Uma entrevista com Jorge Loredo, o criador de Zé Bonitinho

MICROFONE, PLEASE!

Jorge Loredo é o criador de uma das personagens mais fantásticas da televisão brasileira, o irresistível Zé Bonitinho, dono de bordões inesquecíveis, ditos com a voz grave dos conquistadores: "Câmera, close; microfone, please", ou "Garotas do meu Brasil varonil: vou dar a vocês um tostão da minha voz...!". Ostentando seu vasto topete, imensos óculos escuros e um delgado bigodinho, Zé Bonitinho caminha com requebros e trejeitos de galã hollywoodiano filtrado pela luz suburbana. Podemos dizer que a criação de Loredo já era predestinada ao universo cinematográfico antes mesmo de ter sido utilizada genialmente por Rogério Sganzerla em Sem Essa, Aranha (1970) e O Abismu (1978). Zé Bonitinho é herdeiro direto do humor puramente visual da comédia muda e do escracho chanchadístico, ligado à verve humorística dos radioatores.

Jorge Loredo nos recebeu no hall de um hotel na rua Paissandu, Flamengo, onde sempre se hospeda quando está no Rio. Muito simpático e bem-humorado, conversou sobre seus personagens, sobre o cinema, sobre seu início de carreira como ator e sobre os trabalhos realizados com Sganzerla. A entrevista foi realizada por Estevão Garcia, Luís Alberto Rocha Melo e Remier Lion, e contou com uma inesperada e especial participação de Carlão Reichenbach. Sendo assim, publicamos aqui esta entrevista como complemento às pautas dedicadas a Rogério Sganzerla na edição 58 e na edição 61 da Contracampo. (LARM).

Luís Alberto - Como é que você conheceu o Sganzerla?

Jorge Loredo - Olha, eu conheci o Rogério de nome, devido à repercussão daquele filme O Bandido [da Luz Vermelha, 1968]. Quer dizer, eu sempre gostei de cinema, lia as críticas, eu sabia da existência do Rogério, mas não o conhecia pessoalmente. Conhecia o trabalho, as referências em jornais e revistas especializadas... Até que um dia, já tarde da noite, tocaram a campainha da minha casa, em Copacabana. "Quem será a essa hora, né...?" Aí eu olhei assim pelo olho mágico e vi um rapaz com um cabelo imenso... "Quem será esse rapaz...?" Abri a porta, temeroso, e ele foi adentrando e foi se apresentando, "eu sou Fulano, blá-blá-blá, e eu queria conhecê-lo"... e aí expôs o plano dele, que ele me conhecia da televisão, achava a minha figura muito interessante, e queria fazer um filme comigo... e aí foi meu primeiro contato pessoal com ele. Ficou de voltar outro dia, e tal, voltou, explicou que queria fazer um filme, queria usar o personagem... quer dizer, não era especificamente o personagem do Zé Bonitinho, mas ele queria puxar o personagem do Zé Bonitinho pra dentro da ótica do universo do que ele pensava fazer. E assim foi feito, e aí eu comecei a filmar com ele, e nos demos muito bem.

Estevão Garcia - Mas como foi a experiência com o filme?

JL - Olha, pra mim foi bom...

EG - Tiveram ensaios, como foi?

JL - Você deve ter conhecido o Rogério, né...? Ele idealizava uma coisa e durante a filmagem, mudava.

LA - Ele tinha um roteiro, ele te passou um roteiro?

JL - Passou uma série de anotações, e tal, mas não me lembro de ter tido um "livreto"... De repente ele mudava, ele parava e ficava assim pensando... - "não, o negócio é o seguinte..." - e mudava. Tanto é que eu me lembro, que durante uma das filmagens, eu não sei qual foi o filme, nós fomos passando e paramos em frente a uma padaria, ele foi lá e pediu um pedaço de papel de pão e disse assim: "vamos sentar aqui que eu vou mudar essa cena". Aí nós dois escrevemos, sentados ali, diante de um papel de pão, compreendeu? Era um negócio assim que a gente ia fazendo. E assim foi meu conhecimento, eu fui entrando na ótica dele e me adaptando...

LA - Aqueles monólogos, por exemplo, eram escritos por vocês dois?

JL - Bom...praticamente por nós dois, não, quer dizer, eu sugeria alguma coisa, mas a matriz era dele, não era eu quem escrevia. Eu dizia: "Rogério, por que não põe isso assim-assim", agora a matriz, a idéia, a veia, o útero era dele, não é? E aí nos demos bem. E ele sempre dizia "eu vou fazer um outro filme com você, eu quero fazer um filme assim-assim-assim", sempre ele tinha uma idéia ao meu respeito, eu afinal de contas não sei que "filme definitivo" ele queria fazer comigo. Mas ele sempre falava. Ligava sempre pra mim, estava sempre bolando, não sei qual seria o filme que ele gostaria de fazer comigo. (mudando subitamente o tom) Às vezes - pode ser que eu esteja enganado, mas, devido a nossa conversa, eu vou falar mas não sei se é isso, sabe? -, eu às vezes penso se não seria um negócio assim parecido com O Exército de Brancaleone... Sabe, com o Vittorio Gassman... Não sei por quê, da forma como ele me expunha, eu pensava se não seria uma coisa assim desse tipo...

LA - Um personagem assim meio delirante...

JL - Isso, isso, isso, isso...! Isso é o que eu penso - mas não posso te afirmar, eu só desconfio, né? Como eu gosto muito de cinema italiano - também gosto de cinema francês, mas eu, por questão de comicidade sou mais ligado ao cinema italiano -, Vittorio Gassman, Totò, Nino Manfredi, sabe aquele pessoal todo?, a gente conversava muito sobre isso... Cinema francês, também, e tal...

