Espelho D'Água - Uma Viagem pelo Rio São Francisco
Marcus Vinicius César, Brasil, 2004

A maior deficiência de Espelho D Água – Uma Viagem no Rio São Francisco é a transparência de suas intenções. Elas são tão explícitas, tão explicitadas, que berram nas imagens. Passamos a ver a proposta anterior ao filme, com todos os seus artifícios dramáticos, com todos os moldes preparados para a confecção, sem vermos o tecido resultante da costura. Vemos sobretudo, portanto, o projeto e as metas. O estreante em longa-metragem Marcus Vinicius César assume o olhar urbano, por meio de um fotógrafo e de sua namorada, na aproximação com um universo sócio-cultural de rincões profundos, que na tradição intelectual brasileira é vinculado à uma brasilidade genuína, pura, sem o contaminado cosmopolitismo da urbanidade. Por meio desses dois personagens "de fora", estrangeiros em ambientes não decifráveis ao primeiro contato, César propõe um confronto e uma conciliação, justamente entre esses dois segmentos do Brasil, o urbano e o arcaico.

No entanto, quando passa do projeto para as imagens, surgem paradoxos, e neles estão o interesse involuntário do filme. Se o personagem do fotógrafo entra em crise quando é acusado por uma ribeirinha de só registrar a beleza, desconectando-a dos problemas diversos a afligir a região, o filme toma o mesmo caminho aparentemente criticado por ele ao seguir o percurso da namorada do protagonista. A jornada dela em busca do parceiro, motivada por um episódio visivelmente colocado apenas para se gerar a viagem pelas entrenhas do ambiente "franciscano", tem forte conotação de turismo pseudo-antropológico. O deslumbramento dela em conhecer uma nova civilização, como se estivesse em um parque temático ou em um sítio arqueológico, é transportado sem filtros para as imagens. E assim vemos uma coleção de situações tratadas na chave do exótico e do folclórico - como a figura de uma canoa falante e de uma mística com dons proféticos. A diluição do Cinema Novo encontra o Sítio do Pica Pau Amarelo.

Essa infiltração dos tipos urbanos em mundos pré-modernos é sempre espinhosa. Mas tomemos um exemplo bem sucedido: A Aventura, de Michelangelo Antonioni, no qual gente da cidade tromba, também durante uma busca por uma desaparecida, com gente de outro contexto. Embora se perceba os contrastes nas episódicas convivências, o enfoque toma como centro os personagens, deixando o ambiente como contexto com o qual interagem. Potencializa-se humanos e ambientes. Em Espelho D´ Água, inverte-se essa relação, com o ambiente à frente dos personagens - afoga-se tudo. Não se enxerga por trás de rituais e dos cenários típicos qualquer vestígio de ambiência e de sintonia entre o espaço geográfico e a dramatização dos acontecimentos. Na maior parte das cenas, esse espaço é só cenário. Outra questão nevrálgica é a falta de autonomia dos personagens. Eles representam o elemento urbano, simbolizam isso, mas não alçam vôo para, nas imagens, nos levar a crer em suas existências. Os diálogos e as interpretações não são atenuantes. E, sendo assim, sobre água para todo o lado.

Cléber Eduardo