Três filmes dirigidos por Ody Fraga, sobretudo
"filmes de Ody Fraga" (em sua construção),
foram exibidos no dia 10 de maio. Local: CCBB-SP. Os
títulos integraram a mostra sobre a Boca do Lixo,
com programação centrada, em sua variedade
de temas, estilos e qualidade, na produção
de Antonio Galante. Conhecê-los com o olhar munido
de distanciamento histórico, em sessões
lotadas por um segmento da elite intelecual residente
em SãoPaulo, não deixa de adicionar algo
à recepção. Durante as exibições,
ouve-se muitos risos. É inevitável questionar,
diante dessa reação e das imagens que
a motivam, qual o sentido dos risos. Seria fruto da
eficiência cômica do diretor e do roteirista
ou do julgamento debochado dos espectadores, que evidenciam
ruidosamente sua superioridade e distância em
relação aos objetos com os quais têm
contato? Talvez uma coisa e outra, mas, nessas linhas,
a hipótese sobre a recepção, se
interessa, é apenas para colocá-las em
contexto, já que, nas categorias de classe social
e formação escolar, o público de
hoje dessas sessões, basicamente de estudantes,
críticos, cinéfilos e pesquisadores, é
diferente do perfil das platéias do momento do
lançamento. O encontro com essas imagens da Boca
tem hoje objetivos diferentes também. Não
se busca o entretenimento, por assim dizer, mas alguma
satisfação intelectual: a colocação
em perspectiva de um determinado momento da cinematografia,
cujo método de produção rudimentar
e repertório de aprovação popular
marcou uma vertente ainda pouco compreendida de nossa
cinematografia.
Voltemos nos anos. Quando cada um desses filmes foi
lançado, os críticos torceram nariz ou
fecharam os olhos, exceção feita à
ala militante da produção barata e popular
viabilizada por executivos de cinema com escritórios
localizados nos arredores da rua do Triunfo, hoje coração
da cracolândia. Desprezava-se praticamente tudo
que saía daquela usina de imagens, talvez porque
quem as produzisse fosse, predominantemente, uma gente
inculta e distante dos bancos universitários,
disposta a refazer os códigos cinematográficos
em outras bases. Vistos com atenção, muitos
desses filmes, e certamente alguns de Ody Fraga, revelam
tom (auto) paródico e operações
de auto-referencialidade. Embora fossem consumidos por
um público localizado no andar térreo
da pirâmide econômica e social, são
arquitetados de forma nada simplória, sabotando
conscientemente ou intuitivamente a suspensão
da descrença, com contatos com o pós-
modernismo, com a tradição local (as chanchadas)
e com uma prática européia (os westerns
spaghetis), sempre colados à sua condição
cinematográfica (a quase miséria) e à
condição de quem os consumia (a pobreza
financeira e intelectual). Ao propor o riso de si mesmo,
e de seu receptor, esse cinema afirma sua inteligência,
pois se nutre de distanciamento crítico, mas
em uma variação não erudita. Em
vez da conscientização, propõe
a esculhambação - a própria e a
do espectador. Não há porque conscientizar,
já que, nessa operação, a consciência
é algo já dado (pela própria realidade
- dos filmes e dos espectadores), em reciclagem dos
primeiros textos marxistas, nos quais o proletariado,
em primeira instância, era tratado como consciente
de sua condição, pois a vivia. Em alguns
filmes populares da Boca, não há o que
ensinar, mas ao que reagir, mostrando-se, nessa reação,
a falta de armas (essa sendo a própria arma).
A releitura destrambelhada de repertórios de
outros contextos, tecida com miséria financeira
e despojamento técnico, certamente causava enjôos
nos patrulheiros do bom gosto. Via-se pílulas
de alienação em imagens com notável
postura política. Se estas não eram engajadamente
corretas, se não visavam a mobilização
ou o ensinamento do público, isso são
outros tantos quinhentos.
Mais de 20 anos após seu fim, nas sessões
do CCBB-SP, vemos uma adesão sem vergonha. Certamente
alimentada pela curiosidade típica de uma antropologia
amadora em relação a objetos culturais
exóticos, essa plateía contemporânea
busca conhecer sintomas históricos- culturais,
reveladores de nossa sociedade e de um tempo com a página
já virada, sem necessariamente mergulhar nos
filmes e em suas especificidades cinematográficas.
