FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO
Michael Moore, Fahrenheit 9/11, EUA, 2004

É curioso que Fahrenheit 11 de Setembro seja um filme que tem no título uma data. Porque ele foi sim concebido e realizado tendo em mente uma data, mas não exatamente aquela que diz o filme, e sim uma data vindoura: a do dia das próximas eleições presidenciais americanas. Depois desse dia, o filme parece não fazer mais sentido de existir. Um filme... datado. É a triste sina daqueles papeizinhos desagradáveis que transformam as ruas da cidade num chiqueiro em dia eleitoral. E é também o mesmo nome: panfleto. Até aí, nenhum problema. Grandes artistas, entre eles cineastas, souberam usar o formato para imprimir beleza, veemência ou algum valor artístico que ultrapassava o simples valor factual. Podemos falar de Maiacóvski, Vertov, Leni Riefenstahl ou Santiago Álvarez: a obra desses artistas sobreviveu a seu tempo, não porque elas estavam defendendo "os valores certos", mas porque havia nelas algum tipo de criação formal que levava a imagem cinematográfica para algo adiante. Da mesma forma, o cinema só obteve estatuto autêntico de arte independente das outras quando se argumentou que não era necessariamente um "grande tema" que fazia um grande filme.

Pois bem, Fahrenheit 11 de Setembro é sobre um grande tema e, provavelmente até para o maior fã de seu realizador, não propõe nenhuma criação formal. Antes faz o contrário: reduz todo vocabulário possível de cinema documental e investigativo ao repertório espetaculoso e de gosto duvidoso dos programas dominicais de televisão. Há pegadinhas (como sr. Moore convocando os congressistas a mandar seus filhos para a guerra), há videocassetadas (a reportagem sobre a cidadezinha com "riscos de ataque terrorista" por erro administrativo), há cenas de bastidores (sr. Bush tendo seu cabelo ajeitado para entrar ao ar), reportagens com voz over que determinam o sentido das imagens (passim) e montagens de efeito cômico. Até aí nada de novo, ou nada que Michael Moore não tenha feito em Tiros em Columbine de forma muito mais perniciosa e abjeta. Mas, continua sendo surpreendente que o herói cinematográfico dos movimentos de alterglobalização seja um diretor que restringe seu método a reproduzir para o cinema, em chave esquerdista, uma série de procedimentos do chamado entretenimento de constrangimento ou do sensacionalismo telejornalístico. Numa determinada época, parecia que contestar a política, em qualquer nível, era simplesmente uma questão de trabalhar duro (para desancar o discurso oficial), ser sério (para pesar seu material de forma que ele seja o mais esclarecedor possível) e expor seus resultados. Michael Moore é um grande workaholic e expõe seus filmes para o maior público possível, mas jamais será sério. Ele perde o filme, mas não perde a piada.

À guisa de exemplo, vejamos a cena em que George W. Bush, já sabendo do ataque a uma torre do World Trade Center, decide manter sua programação e entra na escola maternal para ler com as crianças o livrinho "Minha ovelha de estimação". Quando é informado sobre o ataque à segunda torre, fica por sete minutos apenas folheando as páginas do livro, sem qualquer reação, diante das crianças e da professora. Moore trabalha bem (conseguiu as imagens), mas o que ele faz com elas é patético: ele retira a duração (só sabemos da passagem do tempo através de um reloginho) e retira o áudio (substitui por comentários dele próprio sobre quais deveriam ser os pensamentos do presidente). Sete minutos sem ação por parte do estadista do país mais rico do mundo num momento de crise, isso já é por si só um material cinematográfico inestimável, com peso e dramaticidade próprias. Bastava colocar uns dois minutinhos intocados da cena que o argumento da estupidez de Bush estaria comprovado – ele lá, lendo sua ovelhinha enquanto o país todo queima em pânico. Mas nesse momento de cinema Bush não poderia ficar como protagonista, não num filme de Moore: é preciso picotar a duração pra montagem ficar "ágil", é preciso cortar o áudio para o filme não perder o "ritmo". Agilidade e ritmo que, claro, não são padrões de sensibilidade e expressão próprios dele, Michael Moore, mas do fluxo televisual informativo que o filme reativamente emula (já não se dizia que não há arte revolucionária sem forma revolucionária? já não se dizia qua uma crítica espetacularizada do espetáculo não é nada de crítica, mas simplesmente espetáculo?).

Passemos a outra cena muito comentada, a da ligação de negócios entre a família Bin Laden e a família Bush. Fica muito claro que a única coisa que nos conduz diretamente ao fio Osama-Bush é o discurso em off, mas não as "provas": estas no máximo aventa a possibilidade da presença em uma festa de família, mas jamais monta ligação entre os parentes empresários da família Bin Laden e o patinho feio terrorista Osama. Numa exposição clara e atenta, o elo jamais seria feito. Mas o que seria matéria cortada em uma reunião séria de pauta (convenhamos também que não deve haver muitas no mundo) transforma-se no filme de Michael Moore em um espetáculo de teoria conspiratória difícil de engolir para qualquer um que não seja militante profissional (ou que queira se deslumbrar pelas "descobertas" do grande profeta Moore). Pode-se contra-argumentar, e com alguma razão, que um panfleto não se propõe ser uma análise acurada e tampouco um veículo não-tendencioso do tema abordado. Mas a questão é menos essa do que outra: para se provar uma tese qualquer (qual seja, a de que a Guerra do Iraque é uma ficção e que Bush não deve ser reeleito, algo com o que o autor dessas linhas subscreve), vale a pena recorrer a todos os expedientes, mesmo que isso signifique certas derrapagens éticas? Isso não deve ser um problema para quem critica pose ao mesmo tempo em que faz pose, para quem utiliza pessoas de forma melodramática para causar adesão "lógica" através de sentimentalismos, ou para quem tenta passar pela montagem de cenas o que não se conseguiu documentalmente.

