Na virada entre as décadas
de 1950 e 60, diversas cinematografias começaram
a ganhar prêmios em festivais e espaço
no mercado internacional. Limitado pelas políticas
culturais estalinistas, o cinema russo chama a atenção
com dramas passados na segunda guerra, vistos então
como líricos ou poéticos - Balada do
Soldado e Quando Voam as Cegonhas os mais
conhecidos – que o tempo mostrou serem demasiado piegas
e submissos aos ditames do "realismo socialista".
Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1961 e
escrito por Vladmir Bogomolov a partir de um conto de
sua autoria, A Infância de Ivan poderia
ter sido apenas mais um desses dramas, não houvesse
o projeto sido entregue a um jovem cineasta que faria
então sua estréia em longa-metragem: Andrei
Tarkovski. Este havia chamado a atenção
com o média O Rolo Compressor e o Violino
e assume o comando com o projeto já em andamento.
A Infância de Ivan, portanto, não
é um trabalho de todo autoral, mas Tarkovski
já começa a impor sua marca e estilo pessoais,
que ficariam mais evidentes a partir do segundo longa,
Andrei Rublev.
As primeiras imagens, com Ivan em meio à floresta
e recebido por um sorriso materno, que dão uma
falsa idéia de que o filme seria mais um espetáculo
de lirismo sentimental, são bruscamente interrompidas
por explosões, que acordam o garoto de seu sonho.
Refugiado num moinho, Ivan foge dos alemães atravessando
um rio. Quando ele chega a um posto do exército
russo, vemos que o rosto demasiado sério e embrutecido
do garoto de doze anos, um olheiro do exército
russo, contrasta com o do Ivan que antes fora visto
interagindo em paz com a natureza. Em poucos momentos
está definida a linha central do filme, que alterna
a dura realidade da guerra com os sonhos de Ivan, evocativos
de um passado de pureza, antes de sua família
ter sido massacrada pelos nazistas. Essa visão
da guerra através dos olhos de uma criança
ou jovem que dela participa de forma ativa mostra-se
praticamente uma tradição no cinema russo,
vindo a render posteriormente outros ótimos filmes
como Vá e Veja ou Não se Mova,
Morra, Ressuscite.
Aos poucos vamos percebendo que Ivan e a guerra são
indissociáveis. Sua figura frágil contrasta
com sua postura dura e autoritária, até
mesmo para com oficiais superiores, que desejam tirá-lo
das linhas de combate e enviá-lo a uma escola
militar. Ele foge, como antes houvera fugido do orfanato,
insistindo em ser enviado a uma nova missão.
Mesmo imerso em desejos de vingança e completamente
ciente de seu destino, Ivan consegue construir entre
as tropas um substituto para o meio familiar (principalmente
com o tenente Galtsev e o capitão Kholin, que
o acompanham em missão) e cria, a seu modo, com
maturidade e sem inocência, um espaço lúdico
no campo de batalha. A pureza fica para os sonhos. Essa
maturidade de Ivan, como também dos protagonistas
dos outros títulos citados no parágrafo
acima, se opõe sobremaneira à visão
de personagens de filmes americanos que vivenciam a
guerra na infância, caso de Império
do Sol de Spielberg, onde o protagonista segue idealizando
a guerra em sua cabeça e vendo os aviões
como imensos brinquedos.
É, portanto, essa visão banhada em desilusão
que distingue A Infância de Ivan de seus
demais congêneres no cinema russo da época.
Isso somado ao estilo, então nascente, que Tarkovski
acaba por impor. Já estão presentes elementos
característicos de obras posteriores: uma complexa
interação homem-natureza, vista em vários
momentos de Andrei Rublev; um mergulho, ainda
que incipiente, no processo mental da personagem, que
viria a ser radicalizado em Solaris; o retorno
onírico aos idílios do passado, presentes
com força em O Espelho; ou a visão
da margem oposta do rio, ocupada pelos alemães,
como um desconhecido a ser explorado, ponto de partida
de Stalker. Tarkovski também já
demonstra seu gosto e talento para conceber imagens
elaboradas com um virtuosismo que jamais se aparenta
excessivo perante o conjunto. Como, por exemplo, na
genial seqüência em que Kholin flerta com
Masha na floresta, coroada por um dos mais belos planos
jamais filmados, quando ele rouba um beijo da moça
segurando-a sobre uma vala com as pernas entreabertas.
Mesmo deixando sua marca principalmente nas cenas de
sonho – e, entre todas, aquela com os cavalos e a carroça
de maçãs se mostra a mais impressionante
–, Tarkovski parece estar também inteiramente
à vontade nas seqüências realistas,
já apresentando, neste primeiro longa, completo
domínio da narrativa. E o momento da travessia,
próximo ao final, quando Kholin e Galtsev deixam
Ivan em território nazista e circundam o rio
para resgatar dois cadáveres, repleta de tensão
e suspense, deixa bem claro que caso Tarkovski viesse
a se dedicar posteriormente a fitas de gêneros,
como ação ou thriller, seria igualmente
bem sucedido. Mas, para sorte do cinema, ele preferiu
trilhar seu caminho próprio, forjando a partir
de então uma trajetória ímpar que
o situaria entre os maiores cineastas da história.
Gilberto Silva Jr.
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