LA - Vocês conversavam muito sobre cinema, então?

JL - Ah, sim! Eu não tinha - entenda bem: embora eu leia muito sobre cinema, eu não tenho um conhecimento concreto, maciço, eu leio, gosto...

EG - Assiste muito, também?

JL - Assisto muito, tá entendendo? E daí...

Nesse momento, chega Remier Lion ao saguão do hotel.

LA (apresentando RL a JL) - Esse é mais um entrevistador, o Remier.

Remier Lion - (cumprimentando JL) - Tudo bem, mestre? Prazer, Remier...

JL - Muito prazer, Jorge, tudo bem?

RL - Sou seu fã.

A entrevista é retomada.

JL - Mas aí... eu leio muito sobre cinema e assisto muito, não é? E gosto muito. Porque também tem uma coisa, na minha juventude, a diversão era cinema e teatro. Quer dizer: você era rapazola, você ia ao cinema e ia ao teatro, quer dizer, não tinha que nem hoje danceteria, não tinha essas coisas todas, então você se concentrava em cinema, em teatro. E era interessante, quando eu era garoto, vocês não devem ter visto isso, mas devem ter ouvido falar, o cinema não tinha dois projetores, quer dizer, passava o filme, quando acabava o rolo, acendia a luz, aí baleiro-bala, vendia a bala o baleiro, cocada, aquele negócio todo, até botar o segundo rolo, e começava tudo de novo. Geralmente o filme tinha três, quatro rolos. E outra coisa interessante também, é que a sessão de cinema começava da seguinte maneira: primeiro vinha o jornal cinematográfico. Toda projeção tinha sempre uma comedinha de cinco, dez minutos, com Chaplin, com Buster Keaton, com o Gordo e o Magro, com aqueles comediantes da época, né?

RL - Mack Sennet, o senhor gostava?

JL - Mack Sennet... ele dirigia o...

RL - ... ele tinha uma série, Bathing Beauties...

JL - Isso, isso, isso, isso...! Tinha um outro comediante que eu gostava muito e que usava um chapéu de palha chamado Charley Chase... Eu sei que sempre começava a sessão com aquela comedinhas curtas, né? Depois é que vinham os dramas, aquele negócio, aquelas coisas todas... Era um barato, cinema, antigamente... E os encontros dos namorados, eram aonde? - no cinema, né? Você ia ao cinema assistir a um filme como se fosse a um ritual, compreende? Como se fosse uma missa. E tinham revistas especializadas naquela época, vocês já devem ter ouvido falar, A Cena Muda...

RL - Cinearte...

JL - ...Cinearte! E tinha um jornal que era escrito por um jornalista que o nome dele era Celestino Silveira [Cine-Rádio Jornal, que circulou entre os anos 1938 e 1942], era um jornal sobre cinema, e o formato dele era mais ou menos igual ao do Pasquim, hoje...

LA - Era um tablóide.

JL - É, um tablóide, é... Nós fomos nos formando com essa visão cinematográfica, mais presa à imagem, e talvez meus personagens, que são todos movimentados, não só o Zé Bonitinho mas os outros, que não têm a projeção do Zé Bonitinho, talvez seja devido à minha infância e juventude cinematográfica, assistindo muito cinema. A gente assistia muito cinema, muito teatro e muito circo. O negócio era esse... E tinham os galãs da época, vocês devem se lembrar, o cinema francês... (incorporando naturalmente a entonação da voz de Zé Bonitinho) Jean Gabin... aquelas atrizes, Michelle Morgan... (de volta ao tom anterior) Engraçado, o cinema americano não era tão curtido, a gente não curtia tanto o cinema americano... Na minha juventude a gente curtia mais o cinema francês e cinema italiano.

RL - Depois o cinema americano tomou conta do mercado, né...?

JL - É, de uma maneira que eu considero - não sei se eu vou ser feliz na minha expressão - de uma maneira que eu considero ilícita, como eles sempre são: ilícitos. Não sei se eu estou certo, não sou o dono da verdade, mas eu quero crer que o cinema francês dominava muito a nossa juventude, o cinema italiano, com aquelas comédias e com aqueles dramas, e começou a entrar o cinema mexicano, e alguns filmes argentinos e tal - e o cinema brasileiro começou a colocar as garras de fora, quer dizer, através da Vera Cruz, através da Maristela...

LA - Da Atlântida...

JL - ...da Atlântida... Não sei se vocês sabiam, a Atlântida tinha um sistema de vender cotas, ações, era muito comum... Eu tinha ações da Atlântida. Eu trabalhava num banco, chegava um camarada - "você quer comprar cupons da Atlântida?"- eu comprava aquilo; no final de ano saía um dividendo, um negócio, tá entendendo? E o cinema brasileiro começou, através da Atlântida, da Maristela, da Vera Cruz, a crescer, começou a se importar diretores italianos, e voltou aquele diretor brasileiro...

EG - ...Alberto Cavalcanti?...

