PARALELAS E TRANSVERSAIS
O Efeito Borboleta , de Eric Bress e J. Macye Gruber
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de Michel Gondry

The butterfly effect, EUA, 2004
Eternal sunshine of the spotless mind, EUA, 2004


Não foram poucos os filmes que, nos últimos anos, com propostas e abordagens diferenciadas, tematizaram a perda da memória. Talvez isso seja reflexo dos processos de desenraizamento e desterritorialidade típicos da contemporaneidade, com significados mais amplos sobre nosso tempo, mas trafeguemos pelas fronteiras dos filmes antes de tentar ultrapassá-las. No específico cinematográfico, afinal, são muitas as diferenças, a partir das linhas temáticas, entre filmes como O Pagamento (John Woo) e Identidade Bourne (Doug Liman), ou entre Amnésia (Christopher Nolan) e Cidade dos Sonhos (David Lynch), ou entre Adeus Lenin (Wolfgang Becker) e O Homem Sem Passado (Aki Kaurismali), embora cada qual a seu modo trate, em última instância, do esquecimento de uma identidade, ou, em alcance mais amplo, do apagamento de vestígios históricos. Vemos nas imagens dessas obras tanto visões pessimistas, porque vinculadas à alienação, como libertárias, porque relacionadas à capacidade de reivenção. A ausência da memória é ausência de história e tradição, consequentemente de identidade, mas o apego excessivo a ela também pode ser escravizante, como se uma mudança de jogo não fosse possível.

Também são essas as questões de Efeito Borboleta, de Eric Bress-J Macye Gruber, e  Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, de Michel Gondry, a partir de roteiro de Charlie Kaufman. Nos dois casos, os personagens esquecem trechos de suas vidas, mas de formas distintas, com intenções muito diferentes. Efeito Borboleta é basicamente a história de uma criança dada a lapsos de memória que a levam a agir e a perder monetaneamente a consciência de quem é,  tendo, para sanar esse pequeno dano mental, de escrever todas as experiências em um diário, que assim funciona como uma espécie de permanente impressão das lembranças, como uma afirmação de seu eu sempre ameaçado. Em um dado momento da vida, infeliz porque em seu percurso provocou de alguma forma traumas em terceiros, o protagonista volta sucessivas vezes à infância, por meio das leitura dos diários, e tenta corrigir os eventos geradores de algum estrago, sempre causando novos estragos a cada tentativa de solução.

No letreiros iniciais, há uma citação da Teoria do Caos. É só um reforço para a idéia de que, se movessemos uma peça do xadrez para uma casa diferente de nossa opção, o resto do jogo seria completamente diferente - no entanto, essas mudanças são constantes, não isoladas. Mas, o filme parte de uma premissa determinista e freudiana de que a direção de uma vida é modelada por um ou outro evento específico da infância, dos quais os personagens se tornam prisioneiros impotentes e condenados à infelicidade para o restante de seus dias. A única possibilidade de se reiventar os destinos, portanto, seria promover uma simbólica regressão até o passado para, assim e só assim, alterar o presente e o futuro para sempre. Apagar um acontecimento e substitui-lo por outro nessa regressão significa esquecer. Só passando a borracha em um trauma os personagens poderão ser outra coisa – e não vítimas eternas do trauma. Esse tributo do esquecimento é explicitado ao final, quando o protagonista apaga os diários após a última viagem. Seu problema não é de falta, mas de excesso de memória. Ele vive várias vidas, mas não ignora nenhuma.

A alteração das circunstâncias de vida do personagem, motivadas pelas idas corretivas à infância, não implica nenhuma mudança no sujeito. À frente de trajetórias múltiplas, mas sem conseguir apagar as anteriores quando inicia uma nova, o protagonista é, em parte, símbolo de um sujeito moderno, multifacetado, mas, ao contrário deste, é homogêneo nas variadas faces: pertence sempre a si mesmo a despeito das condições, com uma essência imutável em suas constantes mudanças. Isso só vale para o herói, já que, quando este altera o passado, alguém sai de lá mudado, com outra personalidade, com outra índole, que nos leva a ver o sujeito como construção de seu contexto, mas uma construção sem flexibilidade. Ou seja: só o herói é imutável e, por isso, é o herói da história.  E só o herói pode mudar os outros porque é o único a poder mudar a memória. Já os outros são alienados, portanto, podem ser alterados por terceiros.

Dentro da lógica diegética, nada é tão simples assim, porém. Percebemos com a evolução da narrativa e com a sucessão de regressões à infância que, na verdade, o diário não é exatamente um portal de viagem no tempo, mas uma abertura para existências paralelas, nas quais todos os tempos parecem conviver simultaneamente. Estamos em uma viagem cíclica pela memória, empreendida para se buscar a vida perfeita para os personagens ao redor, sempre com uma perspectiva fisicalista. Temos assim um ideal de mundo perfeito, de vidas ajustadas, de ausência de conflitos, de uma lógica científica para as experiências (a psicologia é um dado importante no filme), de um esquema fechado e totalitário de jogo de montar, a partir do projeto “só quero saber do que pode dar certo”. E o poder dar certo, como já de colocou aqui, pede esquecimento. Não se crê na transformação com memória ou pela memória: é preciso mudar todo um contexto de vida.

