoeven, Turks Fruit, Holanda, 1973

Estamos relativamente acostumados a ver cineastas que filmam com o coração, com o cérebro, com a libido, com a musculatura estriada. Mas e um cineasta que, a isso tudo, acrescenta os intestinos, os humores mais vulgares e menos comedidos? Esse realizador certamente causa repulsa a alguns, que estremecem de asco ao assistirem à cena de Louca Paixão em que Erik (Rutger Hauer) apanha na privada as fezes de Olga (a linda ruivinha com quem ele casa) com a mão e as estuda, para depois acalmá-la dizendo que o vermelho vem da beterraba que ela comeu no jantar, não é sangue. Escatologia – que me perdoem os mais (ou menos?) sensíveis – é um termo demasiado empobrecedor para essa cena. Em Louca Paixão Verhoeven filmou muito mais do que relações que adicionam ao sentimental o escatológico; trata-se de um amor que extrapola a intimidade mais usual e instaura uma forma ímpar de aproximação humana: o amor mergulhado em todos os produtos do corpo (desde o cheiro e os hormônios até o suor e as fezes). O filme devolve tudo que colhe ao corpo e à condição biológica, o que Erik afirma de duas formas: primeiro com um ramo de flores – por ele mesmo colhidas – que coloca sobre o peito de Olga, e que depois de retiradas deixam só as larvas passeando sobre a pele branca. No segundo momento, através de uma sentença bastante clara: "Quando morrer, seu corpo será doado à ciência, querida", ele diz a Olga. Se desde Welles e Rossellini houve cineastas do corpo, poucos foram (e têm sido) os cineastas das vísceras. A câmera clínica que Sganzerla identificava em seus diretores prediletos, capaz de tatear os corpos e estabelecer uma extraordinária anatomia de superfície, é substituída em Louca Paixão por uma verdadeira câmera cirúrgica, cortante e invasiva.

Entre as flores e as larvas, definem-se a relação de Erik e Olga e o trabalho de direção de Paul Verhoeven. O casal se conhece de forma extravagante (ela lhe dá uma carona e logo param o carro e transam) e atravessa uma montanha russa pontuada, ao início e ao fim, por felicidade (a lua de mel, os momentos de celebração da vida, o leitmotiv com assovios alegrinhos deles passeando de bicicleta pelas ruas) e cólera (o ciúme de Erik, a falta de dinheiro, as brigas, a desavença dele com a sogra). O frenético trajeto é filmado por uma câmera situada dentro do vagão onde o casal se colocou e decidiu ver o mundo passar de cabeça para baixo e pernas para o ar. Uma relação sem centro de gravidade, e um cinema sem sentido de privacidade – o método invasivo de Verhoeven nada mais é que a povoação de uma imagem completamente inocente na sua tendência pornográfica. A imagem filmada por Verhoeven é uma Poliana que tira a roupa em público (a protagonista de Showgirls recebe essa provocação durante o filme), e é também o lúdico de um pôr do sol na praia seguido da exploração escancarada da nudez da atriz em cena. Chamem de machismo, chamem de puberdade durável (do cineasta e do público que ele cativa): o fato é que não há como desaprovar a constante nudez das maravilhosas atrizes com que o diretor trabalha, assim como o filme nos induz a tomar as dores de Erik quando ele pega Olga com outro num restaurante (ou terá sido viagem dele?) e fantasia a morte dela e do amante de forma absolutamente cruel e ressentida. Mas, engana-se o espectador precipitado (principalmente se ele já tiver um histórico de implicância com Verhoeven), é o mesmo Erik quem ficará ao lado de Olga quando um tumor no cérebro dela iniciar uma triste contagem regressiva.

Essa virada de tabuleiro no final é um dos grandes trunfos do filme, pois sua primeira cena havia sido a do assassinato de Olga, sonhado pela mente enraivecida de Erik, e depois tinha acontecido um retorno no tempo para mostrar como eles haviam se conhecido. Podia-se pensar, portanto, caso o filme terminasse exatamente onde começara, que tratava-se apenas da arqueologia de um ódio. Ele, por mais tresloucado que fosse, havia feito de tudo para ficar com Olga e havia a amado incondicionalmente, mas ela optou por abandoná-lo, casar com um americano, morar alguns anos nos EUA, usufruir o conforto de uma vida abastada, ao invés da eterna aventura existencial que era o casamento com Erik. Mas não, o filme não quer julgar e punir sua personagem com uma doença fatal; fazê-la pagar, com uma loucura patológica, pela semiloucura passageira que impingiu a Erik. A cena de reencontro dos dois, quando ele descobre, a um só tempo, que ela está completamente mudada (vestida tal qual uma perua americana, e sem falar coisa com coisa) e que está doente, desmonta qualquer crença de que Erik alimentou um espírito meramente vingativo enquanto esteve longe de Olga. Sua reação ao revê-la é a mais sincera e verossímil possível: um sorriso de estranhamento e ambígua satisfação, a melancolia de quem quer muito reviver uma paixão antiga, mas sabe que está lidando com outra pessoa.

Contrastando com o andamento acelerado e repleto de cenas cômicas da maior parcela do filme, a fase final de Louca Paixão ganha tonalidades tétricas: ela com o cabelo raspado, sendo submetida a tratamento de choque, sem conseguir sair da cama do hospital, recebendo as visitas de Erik. A última cena evolui para uma composição aterradora: após Olga morrer, Erik joga num caminhão de lixo a peruca ruiva com que a presenteara no hospital. O plano final do filme consiste na peruca sendo triturada junto ao monte de lixo (mostrado nojenta e explicitamente, em plano fechado). Olga retorna à condição biológica de uma forma ainda mais crua do que a pressagiada por Erik; seu corpo passa pelas mãos da ciência, e o apetrecho que de alguma forma simboliza sua fase anterior, cheia de beleza e vida, termina no lixo – de objeto de desejo à pura degradação material. Transformar paixão em compaixão? Fiquemos com o que o filme mostra de imediato: um amor louco filmado pelo diretor ideal.


Luiz Carlos Oliveira Jr.