JL - ...Cavalcanti, e tal. Aí quero crer - entenda bem, não estou aqui dedurando nem acusando ninguém - vocês devem ter ouvido falar também, que aquela cantora, Gilda de Abreu, sem nunca ter saído do Brasil, ela realizou produções interessantes que chegaram a ser exibidas na Argentina, chegaram a Portugal, como Bonequinha de Seda, O Ébrio, não é? Aí o cinema brasileiro começou a se impor. Tanto era que na Cinelândia, não essa Cinelândia de hoje, aos domingos era comum, nós rapazes, irmos pra Cinelandia pra ver os atores daquela época, que eles faziam "ponto" ali. E as moças iam desfilar ali e tinha lá também Anselmo Duarte, Cyl Farney, José Lewgoy... Veja bem, essa é a minha versão da história... Aí surgiu aquele filme O Cangaceiro, que estourou na Europa, e aí o negócio ficou preto pro nosso lado... Aí apareceu um tal Embaixador de Hollywood, que vocês devem saber o nome mas eu não vou citar pra não ter implicações jurídicas... (risos)

EG, LA e RL (em coro) - Harry Stone.

JL - Bom... vocês é que estão dizendo...

Risos.

JL - Ele chegou aqui e escangalhou com a indústria cinematográfica, faliu a Maristela, faliu a Vera Cruz, acabou a Atlântida e aí vieram os filmes americanos, porque antigamente os filmes americanos que dominavam aqui eram somente os filmes de caubói, aqueles filmes de "bang bang"... Um ou outro filme americano de vez em quando que aparecia aí, tipo esses filmes bíblicos, esses troços, né? E aí nós caímos do cavalo com esse senhor Embaixador de Hollywood. Aí levaram a Carmen Miranda pra lá e nós ficamos sem pai e sem mãe e aí a verdade é essa, compreendeu?, perdemos todas as nossas referências...Aqueles que escrevem sobre o presidente americano Roosevelt, que tinha aquela política do New Deal, aquelas coisas todas, disseram que os puristas americanos reclamavam que o Roosevelt aplicava muito em cinema, dava muita verba pro cinema. Aí o Roosevelt respondeu da seguinte maneira: "Eu aplico dinheiro no cinema americano porque aonde chegar os nossos filmes chegarão os nossos produtos". Taí o chiclete, etc, etc, etc... Eu não sei não, mas eu acho que seria muito interessante se nós, se as nossas instituições aplicassem bastante no nosso cinema, porque o nosso cinema tem muita coisa pra apresentar. Nós precisamos des-glo-ba-li-zar o visual brasileiro e quando eu digo desglobalizar é tirar a TV Globo da jogada - não no sentido de ser contra a TV Globo, não é nada disso, não, mas é para que o brasileiro tenha OUTRA visão, compreende?

RL - O problema que você está falando do cinema americano é o de quebrar os monopólios, né?, não é que os caras deixem de existir, mas que haja um espaço...

JL - ...para outros. Que não existam só eles. E o perigo é que façam a tua cabeça. Vocês devem lembrar, e se vocês não se lembram devem ter ouvido falar, a companhia cinematográfica alemã, no tempo de Hitler, chamava-se UFA! Só se fazia o que ele queria. Você vê que a Marlene Dietrich foi embora, aquelas coisas todas... É isso que eu estou falando: quebrar os monopólios e dar outras oportunidades, compreendeu? Eu que viajei muito e viajo ainda como artista, o Brasil tem muita coisa pra apresentar, você vê a garotada nova dando um show de cinema aí, rapaz... Você vê cada coisa que você nem acredita, tá entendendo? Nós temos que abrir espaços de cinema, de teatro... Televisão é informação e educação. Você vê que toda vez que se coloca um espetáculo na televisão, não existe espetáculo, né...? Eu penso assim, mas pode ser que eu esteja errado. Eu gosto muito de cinema. Participei pouco de cinema, mas gosto muito.

RL - Eu cheguei aqui e peguei o bonde andando, eu não sei o quanto que você já conversou com eles, mas a gente está muito curioso pra saber justamente a sua participação no cinema brasileiro. Você se tornou ator não por fazer cinema...

JL - Não foi o cinema, eu fui chamado pra fazer cinema devido a minha atuação na televisão e no teatro. Eu nunca tive grandes atuações no cinema. Eu me projetei no cinema, relativamente, devido ao Rogério. Existe lá em São Paulo um festival da MTV, que eles entregam troféu ao melhor-isso, ao melhor-aquilo. E eu fui convidado a entregar troféu. Eu estava na TV Record, nessa época, num projeto que nós tínhamos inaugurado de cooperativa de artistas, foi a primeira experiência de cooperativa em televisão. E eu disse assim: "por que é que esses caras me convidaram pra eu entregar prêmio MTV, uma emissora de jovens... O que é que eu vou fazer lá? Não tem nada a ver comigo..." Mas eu fui. E eu fui recebido pela garotada da MTV como se eu fosse um herói. E eu fiquei sem jeito, fiquei constrangido, porque eu não sabia como lidar, né? Eles sabiam tudo o que eu fazia, sabiam os meus ditados, e me chamaram de "figura de história-em-quadrinhos". Quando eu estou descendo - eu estava no camarim - pra me posicionar, apresentar, entregar o prêmio, chega um camarada, um desses assessores, um desses rapazes, coordenadores, e diz assim: "o Pedro Almodóvar quer te conhecer". Eu não conhecia o Almodóvar, mas eu quero crer que o Almodóvar despertou pra minha figura, porque a figura do Zé Bonitinho é exótica! Foi daí que o Rogério Sganzerla partiu, do exotismo do personagem.

RL - O que é incrível é que eu não vejo o personagem do Zé Bonitinho como exótico...

EG - É, eu também vejo ele como um personagem bem brasileiro...

RL - A gente vê o Zé Bonitinho e lembra imediatamente de quantos "Zé Bonitinhos" a gente conhece...

JL - Aaaah, sim, exatamente, mas foi bem isso, eu copiei um colega meu, de juventude...

RL - Conta sobre a criação do Zé Bonitinho...