Em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, é exatamente o contrário. Estamos em uma fabulação sobre a possibilidade de transformação com memória e em um mesmo contexto, com crença no risco das experiência e na aventura de qualquer projeto, sem a obsessão pela vida perfeita de Efeito Borboleta. Pode-se resumir os acontecimentos à trajetória mental de um sujeito que, ao saber da decisão da namorada em limpá-lo da memória por meio de uma operação tecnológica, decide fazer o mesmo e se arrepende pelo caminho. Não quer apagar uma parte de si mesmo, tornar-se outro (tema obsessivo de Charlie Kaufman), para assim sofrer menos na vida. Quer resistir às adversidades com seu repertório completo – de fraquezas e traumas, inclusive, porque sobreviver é preciso, mesmo sem condições ideais. As cartas são baixadas de forma cristalina: reivenção pelo esquecimento ou com memória de um fracasso? A opção segunda será desde sempre a acenada para os personagens, até porque, mesmo na operação de dissolução da memória, não existe antídoto para a repetição do problema, do tipo apaixonar-se de novo pela pessoa esquecida, mostrando-nos assim certo determinismo cíclico nas possibilidades de ação e de transformação, em lógica contrária a de Efeito Borboleta, segundo a qual a perda de uma perna em uma vida é suficiente para se perder a gatinha de outra vida.

Sempre disposto a trafegar pelos circuitos da rede de mal estares da hipermodernidade, vendo na flexibilidade da identidade, no caráter descartável das experiências e na coleção de sensações um pólo de inseguranças para o ser contemporâneo, Charlie Kaufman acena com solução otimista ao final. Faz isso menos para por panos quentes nos conflitos lançados, ou para dar certo conforto para o espectador com sede religiosa de organização do mundo e viciado em explicações para a vida, mas porque resistir à um fenômeno abrangente, principalmente sem pintar de cor de rosa essa resistência, é um gesto político afirmativo. Kaufman crê em projetos, não na efemeridade. Crê na insistência, não na virada de página. As fitas cassetes ouvidas pelo casal Jim Carrey-Kate Winslet, na qual sabem já terem fracassado em uma relação conjugal, não os impede de insistir em nova tentativa. Pois se crê que o problema, mais que neles, esteja no método de convivência.

Usamos aqui o nome de Kaufman, o roteirista, e não de Michel Gondry, o diretor (também de Natureza Humana, outro roteiro de Kaufman), porque, em última instância, problematizando a teoria do autor, Kaufman é autor de seus filmes. Filmes escritos por ele são “filmes de roteiro”, sustentados por enredo, idéias implicadas no enredo, estruturas já pensadas no papel, sem muito espaço para o diretor respirar ou reinventar em imagens as palavras. Esse pode ser um limite de seu cinema de idéias, mas, ao menos nesse caso, Gondry parece mais empenhado, se comparado a Spike Jonze em Quero ser John Malkovich e Adaptação, em servir o material e se servir dele. Suas opções visuais para o percurso mental, com ruptura do ordenamento temporal e espacial, potencializam as situações de Kaufman, em vez de apenas ilustrá-las com imagens. Pode-se ver a circularidade da narrativa como mero maneirismo da moda desde a institucionalização da opção por Quentin Tarantino em Pulp Fiction (embora isso venha sendo feito desde muito antes, como podemos ver em O Terraço, 1980, de Ettore Scola). A circularidade em Brilho Eterno, contudo, tem coerência dramática. Omitindo informações a maior parte do tempo, para só depois nos por a par de como algo se deu e assim nos situar na cronologia correta dos fatos, a narrativa é uma construção de memória (não dos personagens, mas do próprio filme). Gondry-Kaufman permitem ao sistema rigoroso do roteiro respirar e superar as paredes levantadas na escrita.

Em Efeito Borboleta, a prisão ao roteiro também é perceptível,  mesmo quando a mise-en-scène tenta causar certo estranhamento,  também com sutis rupturas de tempo, aqui mais naturalizadas. Não temos o arejamento visual buscado por Gondry, mas um diálogo paródico com gêneros, principalmente o terror, que parecem desviar-se de uma abordagem séria, mas que, ao contrário de Brilho Eterno, com sua visão ridicularizante da ciência, leva a medicina e a psicologia a sério (ao menos enquanto tratamento dentro do filme) . Não vemos como o filme é construído em imagens, quase apenas como ele é elaborado no papel. Embora na tela o roteiro necessariamente vire filme, com o acréscimo de atores, tempos de planos e luz, o filme à vista é prisioneiro de um esquema pré-determinado, como se tudo fosse possível de ser organizado naquele mundo, justamente a organização ideal buscada pelo protagonista.

Cléber Eduardo