IGUAL A TUDO NA VIDA
Woody Allen, Anything else, EUA, 2004

Pensar em filmes como um conjunto de obra é de modo geral bastante interessante para nós que refletimos sobre eles, mas pode levar a certas limitações para quem os está realizando. Uma certa tendência a reiteração surge em muitos cineastas (podemos pensar em Walter Hugo Khouri para ficarmos num exemplo nosso), que aos poucos tira a vitalidade dos seus filmes. Woody Allen é um caso típico disso. Há uma certa fórmula de Woody Allen e todos os seus filmes, alguns mais outros menos, a seguem. Daí surge também uma forma de Woody Allen que ele descobriu servir bem a fórmula, resultando numa progressiva preguiça estética (mais notável depois que parou de trabalhar com o fotógrafo Gordon Willis). Os filmes passaram a girar em falso com freqüência. É preciso que se introduza algo que surpreenda.

Pois bem, Igual a Tudo na Vida é um filme de renovação dentro da obra de Woody Allen, e seu melhor trabalho desde UmMisterioso Assassinato em Manhattan. Para isso bastou que ele colocasse diante de si um problema simples, mas que passou despercebido da maior parte dos críticos: trata-se do primeiro filme de Allen desde Manhattan a ser rodado em scope. A opção pelo scope funciona muito bem dentro de um contexto bastante claustrofóbico, e a necessidade de trabalhar com um quadro mais largo reanimou seu cinema - pela primeira vez em anos pode-se falar de uma mise-en-scène criativa num filme de Allen. O diretor manteve até mesmo a sua tendência para apelar aos zooms (que haviam se tornado cada vez mais recorrentes nos últimos filmes) sob controle. Na verdade, Igual a Tudo na Vida é provavelmente o primeiro filme de Allen desde Manhattan que se pode considerar melhor dirigido do que escrito. Trata-se também de um filme sobre o estado atual da carreira de Woody Allen.

Não se trata, que fique bem claro, de um filme de todo bem resolvido - quase o oposto disso. Há muitos problemas, o roteiro de Allen parece obra de um escritor desesperado em repetir o antigo sucesso, elementos de filmes anteriores (em especial Noivo Neurótico, Noiva Nervosa) são regurgitados e inseridos na trama de forma desengonçada. O flashback para o primeiro encontro entre Jason Biggs e Christina Ricci, por exemplo, flui mal, em muito porque os atores parecem incomodados com os diálogos, há algo de falso na seqüência toda (apesar de Allen conseguir alguns momentos agradáveis no começo quando ele a encontra na rua com um antigo amigo). Só que estes problemas todos de certa forma ajudam o filme. Vendo em perspectiva, Dirigindo no Escuro se revela um trabalho de um artista perplexo com sua corrente posição (até o titulo original, Hollywood Ending, adquire uma certa melancolia). Igual a Tudo na Vida por sua vez acaba se mostrando um filme de um artista afogado.

Há de tudo aqui: o desejo de fazer um filme mais comercial (por exemplo, na escolha de um elenco mais jovem), de agradar aos antigos fãs (recorrendo a vários velhos favoritos), agradar aos críticos (com um filme que, sem deixar de ser uma comédia, é mais sério que os trabalhos que imediatamente o precederam) e até mesmo ao seu próprio narcisismo (ao se escalar como o personagem que vai ajudar o herói a resolver seus problemas). Mais importante de tudo há o fantasma do velho Woody Allen dos anos 80, aquele que em certo momento virou, para um setor grande da critica, sinônimo do que seria um cineasta inteligente. Não é surpresa que enquanto a maior parte dos filmes de Allen trabalham a partir de filmes europeus que lhe agradam, Igual a Tudo na Vida parece trabalhar a partir deste Allen do fim dos anos 70 e anos 80. Fundo do poço para alguns, prefiro crer num auto exorcismo necessário.