Resta que, afora todo o espetáculo popolítico (tanto pop quanto popô) ao qual já estamos acostumados desde o bem pior Tiros em Columbine, Fahrenheit 11 de Setembro não se reduz a uma série de gags sobre os Estados Unidos depois da destruição do World Trade Center. Não que seja um "grande avanço", em termos temáticos e metodológicos, longe disso. Michael Moore não tem talento como homem de imagem, não pode ser considerado um bom documentarista e tampouco tem inteligência para além da concatenação publicitária/propagandística de retóricas visuais. Assim, não há verdadeiramente uma evolução metodológica ou estilística de Columbine para este Fahrenheit 9/11, mas simplesmente o fato de que um tema mais concreto se presta melhor ao formato do panfleto (sobre o qual, admitamos, Moore tem o domínio... mesmo que o panfleto enquanto modelo não se preste a muita coisa na maior parte das vezes) do que um amálgama de impressões abstratas que não rima lé com cré. O que faz de Fahrenheit 11 de Setembro um filme mais interessante do que os filmes anteriores de Moore é a captação e instalação de um mal estar incrível no seio da sociedade americana a partir dos ataques sofridos pelo país na data que dá título ao filme.

Um mal que até a maquiagem antenada e cheia de afetações irônicas de Moore deixa transparecer: por alguns instantes, Moore assemelha-se aos deputados que, sem sequer um senador para apoiá-los em suas petições, insistem em discursar, quase chorando de tristeza e raiva, para que haja recontagem nas eleições. Mesmo a aparição de personagens que estão no filme para cativar o choro do espectador parece mais aceitável, uma vez que parece ser a sociedade americana inteira que está engajada nessa espécie de psicoterapia pós-Iraque (mais aceitável, no entanto, não significa "aceitável"): dos soldados que ouvem bandas de metal para destroçar iraquianos à mãe republicana que perdeu o filho na guerra, do ex-combatente ao congressista que revela que nenhum deputado lê tudo que aprova, o filme por raros momentos atinge a qualidade de um divã. Momentos que até parecem aparecer por acaso no filme - até que eles desapareçam no efeito de sensação seguinte.

A evidência de Fahrenheit 11 de Setembro é muito mais importante do que o próprio filme. O filme revela imagens às quais qualquer jornalista/rede televisiva poderia ter acesso mediante simples pesquisa e um pouco de dinheiro para compra de direitos, algo que nos faz supor que há um regime de omissão de informações altamente preocupante para um país que se diz democrático (essa evidência, mas não o filme, questiona profundamente o conceito de democracia numa época mediada por meios massivos de comunicação), mas cujo fluxo de informações em tempos de guerra mais se assemelha a um modelo fascista. Outro dado que aparece graças ao evento-Fahrenheit é que as pessoas simplesmente não lêem ou acompanham nem por alto o que acontece no cenário político. Se assim fosse, o filme de Moore teria certamente menos da metade do impacto que vem tendo (curiosamente, essa evidência faz crer que Michael Moore faz seu filme ser tão frívolo quanto os programas que essas pessoas não-leitoras assistem em seus aparelhos de televisão).

Por fim, e mais tristemente, Fahrenheit 9/11 parece fazer valer a idéia de que um filme de contestação precisa ser moldado da mesma forma que um filme "do sistema" para funcionar na bilheteria e nas cabeças das pessoas, uma espécie de sunday-show cívico com âncoras como Jô Soares ou João Kléber fazendo comentários irônicos sobre questões políticas. O que significa não uma nova partilha dos lugares artísticos, mas apenas uma realocação de lugares(-comuns) preexistentes e já devidamente instalados (tudo em Fahrenheit 11 de Setembro é reacionário, do comentário xenófobo sobre os 7% de participação da Arábia Saudita na economia americana à idéia de que uma vez reinstalado o partido democrata no poder os Estados Unidos poderão ser um país justo novamente).

Filme de contestação, de propaganda política explícita (e louvável), Fahrenheit 11 de Setembro passa longe, no entanto, de ser um filme de resistência. A resistência implica incertezas, implica fugir do campo costumeiro de percepção, implica outras formas de sensibilidade. A resistência engaja a expressão, ao passo que a contestação pura e simples só faz assentar o mesmo sobre o mesmo (como ironia complacente, vamos rir de Bush porque Bush é burro, ho ho ho). Filme de um americano típico feito para americanos típicos (passar esse filme no Brasil com tanto estardalhaço parece tão ridículo quanto a transmissão do Oscar ser o evento cinematográfico mais noticiado de todo ano), Fahrenheit 11 de Setembro tem como propósito principal um fim prático (e desejado por virtualmente o mundo inteiro) ao qual nunca se saberá se serviu (ou na cédula eleitoral constará a pergunta: "O seu voto foi mudado depois de ter assistido ao filme de Michael Moore?"?), mas que deveria ser seu verdadeiro julgamento. Como um filme e apenas um filme, e especialmente um filme visto fora da "área de alcance" do propósito do filme, ainda cremos que o melhor filme político-mas-babaca do ano ainda é O Dia Depois de Amanhã. Será que o futuro presidente Kerry assinará o Protocolo de Kyoto?

Ruy Gardnier