JL - Olha, você vê que o Zé Bonintinho tem vários ingredientes, né? Eu devia ter os meus vinte e poucos anos. Você sabe que toda geração tem um point, né? O point da minha geração era a Praça Saens Peña. Tinham aqueles cinemas, não sei quantos cinemas, cinema América, cinema Olinda era um Maracanã, você não queira saber o tamanho do cinema Olinda...! E ficava assim, ó, cheio... Era um Maracanã, era um estádio. Tinha o América, o Olinda, o Carioca, o Metro-Tijuca. Então, aos sábados e domingos nós íamos à Praça Saens Peña. Ficávamos ali rodopiando, saía dos cinemas, tinha o Café Palheta, tinha uma confeitaria do lado, esqueço o nome da confeitaria, a gente ficava lá tomando um sorvete, aquelas coisas todas. E a garotada fazia "ponto" ali pra ver as garotas. E tinha um amigo meu que o apelido dele era Perigote. O nome dele era Jarbas e o apelido era O Perigote. O Jarbas ERA o Zé Bonitinho, aquele topete...

EG - O bigodinho...

JL - ...aquele bigodinho... Antigamente, nos botequins, nas confeitarias, tinham sempre uns espelhos. Ele parava, tirava um pentinho e fazia assim no bigode... as garotas passavam e ele cantava um pedaço de tango (cantarola com a voz típica de Zé Bonitinho), passava a mão no cabelo, assim... Você vendo isso anos, e anos, e anos, você vai absorvendo, e eu fui absorvendo aquilo. E quando eu ia em festinhas de apartamento eu dizia: "ah, eu vou imitar o Jarbas!" Aí eu imitiva e todo mundo começava a rir, tá entendendo? Até que um dia, eu já estava na televisão, já fazia teatro, eu fazia nessa época o Mendigo e outros personagens... Aí o Chico Anysio virou-se e disse assim: "Loredo, eu queria que você trabalhasse no meu programa" - programa Noites Cariocas, na TV Rio, na época, 1960, por aí - aí eu disse: "eu tenho um tipo assim-assim-assim, que eu gostaria de fazer..." Aí o Chico: "Pô, genial, vamos fazer." Aí eu fiz...! Quem fez o primeiro script do Zé Bonitinho foi o Chico Anysio. Ele escreveu, fez eu entrar em cena, mas não existia pente, não existia óculos, não existia nada disso...

EG - A roupa também era diferente?

JL - A roupa era diferente, roupa comum, um jaquetão comum. Conforme o personagem foi se desenvolvendo, eu cheguei a conclusão de que o Zé Bonitinho era um exibicionista. Quer dizer, porque você sabe que todo homem que diz que é muito potente no fundo é um impotente, né? Todo homem que faz muito barulho no fim não é nada. Aí eu vi um filme do Disney e vi um personagem com um óculos daquele tamanho, aí eu passei a usar pente, óculos grandes, aquele negócio todo, e foi pegando, pegando, pegando, e está aí até hoje. Agora: a mandioca que eu uso, todo mundo pensa que eu uso como símbolo sexual... Não. A mandioca é pelo seguinte: o meu filho mais velho está com 33 ou 34 anos. Ele só comia hambúrguer, batata-frita, e cedo-cedo ele ficou com problema de colesterol. Eu o levei ao médico e o médico disse: "engraçado, seu pai é bem mais velho do que você e não tem problema de colesterol. Que é que você come?" Meu filho respondeu: "hambúrguer, hambúrguer, hambúrguer, salsicha", aquelas coisas. "E teu pai, que é que teu pai come?" "Ah, papai come a comida da vovó". Eu ainda tenho mãe, por incrível que pareça... "Qual é a comida da vovó?" "Comida da vovó é aipim, batata doce..." Aí um dia eu fazendo o Zé Bonitinho, a garota virou pra mim e disse assim: "Qual a razão da sua beleza?" (com a voz de Zé Bonitinho) "Eu como mandioca...!" (risos) Quer dizer, a mandioca que eu uso é um protesto contra o hambúrguer. Eu agora quero ver se falo em outras coisas brasileiras, pra despertar a garotada, já que eu descobri agora que eu sou o ídolo das crianças, eu vou falar em carambola, abíu, essas coisas que eles não conheceram, vou partir por aí...

RL - Sabe, ô... eu já ia te chamar de Zé...

JL - Não tem nenhum problema...

RL - Não sei se você se liga nisso, mas tem um personagem hoje que é o Johnny Bravo, que é exatamente essa questão que você explicou do Zé Bonitinho: ele é visualmente o protótipo do macho, tem o topete, ele é vaidoso, passa o tempo todo se olhando no espelho, mas sempre que a masculinidade dele é posta em cheque...

JL - ...ele cai fora...

RL - ... ele é um fracasso! (risos)

JL - Pô, eu vou começar a ler... ainda existe isso?

RL - Existe, é um sucesso! Johnny Bravo, esse nome é genial, né?

JL - Mas de que emissora?

RL - É no Cartoon Network, 44 da Net.

JL - E tem revistinha, também, não?

LA - Tem sim, eu já vi uma revistinha...

JL - É John...?

RL, EG, LA - Johnny Bravo...

JL - Johnny Bravo, eu vou ler, eu vou ler...

RL - E como é que você começou a carreira como ator?

