Queimando ao Vento
Silvio Soldini, Brucio nel vento, Itália/Suiça, 2002

Muitos filmes são prolongamentos de seu início. Vemos as primeiras cenas como senhas para entrar em um mundo onde a lógica já está dada por esses momentos primeiros. Tomemos o exemplo de Queimando ao Vento (adaptação do romance Ontem, da húngara Agota Kristof). Uma narração em primeira pessoa, ao som melancólico de um violino, escancara o lirismo dolorido. Imagens de árvores balançando ao vento, mudança do colorido para o preto e branco, referências à tristeza do personagem em um díalogo e a imagem dele desmaiando em um bosque, vítima de pneumonia (como sabaremos logo depois): tudo adequa nossa percepção. Seremos introduzidos a uma narrativa calcada no embate entre o onírico sem freios e o psicológico decifrável – ou entre a abstração e o racional, entre as pulsões e a psicanálise. Sabemos por meio de sua narração e algumas imagens que a infância do protagonista é a razão de seus males: sua mãe era prostituta, seu professor era seu pai não assumido, ele tenta matar o pai. Sabemos também que, para fugir desse passado traumático, ele trocou de país (de algum ponto do Leste Europeu para a França). Entramos assim no que há de mais interessante: o narrador quer enterrar sua identidade, sua origem e sua memória, muda de espaço físico e de nome, mas permanece preso às suas raízes. Prisão trágica, piada dos deuses. Pois seu ideal de mulher, cantada quase em versos no livro íntimo ao qual se dedica permanentemente, é a amada da infância (que, por acaso, é sua meia-irmã).

Ou não por tão acaso assim, já que, ao se apaixonar por alguém a quem está atado por laços sanguíneos, ele resgata sua identidade original (com seu passado e sua origem), compensando o mal estar da modernidade (para citar o sociólogo polonês Zygmunt Bauman). Também não é por acaso que o filme assume seu romantismo desenfreado, com emocionante convicção, como contraponto aos laços afetivos e identitários frouxos. O narrador funde em uma mesma relação e em uma mesma pessoa a necessidade de parentesco e de afinidade (noções também trabalhadas por Bauman): a meia-irmã é parente (algo dado, sem escolha), mas também parceira potencial (algo escolhido). Nos dois casos, ela é um espelho para o qual, para ele se reconhecer, tem de olhar. No exílio, portanto, ele volta para casa, simbolicamente. O exílio apenas o estimula a reeencontrar a origem, até porque o exílio é só rotina, sem chance de se reiventar nada, apenas de se anular como indivíduo (em sua rotina de operário). É no retorno de onde partiu, nesse retorno metafórico, que ele pode se reiventar. Há algo de trágico na aparente inevitabilidade desse romance proibido, mas, ao omitir que é irmão da amada, o protagonista dribla os deuses, tornando-se senhor da situação e, em certa medida, reiventando seu eu sem abandoná-lo. E assim o romantismo também é reiventado, pois deixa de ser auto-destrutivo e projeção de um imaginário ensandecido para, na tela, tornar-se realizável por obra do homem. Nada é proibido para as emoções desse narrador. O determinismo é, assim, relativizado (como em Tiresia, de Bertrand Bonello, onde, em última instância e de forma mais complexa, o travesti se adapta, não sem sofrimento, à uma circuntância, optando por cumprir uma sina).

Tendo dirigido quatro longas-metragens, apenas um lançado no Brasil (Pão e Tulipas), justamente sua única comédia, o milanês Silvio Soldini revela notável crença em seu material. Seu registro é do excesso, dos floreios literários e musicais, ao qual contrapõe uma câmera sutil. Há algo de defasado nesse registro, e isso é incorporado pelo filme, até mesmo para esvaziar a defasagem. Não se busca criar compaixão por um personagem sem habilidade para viver segundo seu tempo, mas de se ver nele a possibilidade de buscar outra forma de se relacionar com o mundo, sem abrir mão das fidelidade às suas emoções. Soldini conta a seu favor com um ator não menos convicto, o tcheco Ivan Franek, que encontra verdade em seu intimismo perturbado: ator e diretor estão afinados nessa empreitada tão peculiar.

Cléber Eduardo