FRAGMENTOS DE UM FILME ESMOLA
Portugal, 1972

Dies Irae, do Réquiem em Ré Menor, K. 626, de Wolfgang Amadeus Mozart. A Ira de Deus. Ou seria a ira de João de Deus, prenúncio do personagem criado por João César Monteiro em Recordações da Casa Amarela dezessete anos após este Fragmentos de Um Filme Esmola, petardo contra a família, uma vez que a identifica como célula fascista na qual se concentram todas as instâncias sociais de repressão?

João César Monteiro parte para o ataque já nos créditos de abertura, ao realizar gesto obsceno diretamente para a câmera. Relação de repulsa com o espectador, mas também de manipulação – já que é o cineasta quem determina o que colocar em cena para ser visto pelo público –, que se confirma ao longo de Fragmentos de Um Filme Esmola através de planos-seqüências que, distintos do encadeamento coerente da narrativa clássica, desafiam e questionam tanto a fruição quanto o entendimento necessários à identificação da platéia com o espetáculo cinematográfico.

Filme esmola, pois feito com cerca de duzentos contos, e fragmentos de filme, visto que cada plano-seqüência não se subordina, mas antes se coordena aos demais: independentes entre si, dotados de sentidos autônomos, é a partir do acúmulo de informações em aparência desconexas que João César Monteiro constrói a unidade de significação em torno da narrativa estilhaçada que caracteriza este primeiro longa-metragem.

Assim, trata-se da crítica niilista à instituição familiar, cuja morte, decretada ao final do filme, é seguida por imagens de arquivo de cidade em chamas durante a Segunda Guerra Mundial, ao som do Dies Irae de Mozart. Apocalíptico, Fragmentos de Um Filme Esmola começa com uma procissão de tanques de batalha: realizado antes da Revolução dos Cravos, em plena vigência do Salazarismo, a associação entre família e regime fascista procede, na medida em que toda e qualquer ditadura política se estrutura sobre a célula fundamental da sociedade, a qual reproduz na escala microscópica das relações afetivas as forças repressoras que organizam e que mantêm a paz social.

No caso de Portugal – e Fragmentos de Um Filme Esmola, mesmo que aconteça quase inteiramente dentro do apartamento familiar, é uma reflexão sobre o país –, a ditadura salazarista, de extrema direita, está calcada na defesa dos valores burgueses, ou seja, da propriedade e da religião. De modo que João César Monteiro volta-se com violência contra eles: na impagável seqüência em que o pai, completamente vagabundo, empoleira-se, com máscara de porco, enquanto o sogro lhe cobra responsabilidade (isto é, que trabalhe para ganhar dinheiro e sustentar a família); no desespero da esposa, que não pode escapar do único foco de luz que ilumina a tela, ao mesmo tempo em que a ladainha (em seu sentido religioso) irônica de Stokhausen é executada; nas cenas de sexo, terno porém aflito, entre o casal protagonista, ou mecânico e exasperante com o homem e a mulher quaisquer (cenas que evidenciam a castração do prazer e do amor perpetrada pela conservadora sociedade portuguesa).

O amor. A privação dele leva ao desenlace trágico da família, com a morte do pai, o qual, no entanto, possui a consciência de que, caso vivesse, perpetuaria, na filha, o mesmo ciclo opressivo que o educou e que o moldou, e do qual não conseguiu fugir. Dessa forma, se há alguma esperança em Fragmentos de Um Filme Esmola, ela se concentra em Catarina, a criança, livre da família capaz de desvirtuá-la, mas ainda atada à imprevisibilidade e às infinitas possibilidades do futuro, como sugere o aterrador apagar e acender da luz no plano em que a voz paterna, no gravador, deseja-lhe todo o amor do mundo. Que fará ela com esta espada, seguirá as trevas ou a luz? Crescerá para integrar a força de trabalho produtiva ao país, em consonância aos ideais de seu avô, ou abarcará a fantasia, presente nos jogos de linguagem que brincava com o pai?

Na destruição da família e do meio social fascista que a engendra, nada resume melhor as intenções de João César Monteiro em Fragmentos de Um Filme Esmola que seu comentário sobre a laranja, cuja casca perfeita e belamente arredondada serve apenas para manter os gomos sob controle.

Paulo Ricardo de Almeida