JL - Por incrível que pareça eu comecei a carreira de ator num teste vocacional. Eu, quando garoto novo, jogando futebol, essas coisas todas, eu recebi um pontapé na minha perna direita, que se transformou numa doença seríssima, chamada osteomielite, que me perseguiu até os 46 anos de idade. E eu saía e entrava em hospital como quem entra e sai do supermercado. E aquilo me deixou muito... eu não era um garoto comum, compreende? E pra eu me divertir me levavam muito a circo, a teatro, eu ia muito a cinema, eu passei a viver uma vida muito interior, muito minha mesmo, né? Aí eu lia muito, aquelas coisas todas. E eu não sabia o que fazer, o que eu ia seguir, não sabia nada disso. Sabia que eu gostava de teatro, mas não sabia que eu chegaria um dia a ser ator, né? Aí eu já estava melhor, passei a andar de bengala, e vim para o Rio, porque eu sou de um subúrbio daqui chamado Campo Grande. Vim trabalhar num banco, naquele tempo se chamava Banco Holandês Unido, eu fiz um concurso, passei, e tal. Mas eu tinha muitas dores de estômago, era um cara insatisfeito pra burro, e eu tinha uma fraqueza pulmonar, fui internado num sanatório, quer dizer: eu estava naquela situação que eu não sabia o que queria, eu queria alcançar alguma coisa, tá entendendo? E aquela ansiedade da juventude, vocês devem ter passado por isso: "o que é que eu vou fazer, me caso, não me caso, vou ser bancário, vou ser militar, vou ser funcionário público...?" E eu fui internado num sanatório, com fraqueza pulmonar...

EG - Você tinha quantos anos, mais ou menos, nessa época?

JL - Eu devia ter mais ou menos uns 19, 20, por aí... Você, quando entrava no sanatório, fazia uma triagem, você era primeiramente recebido por uma assistente social e por um psicólogo. E na minha entrevista, eles devem ter sentido alguma coisa, e disseram assim: "olha, aqui, lá no terceiro andar, tem uma sala que tem uma estaçãozinha de rádio; aquela estação de rádio está fechada e você vai tomar conta daquilo". Cheguei lá, me deram a chave, eu abri, era uma sala com uma porção de disco velho, um microfone... Era uma estaçãozinha de rádio do local, que dava anúncio de alto-falante, pegava 3 k adiante, e tal. Bom, eu sei que eu me entusiasmei por aquilo, ajeitei a rádio, botei os discos... Aí me disseram que eu tinha uma boa voz para locutor, e fiquei no sanatório um ano. E ali eu escrevi sketchs, tudo o que eu vi, ouvia no rádio e lia, eu fazia e passei a ser diretor de teatro sem saber nada de teatro, aquela coisa toda. Quando eu saí do sanatório, o psicólogo virou pra mim e disse: "olha, você agora vai voltar a trabalhar, já está curado, você tem que fazer um teste vocacional." Aí eu fui, me lembro até hoje, rapaz, ali na Rua da Candelária número 9: ISOP, Instituto de Seleção e de Orientação Profissional. Cheguei lá e fiz uma porção de teste, durante vários dias. Aí veio lá o negócio, e o camarada me anunciou: "olha, você tem tendência para magistério, diplomacia, pesquisador, direito e atividades exibicionistas!"... (risos) Aí eu disse assim "doutor, 'atividades exibicionistas', o que vem a ser isso...?" E o doutor: "teatro, cinema..." E eu digo: "como é que eu faço?" E ele: "procura um curso de teatro e faça um curso de teatro e um vestibular pra direito". E eu sou advogado, me formei em Direito aqui na Faculdade do Catete que hoje é a UERJ, antigamente era Universidade do Estado da Guanabara. Aí, trabalhando no banco, fiz vestibular pra Direito e passei. Embora eu fosse muito a teatro, não tinha noção de curso de teatro, naquela época não tinha muitos cursos de teatro. Aí, eu abrindo o jornal, leio: "HOJE: seleção de candidatos ao Teatro do Estudante de Paschoal Carlos Magno". Eu vou pra lá...! Rapaz, eu chegando lá tinha uma fila, que você não calcula que fila imensa...! Como seria o Tablado, hoje, né? Eu nem sabia da importância do curso de teatro. Eu sei que eu cheguei lá e a dona perguntou nome, aquelas coisas todas, e qual o gênero que eu iria representar. Eu não sabia gênero nenhum e disse: comédia. Quando eu falei "comédia" foi como se eu tivesse dito um palavrão, todo mundo me olhou assim pra mim... O fato é que quando eu fiz o teste, eu era o único a fazer um monólogo de comédia, porque todo mundo queria representar o Shakespeare, aquelas coisas dramáticas, e tal, e eu fiz um quadro de comédia. Ninguém mais fazia comédia ali, só eu. E com isso gostaram da minha apresentação, e eu acabei selecionado. E foi assim meu começo, com Paschoal Carlos Magno.

LA - O primeiro filme que você fez foi Um Caso de Polícia, não é?

JL - Um Caso de Polícia...? Não, não me lembro desse...

RL - Foi um filme dirigido pela Carla Civelli...

EG - De 1959...

JL - Não, eu fiz Sai Dessa, Recruta...

RL - Que você se lembre, então, o primeiro filme que você fez foi Sai Dessa Recruta...

JL - É, desse eu me lembro. É que a gente fazia muita coisa, né...?

RL - E como era Sai Dessa, Recruta?

JL - Foi com Ankito, e eu fazia um recruta doido, que ficava preso e tinha uns delírios, dentro da prisão... Era mais ou menos por aí, se eu não me engano...

RL - Na nossa filmografia que a gente levantou, a gente descobriu um título que a gente tem grande curiosidade, também, que é um drama, eu imagino, que é Testemunhas Não Condenam, você lembra desse filme...?

LA - Da Zélia Costa...

RL - Acho que é produção do Duílio Mastroianni...