Pois isso aqui nos interessa. No caso de Ody Fraga,
ver suas opções, muitas delas geradas
pelo contexto limitante de muitas outras opções,
exige olhos bem abertos. É grande o risco de
um olhar formado nos preconceitos sociais, econômicos
e estéticos, com pós-graduação
na preguiça intelectual semeada pelo doutorado
em julgamentos impressionistas, sentenciar a elaboração
de suas cenas e a concatenação delas como
lixo cinematográfico. Seria mais ou menos como
acreditar que os filmes são assim porque o diretor
é ruim. Busquemos caminho contrário. Sem
ignorar o contexto de produção, caracterizado
pela falta de dinheiro e de estrutura, analisemos as
imagens como opção, não como defeito
de fabricação, nem como fabricação
a partir de defeitos de produção.
Tomemos como primeira aproximação A
Filha de Calígula. Deixando de lado as informações
sobre os bastidores, tempo de filmagem e condições
nas quais essa se deu, procuremos ver como o diretor
realiza o filme. Historicamente, estamos no Império
Romano. Não em uma representação
do Império Romano, mas em uma alusão debochada
a ele. Não se pede ao espectador que se acredite
na verdade daquelas imagens. Verdade alguma há.
E persegue-se isso. Ody Fraga não tenta disfarçar
a pobreza com criatividade, como pregava e praticava
os cinemas novos do terceiro mundo, mas, ao contário,
assume a pobreza e persegue a mediocridade técnica
e cênica. A câmera mal se move, planos são
reaproveitados, corta-se o mínimo possível,
o elenco não finge interpretar, os diálogos
são rascunhados, sem querer soar naturais, muito
menos inteligentes, quando muito imprevisíveis.
Vemos dois ou três ambientes de estúdio,
decorados de forma kitsch e autoparódica, que
significam o palácio do poder. Vemos um tirano
efeminado, seus dois assistentes saídos de algum
humorísticos da Rede Tupi, a heroína enamorada
de um cavalo falante, concubinas a desfilar com os seios
à mostra, um trombadinha a perambular com o pênis
à vista, todos envolvidos em um intriga palaciana
de usurpação de poder, por sua vez expressa
em relações de poder sexual (de uns sobre
outros), das quais surgem diálogos chulos e vulgares.
Em determinado momento, o tirano faz citação
em italiano. Seu assistente pergunta quem é o
roteirista daquela joça, pois, se estão
no Império Romano, a citação teria
de ser em latim e não em italiano. Momentos adiante,
em reação à uma provocação
sexual, esse assistente diz (mais ou menos): "Mas isso
aqui está parecendo filme da Embrafilme". Um
outro tipo complementa (mais ou menos): "Mas a Embrafilme
é apenas para carioca". Assimila-se a metalinguagem
tão explorada pelo besteirol nos anos 70 e pelas
chanchadas nos anos 40, em mais uma operação
de auto-referencialidade e de ingerência pós-moderna
(por mais problemático que seja o emprego do
termo), aqui na fronteira entre a referência à
própria imagem e o contexto de sua produção.
Também não faltará uma piada sobre
Marx e O Capital, no qual se dá uma palmada no
comunismo de Estado, posicionamento político
que tem de ser levado em conta na posição
política nebulosa na diegese. Se não são
poucos os diálogos nos quais se coloca a opressão
ao povo, a luta travada no filme não é
pela mudança da configuração de
poder e de classes, mas no sentido de se preservar a
linhagem da classe endereçada à hegemonia
política. Busca-se a manutenção
da legitimidade de perpetuação de uma
ala na liderança. E essa ala, tanto quanto seus
usurpadores, faz do povo, representado pelo trombadinha,
um brinquedinho sexual, embora o salve da mão
dos vilões. Estaria o filme aderindo a heroína
ou venda-a com olhar crítico? Uma pista: na última
cena, ao passar pela câmera à cavalo, de
costas, a princesa afasta-se da lente, conseqüentemente
de quem realiza e de quem assiste à realização.Ela
não está entre nós.
São outros os objetivos preliminares de A
Terapia do Sexo, mas, dentro de sua proposta pedagógica
sobre as disfunções sexuais, vemos um
trabalho com a imagem com uma assinatura a gritar. Primeiro
plano: imagem de uma claquete, do contra-regra, a ordem
de "ação". Surge em plano médio
o psicanalista Gaiassa, sentado atrás de uma
mesa, com um espelho ao fundo, no qual vemos refletida
câmera e equipe. Essa auto-referencialidade permanecerá
na forma fake com que as cenas são elaboradas.