O filme todo parece assombrado por estes velhos grandes tempos, onde Allen fazia os filmes que queria (sem tanta necessidade de bajular os gostos alheios) e tinha retorno tanto do público quanto de crítica. As tentativas de revivê-los fracassam, como não podiam deixar de fracassar, mas há algo de fascinante que decorre delas. Podemos ver ali um sinal de ruptura: Allen se insere no filme como uma caricatura da sua persona, uma versão distorcida e mais desagradável do seu judeu neurótico. Enquanto Biggs sugere uma versão jovem e mais ingênua dele, mas o interpreta (muito bem, diga-se) de forma a, ao mesmo tempo que retém o suficiente do estilo do seu diretor, sugerir uma personalidade própria. Isto faz toda a diferença: foram-se os tempos em que Allen transformaria qualquer ator que calhasse em fazer seu alterego (de Mia Farrow a Judy Davis, de Kenneth Branagh a John Cusack) num mero carbono de si mesmo. Estes dois Allens se encontram e dali o filme tira bastante da sua força: podemos ver ali expresso – desde o primeiro plano onde a situação recorrente dos dois homens conversando, o jovem ouvindo de forma obediente ao velho, é subvertida pelo posicionamento dos bancos que, pelo ponto de fuga, sugerem a necessidade de Biggs de sair já dali – o quão desarranjada e pouco saudável é a relação que Allen hoje mantém com a imagem que se formou sobre a figura dele. Igual a Tudo na Vida é um filme sufocante, desagradável e bastante negativo. Não há uma única relação saudável na vida de Biggs (o filme sugere à sua maneira uma atualização de Memórias, mas menos indulgente e muito melhor pensada). Ao mesmo tempo é um filme bastante esperançoso, porque ele sugere ao longo de toda a sua duração rupturas, rotas de fuga, caminhos para uma renovação. Woody Allen parece se sentir pressionado, encostado contra a parede, mas ele parece ainda mais consciente da sua necessidade de se reafirmar. A perplexidade do simpático filme anterior abre espaço para ação, o que nos leva de volta a mise en scene do filme.

Há diversas razões pelas quais Allen sempre ter preferido o 1:85 ao 2:35: seus filmes de predileção raramente trabalham com tela larga (é fato que se ele pudesse, ele também filmaria com mais freqüência em preto e branco); além de ser muito mais difícil de se enquadrar em 2:35, o que num cineasta que sempre se mostrou mais à vontade dirigindo atores do que a câmera, certamente não ajudava a torna o formato atrativo. De outro lado mostra-se mais espaço, justamente o espaço que o Allen cineasta e seu jovem alterego tanto reivindicam para eles mesmos. Além disso, as maiores dificuldades que o formato propõe obrigam Allen a pensar: pela primeira vez em anos de seus filmes vemos atores que não parecem se deslocar pelo quadro a esmo, objetos de cena ganham expressão, cenários se tornam parte do quadro e não mero local onde a ação se desenvolve. O Central Park nas visitas de Biggs e Allen não existe como cartão postal (como em outros filmes de Allen), mas como uma fortaleza que protege as duas versões do cineasta do resto do mundo (uma quase paródia melancólica das reclamações, ao menos parcialmente justas, de que o diretor tende a se isolar do resto do mundo). Não é só uma questão de explorar as possibilidades do quadro (erro no qual muitos cineastas que se arriscam pelo formato incorrem), mas nas possibilidades do que está dentro do quadro.

Há um excelente plano, não muito longo e aparentemente desimportante, em que Biggs e Allen estão sentados num banco no parque. Há ali uma combinação da distância entre a câmera e o objeto, disposição dos atores dentro da imagem e a linguagem corporal deles que exprime tudo que se precisa saber sobre o funcionamento da relação deles. Há uma outra excepcional seqüência pelo meio do filme – a única a envolver todas as personagens que sufocam Biggs – realizada na sua segunda metade em um plano só, onde o caos se instala mostrando a precisão do controle de Allen sobre o seu material: diversas ações transcorrem, Biggs precisa de alguma forma equilibrar sua relação com todas as personagens, atores entram e saem do quadro, objetos são usados para bloquear seu caminho e distanciá-lo deles, split-screen é usado criativamente como mais um objeto de fragmentação dentro do já caótico cenário e Allen controla tudo fazendo que em meio ao caos percebamos a unidade do propósito da passagem. Em momentos como esse, o filme explicita as saídas de Allen no futuro. Seu cinema, ao menos em Igual a Tudo na Vida, já não gira em falso.

Filipe Furtado