LA - Não, é do Gino...

RL - ... Gino Palmisani...

EG - Roteiro do Manoel da Nóbrega...

RL - Você se lembra do Gino Palmisani?

JL - De nome... A gente faz tanta coisa, que você vai lá pra mil-novecentos-e-não-sei-o-quê-lá... Você esquece, né?

RL - Claro, imagina...!

LA - Mas Sai Dessa, Recruta foi um filme que marcou, né?

JL - Ah, sim, marcou.

EG - Como é que foi a experiência com o Ankito?

JL - Ah, foi ótima, o Ankito é um excelente comediante, ele marcou época no cinema brasileiro, né? A direção era do Hélio Barroso.

RL - E aquele filme que você fez com o Massaini, você lembra né?, o do submarino...

JL - Ah, sim!

RL - Aquele que você ficava com umas garotas, desse você se lembra?

JL - Sei, sei, desse eu me lembro, sim, claro!

LA - Com Agildo Ribeiro...

JL - Sim, o Agildo Ribeiro, direção do Sanin Cherques, se chamava A Espiã Que Entrou em Fria! Era um filme engraçado...

RL - Os filmes que te marcaram mesmo foram os do Rogério, né...?

JL - É que eu me dava muito bem com o Rogério, porque eu sou meio delirante, ele também, então... Nós nos demos maravilhosamente bem. Eu me lembro de uma passagem, eu não sei qual foi o filme, que foi o seguinte: nós filmamos ali, num teatro de bolso, ali na Praça General Osório, em Ipanema, nós fomos filmar lá no subterrâneo. Aí vinha eu, um personagem do filme, não sei se foi o Abismu, ou o Sem Essa, Aranha, não me lembro, eu vinha delirando pelos corredores, meio Vittorio Gassman, sabe?, "oh, não-sei-o-quê", e tal... Aí eu tinha que passar, e a atriz me via e ficava nua, me agarrava, aquelas coisas todas, na hora que a mulher veio pra cima de mim eu fiquei todo... me afastei, disse... pô, esse negócio de mulher nua me agarrando e me beijando não dá, comigo, minha formação não é essa...! Porque tem esse negócio de formação, hoje em dia o cara anda nu, na rua, mas na minha geração não era assim, era meio taliban, quer dizer... (risos) você se vestia até aqui...

LA - ...tinha burka...

JL - ...Só faltava ter isso! Você pra tirar a roupa na frente da mulher, ou a mulher pra tirar a roupa, tinha que ser tudo no escuro, quer dizer... Não dava pra eu fazer aquilo. Eu disse pro Rogério: "Você me desculpe, mas isso aí eu não vou fazer, eu vou ficar aterrorizado..." Aí ele: "Então tá bem, vamos cortar isso. Você faz o seguinte: você segue o caminho - aí virou pro câmera e disse assim: - aí o Loredo entra, parte e você desfoca!" Aí eu fiz, mas já tava armado o negócio: quando eu entro a mulher sai nua e me abraça! Aí eu fiquei apavorado. Aí o Rogério pro fotógrafo: "na cara do Loredo, na cara do Loredo! Pega ali, pega!" (risos) Nem sei se isso ficou... E aí ele me filmou apavorado e a mulher nua em cima de mim, rapaz...!

LA - Isso deve ser no Sem Essa, Aranha...

JL - É deve ser. Mas o Rogério tinha essas coisas, ele fingia que não ia fazer, daqui a pouco você vê e a câmera estava em cima de você... Mas é isso, né? Cinema é emoção... Por isso é que as produções independentes estão estourando, né? Estão quebrando aquele negócio americano de...

RL -... de controle, né...?

JL - ...de controle! A mesma coisa do "ator de take", né? Hoje em dia a maior parte dos nossos atores são "de take", né? (encenando) "- Diga não! - Téc! - Agora dia sim! - Tac! - Faz cara de mau! - Oh! - Agora junta tudo e..."

Nesse momento vem atravessando o hall do hotel, carregando algumas malas, o cineasta Carlos Reichenbach. Os entrevistadores cumprimentam Carlão que, só então, se dá conta de que o entrevistado é Jorge Loredo, ou melhor, Zé Bonitinho.

Carlos Reichenbach (arregalando os olhos) - Oh, grande mestre!!! Tudo bem?

JL - Tudo bom?

CR (subitamente) - Quer fazer um filme comigo?

JL (surpreso) - Hein?

CR - Quer fazer um filme comigo? Quer?

JL (rindo, desnorteado) - Bom, depende, não é...?

CR - A gente tem que fazer um filme que é o Lucineide, a Falsa Loura, temos que fazer esse filme!

JL - É, né? É bom...!

CR - Sou fã incondicional, seu!

JL (rindo) - Muito obrigado! Tá legal!

Carlão se despede de todos, retirando-se para fazer o check-in.

LA - Ô Jorge, uma coisa sobre a qual eu tenho curiosidade: como é que foi a sua interação com a Helena Ignez e com a Maria Gladys, como é que era interagir com elas?

JL - Olha... Pra mim foi genial, porque a Helena Ignez e principalmente a Maria Gladys... sei lá, parece que a gente já tinha - eu não sei se isso tudo surgiu da batuta do Rogério -, eu sei que era uma turma muito unida, muito afinada, muito integrada, não sei se era por causa do Rogério... Eu não tive problema nenhum, me dei maravilhosamente bem! Eu quero crer que o Rogério tinha essa capacidade de juntar as pessoas.

EG - No Sem Essa, Aranha isso fica bem claro, essa energia entre a equipe e os atores...