Em uma sucessão de esquetes, ilustrativos de
letreiros sobre pendengas sexuais mais comuns entre
casais, busca-se a deserotização da situação.
Os atores fazem esforço para vermos como estão
sem nenhuma espontaneidade diante da câmera. São
canastrões, artificiais, anti-ilusionistas. É
inegável que, nessa artificialidade visual e
na mecanicidade dos gestos, há viés cômico.
Ri-se da própria representação,
não das situações ou dos tipos.
O cenário de estúdio pé rapado
é mocromático, com cores fortes e diferentes
em cada quadro, sempre a salientar a mentira a nós
apresentada. Segue-se um bloco com um infectologista
falando sobre doenças venéreas. Deixa-se
a câmera lá, o doutor a falar, como zumbi,
sem carisma. No bloco seguinte, ilustra-se, não
sem humor bizarro, uma consulta ginecológica.
Vemos um médico, sua assistente e uma paciente.
Close na assistente: expressão de tensão.
Close na paciente: primeiro expressão de prazer,
mordidas no lábio, depois expressão de
dor, com direito a um sacudir de cabeça, seguido
de de erguer a coluna. Ao se tratar a mise-en- scène
dessa forma, com explícito objetivo de nos levar
a rir da própria mise-en-scène, Ody Fraga
afasta-se da pedagogia e, de maneira hilária,
valoriza a própia mise-en-scène. Põe
o cinema à frente dos objetivos sociais.
Chegamos ao caso de Vidas Nuas, o mais problemático
de se analisar, ainda que superficialmente, por conta
de seu próprio percurso de produção.
Temos dois modelos de cinema: um vagabundo em sua tentativa
de reprodução da decupagem clássica,
cuja prática um tanto primitiva o coloca em estágio
pré-Vera Cruz e Maristela, outro com pontos de
contato com a estética moderna, não sem
ecos da gênese da Nouvelle Vague, com trechos
que nos remete ao primeiro Louis Malle (Ascensor
para o Cadafalso). A convivência entre o velho
e o novo são gerados pelo contexto. Vidas
Nuas foi rodado em 1962, abandonado com a falência
dos produtores, depois montado por Silvio Renaldi em
1967, não sem antes receber cenas adicionais
feitas por Galante. A filmagem original, cujos conflitos
giram em torno de um polígono afetivo envolvendo
personagens da burguesia paulistana (todos em crise,
impotentes e entediados), são estéticamente
anacrônicas. Com exceção de uma
passagem, realmente impactante, com vários ângulos
de uma mulher em sua relação com um relógio
(com o tempo), que pode nos conduzir a O Ano Passado
em Marienbad, de Alian Resnais, o restante é
uma coleção de erros (de eixo, inclusive).
Já as tomadas de passagens urbanas e imagens
do mar, feitas por Galante e inseridas por Renoldi,
valorizam a localização espacial da ação
e a valorização de instantes autônomos,
que não avançam a narrativa, não
tem funcionalidade para seu entendimento, apenas existem
em si mesmas.
Esses dois tempos condensados em uma linha de ações,
o da filmagem em 1962 e o da montagem em 1967, colocam
em atrito com os contextos históricos da captação
e do lançamento. Isso é exemplar em um
diálogo no qual um intelectual, consciente de
sua condição de decadência enquanto
figura social, fala sobre o fim de um período
e de uma classe social, a burguesia. O personagem fala
do Brasil de 1961-1962, com sede de transformações,
mas só é ouvido três anos após
o golpe militar, já às vésperas
do encurtamento das rédeas, via AI-5. Ouvi-lo
no Brasil de 2004, após oito anos de um intelectual
no poder e ano e meio após a posse de um ex-operário,
não deixa de ser sintoma de como, em pouco mais
de 40 anos, os discursos vão e voltam ciclicamente,
assim como os modelos estéticos hegemônicos.
Vidas Nuas é um exemplo de como um mesmo
filme pode incorporar, circunstancialmente, diferentes
condições de produção e
linguagem distintas para atender certa demanda. Estão
lá o cinema de estúdio e o cinema da vida.
Estão lá o Brasil pré-promessas
de reformas de base e o Brasil cheio de ceticismo pré-superlotações
dos porões. Estão lá também
o Ody Fraga pré-Boca do Lixo e o Antonio Galante
da Boca, mas antes dela, com o posteriormente multiplicado
procedimento de extrair qualquer coisa de pedra.
Cléber Eduardo
|