À FLOR DO MAR
Portugal, 1986

A sedução/renovação da imagem

Quando nos vemos perdidos no meio de um sem-número de filmes marcados por uma desesperada necessidade de agradar, é sempre bom voltar ao cinema de João César Monteiro. Aquele que certa vez, ao ser perguntado sobre o público português, disse: "Quero que o público português se foda". A frase podia constar na lápide do cineasta, já que poucas vezes no cinema encontramos uma obra tão despreocupada em dourar a pílula para o espectador. À Flor do Mar é, observando sua obra em retrospectiva, uma grande provocação para com os seus fãs. O mais próximo de um filme de festival que ele nos deixou.

O assunto aqui é sedução. Sedução das personagens pelo estranho que elas abrigam em sua casa; do espectador pelas imagens produzidas pelo cineasta. Monteiro, cineasta marcado por uma proposital deselegância, parece se divertir muito aqui fazendo o oposto. Há uma grande força poética nas suas imagens. À Flor do Mar é para ele um imenso exercício de liberdade (liberdade que é afinal o grande tema/objetivo de seu cinema), em que ele de certa forma se posiciona além de suas obsessões temático-estéticas habituais. O autor também precisa ser livre.

Trata-se do primeiro encontro de Monteiro com Portugal contemporâneo, após alguns filmes dedicados a um Portugal mítico. Não é, porém, um encontro simples. Sua personagem central é uma viúva italiana (Laura Morante) que recebe a visita de um marinheiro americano (Philip Spinelli, que antes co-dirigira um filme com Robert Kramer). No filme fala-se de tudo: inglês, italiano, francês, português. Para chegar em seu Portugal, Monteiro precisa passar pelo estrangeiro. Novamente aqui vemos como À Flor do Mar é um filme de definição, necessário para que o cineasta alcance a sua fase "madura". Para que sua radiografia de Portugal e o questionamento de "o que é ser português" começada em Recordações da Casa Amarela possa suceder aquela do Portugal mítico original de Veredas/Silvestre, precisaria haver o choque/transição que é À Flor do Mar (choque este reforçado pela figura do marinheiro que de certa forma parece sair do universo dos primeiros filmes se impondo no espaço deste Portugal moderno).

Monteiro sempre fora fascinado por Pasolini (algo que Veredas deixa claro), À Flor do Mar é o seu Teorema, só que numa versão mais positiva e poética. O discípulo aqui supera de longe o mestre. O marinheiro é menos anjo exterminador do que anjo renovador. Este personagem essencialmente cinematográfico – um pirata anarquista – acrescentara vida ao espaço; Monteiro, por sinal, faz um trabalho notável com a casa que serve de locação central. O filme se apresenta como uma dança, o corsário lentamente seduzindo uma a uma das habitantes da casa. Monteiro investe nos seus atores (todos ótimos), nas suas trocas de olhares. Olhares discretos, jogos de ditos e não-ditos (a força da palavra se apresenta aqui muito mais na babel de línguas que é a casa do que nos diálogos habituais do cineasta).

O marinheiro traz uma renovação da imagem do cinema de Monteiro. O cineasta afirma sua independência (em relação as suas obsessões, aos seus espectadores, as suas influências). Mergulha no cinema dentro do que ele, o cinema, tem de mais sedutor e poético. À Flor do Mar é antes de tudo um exercício de afirmação de liberdade dentro da própria obra.

Filipe Furtado

 

 




Laura Morante é Laura Rossellini em À Flor do Mar