JL - Exato, exatamente isso.

RL - Fala sério aqui pra gente, quando você se aproximou lá da produção do Sem Essa, Aranha, e conheceu o Rogério, quando você foi no primeiro dia de produção e viu aquele caos, você não falou "meu Deus, que roubada!!! O que é que eu estou fazendo aqui???" (risos)

JL - Bom, claro que eu pensei nisso, né...? Mas, entenda bem, eu senti que toda a desorganização era uma grande organização...! No princípio eu fiquei assim, mas depois eu entrei na deles e me acostumei e achei genial porque o negócio é esse, pô: o ator é um criador, o diretor é um criador... O Fellini, que eu adoro, tem um pensamento que é o seguinte: "comediante não se dirige, se policia." Isso é de Fellini. É o mal de determinadas emissoras de televisão, de querer dirigir o comediante. O comediante é um criador, ele não pode ser dirigido, ele pode ser policiado e sugerido, entendeu? Mas aí um camarada chega e diz (engrossa a voz): "bom, negócio seguinte: essa coisa de Zé Bonitinho tá velha! Nós vamos fazer o seguinte: aqui a gente pega, e..." E o cara não sabe que ali atrás tem uma história...! É a mesma coisa que você chegar perto de um Chico Anysio e dizer: "Ô Chico, o negócio é o seguinte, você vai fazer isso-assim-assado..." Pô, o cara não sabe da história, não sabe do contexto...! Agora, o que está me surpreendendo é que uma garotada nova, quer dizer, estou dizendo essa garotada partindo de vocês, não estou aqui querendo elogiar vocês, eles estão pesquisando, eles estão tentando descobrir, e a partir de uma outra linguagem, quer dizer, de uma linguagem de cooperação, de querer aprender, e não uma linguagem de querer te repreender porque você é mais velho, tá entendendo? Essa geração é a geração que não nos despreza, aliás nos admira, e quer aprender. Nós já não somos mais párias, não é?

LA - Você falou que você tinha outros personagens também que não o Zé Bonitinho. Você poderia falar um pouco deles?

JL - Posso. Dos personagens que eu tenho, o Zé Bonitinho é o que estourou, né?, mas o personagem que me projetou na televisão não foi o Zé Bonitinho: foi o Mendigo, o Mendigo Filósofo, que era do Manoel de Nóbrega. Era um mendigo aristocrata, quer dizer, ele se vestia como um inglês; todo rasgado, mas usava monóculo, luvas, uma camisa que só vinha até aqui, quer dizer... Eu tirei mais ou menos o figurino de um filme que eu vi com o Charles Laughton, em que ele fazia um mendigo aristocrata que entrava em um restaurante, pedia o cardápio e conhecia tudo quanto era vinho... E diziam: "Mas esse cara todo rasgado!" Aí o maître: "Não, ele deve ser um milionário excêntrico...!" E o mendigo sabia todo tipo de vinho, todo tipo de carne, chamava o maître, o cozinheiro... No fim, ele pediu a conta. O maître traz a conta e o mendigo levanta a casaca e diz: "Agora o senhor pode me botar pra fora porque eu não tenho dinheiro pra pagar", quer dizer, eu achei aquilo genial e quando o Nóbrega me chamou pra fazer esse mendigo eu segui as mesmas características do Charles Laughton. E aí o Mendigo estourou!

Jorge Loredo começa a encenar, de improviso, fazendo duas vozes:

JL - O Mendigo chegava e o Nóbrega cumprimentava:

"NÓBREGA: Como vai?

MENDIGO: (com a voz grave de um lorde inglês) Como vai, meu nobre colega? Estou bem, mas cansado, casadíssimo...!

NÓBREGA: Ué, mas cansado de quê?

MENDIGO: Estou chegando de Brasília; eu não estou satisfeito com o atual presidente... Vovô, quando me deu o Brasil de presente...

NÓBREGA: Quem é seu avô??

MENDIGO: Pedro Álvares Cabral! (risos) Vôvô, quando me deu o Brasil de presente, eu disse 'vovô, eu não quero isso', e tal... Aí eu fui pra Suíça, pr'aquele meu castelo, mas toda vez que eu venho aqui eu vejo essa coisa... Como é o nome desse presidente atual?

NÓBREGA: É o Lula.

MENDIGO: Eu quero falar com esse menino. Porque se ele me aborrecer muito eu vou ter que assumir pelo menos interinamente a Presidência..." (risos).

Então era assim, ele falava com o Papa. Hoje, por exemplo, ele diria um negócio assim:

"PERGUNTA: O que é que o senhor acha que devemos fazer pra ter a paz no mundo?

(interrompendo para uma reflexão) Aliás, esse texto eu comecei a escrever porque há um desejo aí de que esse mendigo volte, né? Então, hoje seria o seguinte. Ele responderia assim (com tom grave):

MENDIGO: A paz, para voltar ao mundo? Eu sou contra a demissão, sou contra demitir empregados, mas eu vou ter de demitir... Vou ter que demitir o Bush, vou ter que demitir o Sharon... (risos) Vou demitir e vou assumir a Presidência Mundial, já falei até com aquele menino lá que está em Roma, o Papa, né? Agora, claro que eu não vou deixar eles passarem necessidade com o desemprego... Eu já sei: o Bush vai trabalhar numa lanchonete, vendendo cachorro-quente; o Sharon já combinei com um amigo meu da Rua da Alfândega, ele vai vender lá. E o Arafat - quibe."

Risos.

