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                         É sempre complicado analisar 
                          um filme que possua uma relação muito 
                          direta com um outro trabalho já produzido antes 
                          dele - como uma continuação, uma refilmagem, 
                          etc. Uma vez que se tratem de manifestações 
                          artísticas distintas, de fato é algo injusto 
                          partir de uma outra obra para entrar no mérito 
                          de uma segunda (no caso deste O Adversário, 
                          a relação é com um filme que utilizou 
                          o mesmo "fait divers" como base para sua narrativa - 
                          A Agenda, de Laurent Cantet). Mas, especialmente 
                          neste caso, de fato é impossível ignorar 
                          a existência pregressa deste outro filme - inclusive 
                          porque, por um completo acaso, fui eu mesmo quem criticou 
                          aqui na Contracampo o filme anterior. 
                           
                          Digo que é impossível por um motivo simples: 
                          na crítica 
                          ao filme de Cantet eu destacava que o ponto principal 
                          de atração daquele belo trabalho era justamente 
                          o fato dele nos colocar ao lado de seu protagonista 
                          sem nenhuma mediação prévia - nos 
                          puxar o tapete de segurança que nos faz tentar 
                          entender aonde estamos numa narrativa, desde o seu princípio, 
                          possuir chaves de entendimentos sobre os personagens 
                          e seu lugar no mundo. É tudo que Nicole Garcia 
                          não faz na sua adaptação da mesma 
                          história para o cinema, pois antes mesmo do primeiro 
                          plano aparecer na tela ela nos impõe uma cartela 
                          explicativa que (sem qualquer outra função 
                          dramática razoável) já coloca uma 
                          marca no personagem de Jean-Marc Faure, tal e qual a 
                          exemplar "letra escarlate" do romance homônimo: 
                          trata-se de um mentiroso que enganou sua família. 
                          Esta, portanto, é a posição de 
                          saída do filme e do espectador: vejamos este 
                          mentiroso (isso na leitura mais agradável, porque 
                          pode-se dizer que o filme funcione mesmo é como 
                          um "cautionary tale", ou seja: "cuidado, isso pode acontecer 
                          com você - você acha mesmo que conhece as 
                          pessoas à sua volta?"). 
                           
                          Tudo que vem depois é decorrência deste 
                          crédito inicial: Garcia se dispõe a fazer, 
                          então, uma reconstituição - onde 
                          o uso desta palavra é importante sim, porque, 
                          se tiramos o estofo "artístico", tudo remete 
                          mesmo às encenações de um Linha 
                          Direta da vida, se retirado do contexto industrial onde 
                          este é feito. E estes são os universos 
                          distintos que interessaram a Garcia e Cantet a partir 
                          de uma mesma história (e de fato olhar os dois 
                          filmes em conjunto é exercício quase exemplar 
                          de como se pode partir da mesma base para buscar e atingir 
                          resultados tão distintos): a ela interessa diagnosticar 
                          desde cedo este personagem como um "problema" e buscar 
                          solucionar o mistério de quem ele seja, enquanto 
                          para Cantet o que interessava era nos colocar ao lado 
                          deste personagem, partilhar sua angústia, sua 
                          confusão perante o mundo. Garcia psicologiza 
                          (poderia-se dizer que quase psicanaliza), enquanto Cantet 
                          tentava somente mostrar. O máximo de "humanidade" 
                          que ela dá ao seu personagem é tentar 
                          causar pena, piedade do espectador - o que é 
                          mais próximo do ódio (oposto complementar) 
                          do que da real empatia, que era o que Cantet conseguia. 
                           
                          Nesta operação distinta, o que se observa 
                          é que Garcia coloca o espectador distante deste 
                          homem, uma vez que sempre o vemos como um patológico, 
                          um problemático. Ele, então, passa a ser 
                          "outro" (daí a comparação com as 
                          reconstituições à la Linha Direta, 
                          que sempre lidam com "outros"). Já no filme de 
                          Cantet, ao não nos fazer enxergar o personagem 
                          sob um prisma tão fechado, o protagonista podia 
                          se confundir com nós mesmos, os espectadores 
                          - e seus atos ressoavam muito mais fundo, então. 
                          É interessante observar alguns dos usos de linguagem 
                          da diretora neste sentido - como a trilha sonora de 
                          Angelo Badalamenti, que, por sua conexão habitual 
                          com o cinema de David Lynch, parece nos jogar sempre 
                          num ambiente de "estranheza", o que implica em mais 
                          uma leitura distanciada do espectador sobre este personagem; 
                          ou como os cortes rápidos dentro de sequências 
                          no início do filme, que tiram mais uma vez o 
                          naturalismo de uma encenação, nos distanciando 
                          dela. Mas, talvez a mais radical opção 
                          seja a de narrar a história num flashback onde 
                          já vemos o personagem completamente fora de si, 
                          e ouvimos ainda depoimentos de outros personagens à 
                          justiça (um golpe especialmente tosco de roteiro). 
                          Aprisionado no "passado", o personagem está condenado 
                          desde o início - em Cantet ele evoluía 
                          junto conosco. 
                           
                          É inegável que Garcia filma elegantemente, 
                          usa ótimos atores, e consegue algumas sequências 
                          de trabalho interessante de ritmo interno e afins. Talvez 
                          seu filme passasse até desapercebido como um 
                          filme agradável em outras circunstâncias 
                          - mas não quando vimos Cantet pegar esta tragédia 
                          pessoal e conseguir dar a ela a dimensão social 
                          e de empatia que ele atingiu com A Agenda. Aí, 
                          O Adversário fica pequenininho, quase 
                          juvenil, em sua simplória autópsia de 
                          um crime. 
                           
                            
                          Eduardo Valente 
                          
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