Shrek 2
Andrew Adamson, Shrek 2, EUA, 2004

O que acontece após o inevitável final feliz dos contos-de-fadas? Segundo Shrek 2, a busca pela adequação ao modus operandi de uma sociedade marcada pela aparência e pelo espetáculo, travestida de crítica politicamente incorreta ao que, de fato, o filme trata de exaltar.

O sucesso de bilheteria do primeiro Shrek, aliado aos supostos comentários ácidos acerca dos desenhos Disney (que devem seu retorno, nos anos 90, a Jeffrey Katzemberg, co-fundador da Dreamworks), cegaram a crítica internacional e brasileira à evidente visão conservadora e retrógrada da animação de Andrew Adamson. Shrek, o ogro verde, feio e mal-educado, condenado ao papel de vilão coadjuvante nas fantasias de Walt Disney, na verdade em nada se afasta do herói convencional que, em teoria, ele renegaria, na medida em que se está diante de um personagem essencialmente bom, dotado de nobreza de espírito e de coração puro. A moral da história, tanto em Shrek quanto na Disney, fala que a beleza interior suplanta – ou melhor, esconde – eventuais defeitos externos, eliminando, em conseqüência, qualquer revolta que possa nascer da tensão e da insatisfação do protagonista com o mundo, pacificado, que o cerca.

Com Shrek 2, a construção do herói idealizado torna-se ainda mais óbvia, uma vez que a aceitação do ogro pelos pais de Fiona, mote da trama, pressupõe necessariamente o apagamento ou a negação do exterior abjeto para dar visibilidade ao interior elevado. Nesse sentido, Adamson distorce por completo o significado do amor romântico: de acontecimento desestabilizador da realidade organizada e hierarquizada, a paixão impossível de Shrek pela princesa se transforma na melhor forma de unificar o reino e de manter o status quo e a paz social.

Assim, o local onde se desenrola a ação, o reino muito muito distante que em tudo lembra Hollywood (com suas estrelas enclausuradas em mansões, com a festa do Oscar), serve para situar Shrek na dicotomia entre essência e aparência, ao opor o amor abnegado do herói às maquinações da Fada Madrinha e do Príncipe Encantado, representantes de uma indústria do espetáculo a qual oferece aos pobres mortais fórmulas mágicas (tais como as poções da Fada Madrinha) que garantem satisfação imediata e ilusória ao sonho de evasão da vida cotidiana em direção à fama e à fortuna.

Shrek 2, no entanto, não questiona as celebridades fabricadas pela mídia, ou a sociedade de aparências, pois não somente retira toda a força de ruptura que o amor ou a feiúra do herói poderiam provocar, como também se identifica com a espetacularização que deveria criticar - e que Shrek, na tentativa de se diferenciar da gramática estabelecida pela Disney, bem ou mal ainda disfarçava. Desse modo, no lugar da animação digital pobre e mesmo tosca do original, tem-se a perfeição técnica da continuação: verdadeiro show hollywoodiano, que se cristaliza no excesso de números musicais durante o filme, os quais, ao contrário, eram sistematicamente recusados no anterior.

Se Shrek 2 não nega o espetáculo, mas dele se utiliza, então é justamente quando assume tal característica que a obra de Adamson diverte: depois que Shrek e o Burro são embelezados pela poção da Fada Madrinha (explicitando o projeto de anular o exterior em favor do interior, ao trazer este para fora), o filme relega as falsas ironias a segundo plano e se centra na correria desenfreada, no humor grosseiro de duplo sentido, nas paródias escancaradas da série de televisão Cops e do filme Missão Impossível, para ficar realmente engraçado.

A chave, portanto, para se apreciar Shrek 2 é não enxergá-lo como oposição ou mesmo comentário inteligente ao sistema que o fez nascer, e sim enquanto produto similar a American Pie, ou seja, descerebrado e esquecível.

Paulo Ricardo de Almeida