Nostalgia
Andrei Tarkovski, Nostalghia, Itália/URSS, 1983

Nostalgia como o desejo do retorno – de um vazio incondicional, de uma essência que estaria ecoada enquanto ruptura com o presente. Religião, religar-se: um certo sentimento de abismo que parece tender sempre a um inalcançável. Nostalgia como a loucura, essa memória do novo, a "voz que não escutamos". Tarkovski traça um filme nos limites do humano, como anjos caídos a ouvir (ao longe) as palavras de um Deus nunca-presente, por entre pilastras frias e atravessadas pela presença de um Ser indefinível. O poeta russo carrega a memória de seu passado, o louco Domenico carrega o desejo de a um só tempo poder esquecer-se de tudo e relembrar-se do Todo. Nostalgia aparece como esse sentido inescapável de eternidade, de que há algo de sempre pequeno e de sempre inexprimível em cada gesto que ultrapassa as diferenças sociais, culturais, políticas, econômicas... humanas.

O mundo nos aparece como uma espécie de caverna, de masmorra cheia de belezas ímpares, mas úmida e enevoada como as piscinas de água quente. As vozes (e Tarkovski passeia com a câmera encontrando vazios e nucas), parecem vir de algum lugar-outro que não das bocas de seus personagens, de suas figuras, de seus vultos. O som pregnante de goteiras, de serras elétricas, de cantos ecoados pelos corredores do hotel/casa-de-banho onde se hospeda o professor: tudo remete ao cenário inicial do templo de Nossa Senhora do Parto, onde mulheres caminham em círculos, murmurando nas sombras. Os raccords falsos, a câmera que descobre paredes em travellings sem rumo, os personagens que surgem de baixo do quadro como que se erguendo do chão, as paredes enrugadas (e, nesse sentido, a cenografia do filme é primorosa).

Há uma fantasmagoria que percorre a narrativa, onde os corpos circulam, passeiam, em movimentos marcados, duros, como as representações inertes de figuras-imagens que estão não-mais-ali (como as estátuas de que fala Domenico). É o gesto da pesquisa, da arqueologia (a busca pelo passado) que vai desencadear, nesse labirinto, a possibilidade de alguma ruptura, de algum sentimento de recomeço intuído, mas nunca enxergado. É a partir do encontro do taciturno professor (em sua busca pelas memórias de um compositor russo obscuro) com o misterioso Domenico (funcionário da casa-de-banhos) que o filme se conjuga em direção a uma trágica e incontornável alegria. Incontornável como a promessa de atravessar a piscina levando nas mãos a pequena vela acesa...Como se todo o filme, todo o perambular da câmera parecesse nos levar, hipnotizar (em um mantra) em direção às duas seqüências finais: a da morte-suicídio de Domenico em meio à cidade de Roma (a imagem-clichê da cultura ocidental) e a do atravessar da piscina com a vela nas mãos. A articulação entre essas duas seqüências funciona como o desaguar de todos os minutos anteriores do filme.

Primeiro, o momento trágico em que Domenico põe fogo no próprio corpo (diante de uma multidão de estátuas, de mármore e de carne) e ouvimos a Ode à Alegria de Beethoven (numa trilha sonora diegética/não-diegética em que não vemos a fonte da música, embora percebamos que ela está sendo reproduzida "dentro do filme", por um aparelho precário), seguida do grito seco do homem que sente seu corpo tomado pelas chamas. Em seguida, segundo momento, vemos as mãos do professor tentando acender o pequeno pavio de um pedaço de vela. Diante de uma piscina de águas termais, agora vazia, tem início uma das cenas mais antológicas de toda a filmografia de Tarkovski: num único plano-seqüência, acompanhamos o professor levar (entre as palmas das mãos) a chama frágil da vela, indo de um lado ao outro da piscina. Apesar de todo cuidado e concentração do professor, a umidade do ambiente é muito grande e a vela insiste em se apagar. Mas o professor continua sua tentativa, reacendendo a vela, e repetindo o trajeto desde o início. A mesma força destrutiva do fogo agora aparece naquela pequena e frágil chama, tão suscetível a se apagar a qualquer momento, a qualquer movimento brusco. É a insistência, a resistência – um sentido primordial de promessa e da vontade – que fazem com que o professor perpetue sua tentativa... até conseguir.

Esse pequeno ritual, simples, aparece no filme como a imagem-limite, como o gesto de reencontro final do personagem com toda a densidade e o peso de suas lembranças (e daquilo que, em seu corpo, se torna inexprimível). A umidade do ambiente, a batalha entre o fogo e a água (que cria o vapor denso das piscinas termais e que o impede de enxergar mais adiante). Em off, o professor só consegue grunhir, como se tivesse se ultrapassado, enquanto vemos a vela já posta do outro lado da piscina. Final do percurso, do ritual, do calvário – restam as reticências de uma imagem preto-e-branco onde o professor finalmente se deita "por dentro" de seu passado, ao lado de um velho cão, e fita o céu distante agora refletido no chão, numa poça d`água. Tarkovski finda assim essa pequena obra-prima de cinema-posado e de poesia gráfica; apostando em imagens que são antes de tudo sintomas pulsantes, tensões da forma e dos sons, numa vivacidade que se não está localizada em cada um de seus personagens-estátuas, parece percorrer o filme como uma espécie de energia não-localizável, intuída, tão frágil, tão poderosa e tão passageira quanto a chama que queima (que tanto pode atravessar os corpos quanto desaparecer em um leve bufar de vento) e que alguns chamariam de "fé". Não uma "fé" resumida neste ou naquele estatuto, mas uma "fé" primordial, talvez, na própria sobrevida do cinema para além de tudo o que se possa alcançar, que se possa conter nas imagens. Nostalgia, mais do que um retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo, de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador) com um sentido indecifrável de eternidade. E esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.

Felipe Bragança