O Sacrifício
Andrei Tarkovski, Offret, Suécia/França/Inglaterra, 1986

Palavras, palavras. Teatro insuficiente das palavras. "Ninguém vai fazer nada?" – pergunta a si mesmo o patriarca da família. "Tudo será sempre igual, se fizermos tudo sempre da mesma forma?" O Sacrifício é o testamento de um cinema em busca de um ultrapassamento, de um cinema em que a fissura da superfície aparece como obsessão – de uma vida de imagens debruçadas sobre a possibilidade da ruptura, da quebra, do estilhaçar de um certo apaziguamento aparente das coisas. Em O Sacrifício, a normalidade aparece na forma marcada e gélida de uma família sueca que se encontra para comemorar o aniversário de seu patriarca. A tensão dos gestos, a aspereza dos diálogos, a rugosidade das paredes vazias ao longo do primeiro terço do filme, todo o teatro das cenas remete a um lugar ao mesmo tempo de conforto/acomodação e de profundo incômodo. Há um grito latente no perambular dos personagens, nas trocas de olhares entre pais e filhos, patrões e empregados, maridos e esposas... Atores e mobílias da casa parecem se igualar na sua manutenção da ordem, na sua economia dos espaços. Em meio a toda essa frieza, o patriarca se sobressai como a figura que carrega no peito uma angústia, um se indispor diante da vida-posta, uma condição espiritual que dá a ele um sentido patético, uma espécie de fantasma de gestos vagos.

É apenas com o seu pequeno filho, porém (e só com ele), que o homem consegue travar um embate direto – ironia-poética de Tarkovski, o menino acaba de passar por uma cirurgia na garganta e não pode falar – se comunicando apenas por gestos e grunhidos, sob um chapéu de pano branco que lhe esconde o rosto. Desde o primeiro plano essa relação é estabelecida, como se naquele menino estivesse a imagem reposta de uma esperança ainda sem palavras. O filme se inicia assim: com os dois personagens, ao longe, plantando juntos uma árvore à beira de um lago, enquanto o homem narra a fábula de um homem cuja sina era regar uma árvore morta (até que ela florescesse novamente...). Nesse certo sentimento de impossível, Alexander (o pai) reitera a figura do desviante, do visionário trágico, presente em diversos aspectos da obra do diretor. É ele que, numa espécie de sonho-sono-previsão do futuro, vê ou antevê a explosão de uma guerra nuclear de proporções mundiais que aparecia como o anúncio do apocalipse. Alexander se ajoelha e lança os olhos para o alto: por cerca de um minuto, faz sua súplica ao vazio, coloca a própria ordem (família, casa, filhos) de sua vida em sacrifício e promete deixar tudo para trás "se tudo voltar a ser como antes...". Nesse misto de transe, de histeria, o personagem quase-nonsense do carteiro faz as vezes de um anjo mensageiro/consciência, que sussurra para Alexander a única e absurda saída: fazer amor com uma misteriosa empregada da casa, uma bruxa capaz de reverter o destino trágico da humanidade.

Tarkovski não faz diferenças de tom, de verdade, entre as possíveis alucinações e a rotina da casa, tudo é apresentado no mesmo tom, na mesma cadência, e às vezes o absurdo parece mais plausível do que a ordem tão naturalizada das coisas. O filme, sem palavras claras, vai aos poucos narrando as ações de Alexander, e nos fazendo reconhecer em suas ações os gestos extremos das palavras proferidas em sua súplica. A casa em chamas, uma certa alegria trágica. O Sacrifico é um elogio dos gestos extremos, da incapacidade de deixar que tudo permaneça, do ultrapassamento de seus sentimentos mais sedimentados para a possibilidade de uma sobrevida do homem. Loucura e libertação andam juntas, e é belíssimo ver como Tarkovski inscreve esse sentido na carne do filme. É notável o longo plano-seqüência em que Alexander corre de seus familiares e da ambulância antes de ser capturado num vasto campo gramado – a casa em chamas ao fundo e a correria quase ridícula, tira o filme da sintonia apática, dos gestos marcados, da câmera dura. Há um pequeno caos, uma pequena ruptura, um pequeno sacrifício da vida como ela é, para que a própria vida possa perpetuar-se/expandir-se para além do hábito. O apocalipse não como fim de tudo, mas como o findar de tudo numa repetição sem limites. O Sacrifício é um elogio do ir além, uma ode à vida como possibilidade de reinvenção e não como manutenção do mesmo. A saúde da loucura, sua capacidade de tirar as coisas do lugar, como esse necessário sacrifício do espírito diante da amenização da vida.

Último filme de Tarkovski, O Sacrifício é dedicado a seu filho e termina com o menino de Alexander deitado aos pés da árvore morta, que ainda não floresceu. Essa imagem final, de esperança (mais do que de melancolia), é o plano final da filmografia do diretor. É quando ouvimos, pela primeira vez (e somente), a voz pequena do menino e ele profere a pergunta primeira, a mais essencial de todas ("No início era o verbo" – ação primordial do espírito) – aquela que talvez fosse a saída para o recomeço que o cinema de Andrei Tarkovski sempre se esmerou em intuir, ou seja: "Por que, meu pai, por quê?".

Felipe Bragança