JL - Quer dizer, o negócio é esse. É por aí. Esse é o Mendigo. Tem o Deputado, que também é delirante, que é o Deputado Palestrino Conversildo da Silva, presidente do PIPI, Partido Independente dos Pobres Infelizes. Não é aquele deputado que rouba, que é corrupto, nada disso: ele mistura política com filosofia, com tudo. Eu imitava a voz do Ary Barroso. Vou dar um exemplo:

(improvisando a encenação)

JL - O deputado chega no Aeroporto e aí a imprensa vai entrevistá-lo:

"REPÓRTER: Excelência, o senhor está chegando dos Estados Unidos, o senhor foi chefe da missão econômica...

DEPUTADO (com a voz rouca): Sim, eu fui chefe da missão econômica, cheguei agora dos Estados Unidos onde assinei vários e vários acordos!

REPÓRTER: E o que o senhor achou dos Estados Unidos?

DEPUTADO: Eu não sei, eu mal cheguei nos Estados Unidos e cheguei à conclusão que o americano é contra o comunismo!

REPÓRTER: Mas isso é lógico!

DEPUTADO: Lógico não: eu estive em Cuba, e lá todo mundo é a favor! Se bem que isso é uma questão de fidúcias, de significações que contornadas ou não pelos pipocos respaldados formam o quê, o quê, o quê???

REPÓRTER: O quê?

DEPUTADO: Sei lá, te perguntei primeiro, pô!" (risos)

E por aí vai, né? Depois tem um outro tipo, que é um italiano, que não pode ver televisão que ele quer quebrar a televisão. Tudo irrita ele, na televisão. E a neta dele - que é um camarada que já está velho, ele está cheio de doenças, não tem dinheiro pra comprar remédio - e a neta (aliás, eu vendo essa novela Celebridades me lembrei: como é que os caras fazem uma coisa que já existia?), a neta quer ser 'celebridade', só quer posar pra Playboy, e o avô fica... dentro da roupa, né? E ele conversa na parede com a mulher dele que já tinha morrido: (com sotaque italianado) 'Ê, Nicole, io quero falar una cosa: a tua filha é una vagabunda!', e não-sei-o-quê, o negócio é por aí.

LA - Todos esses são anteriores ao Zé Bonitinho?

JL - São anteriores, de vez em quando eu faço. Quando chega uma oportunidade eu faço, e descanso o Zé Bonitinho. Ah, e tem o profeta, também: Saravabatana, é o nome dele, e ele vem, ele tem uma cobra, aquela cobra se suspende... (risos) e a mulher se consulta com a cobra... 'Mestre, o que diz a sua cobra?' Só sacanagem... E aí (imita o som de uma flauta) ti-ri-ri-ri toca a flauta... E é por aí que nós estamos vivendo, criando as coisas. AH! Tem também o professor de português, em que eu uso também a voz do Ary Barroso. É um programa de calouros, em que os candidatos não podem dizer gíria, e ele é contra palavras inglesas, e por aí a fora... Pois é.

RL - O Zé Bonitinho e o Mendigo têm a mesma linha de crítica, de raciocínio, não é?

JL - É, exatamente...

LA - Falam que são uma coisa mas não são...

JL - É que eu fui muito influenciado na minha juventude pela leitura de Voltaire. E eu já tendo um espírito muito crítico, satírico, eu assisti muito teatro de revista, acho que tudo isso deve ter formado o que eu sou hoje.

LA - Uma outra coisa que eu queria perguntar é sobre o encontro seu com o Wilson Grey, no Abismu...

JL - Ah, mas está tão longe que eu nem me lembro mais, eu já conhecia o Wilson Grey da Cinelândia de bater papo e jogar bilhar, né?

LA - Vocês já era amigos...

JL - (rindo) Ah, a Cinelândia era um ponto de artistas desempregados... E a gente "pousava" ali pra ver se descobria alguma coisa, e a gente jogava bilhar, eu, o Wilson Grey, aquela turma toda...

RL - E você conciliou a carreira artística com o trabalho de advogado?

JL - É.

EG - Você trabalha com direito trabalhista, né?

JL - E Previdência Social. Agora eu estou um pouco afastado. Sabe o que é, você aprende uma coisa no circo: você tem que ter outra profissão. Por quê? Digamos que você seja um trapezista. Quando você cair, quebrar uma perna, perder uma perna, você vai viver de quê? Então a cultura do circo é essa: você tem que trabalhar, mas tem que estudar. Tanto é que tem uma lei que poucas pessoas conhecem, lei de Getúlio Vargas, que dizia que onde chegava uma companhia de teatro - antigamente as companhias de teatro viajavam o Brasil todo, igual a circo, não é? - onde chegasse uma companhia de teatro ou uma companhia de circo, a escola tinha que ter vaga para o filho do artista; mesmo que o circo ficasse três dias numa cidade, o menino tinha que fazer três dias de escola, tinha que ter vaga, o garoto não podia ficar fora da escola.

LA - O que é legal é que a advocacia de certa forma se mistura, é um pouco um trabalho do ator, não é?

JL - É uma loucura, mas tudo bem, a gente faz tudo pra viver, né?

RL - E na sua vida de advogado nunca chegaram lá e falaram: "Mas, meu Deus, é o Zé Bonitinho?!!"

JL - Já, várias vezes! (risos) Tem uns que me chamam de doutor Loredo, outros me chamam de doutor Jorge e outros esquecem meu nome e me chamam de doutor Zé Bonitinho. (risos) Mas eu aceito numa boa!

(Entrevista realizada em 28/05/2004, no Rio de Janeiro, por Estevão Garcia, Luís Alberto Rocha Melo e Remier Lion. Transcrição e revisão: Luís Alberto Rocha Melo)