APRESENTAÇÃO DE TARKOVSKI


Mesmo para quem acompanhou a retrospectiva feita pelo Festival do Rio de 1999, em que foram exibidas cópias em película da maioria dos filmes de Tarkovski, o lançamento integral de sua obra em DVD cria excelente ocasião para ver aqueles filmes novamente. Ou, o que chega a ser de causar inveja, vê-los pela primeira vez e se espantar (pois o que se ouve/enxerga em filmes como Stalker e O Espelho, por exemplo, é muitas vezes da ordem do espanto). No caso de O Rolo Compressor e o Violinista, média-metragem de conclusão de curso do diretor, trata-se de ter acesso ao filme pela primeira vez no Brasil. A Infância de Ivan, seu primeiro longa, esteve na retrospectiva do festival, mas não possuía cópia em VHS. Além de O Rolo Compressor e o Violinista, o próprio Nostalgia, certamente um dos pontos altos da carreira do realizador, havia ficado de fora da retrospectiva em cinema, e agora ganha – curiosamente, até – duas versões em DVD (em tempo: a que foi lançada individualmente é um tanto mais interessante que aquela da caixinha da Continental).

A caixa Tarkovski traz, complementando os filmes, uma série de quatro volumes de DVDs só com extras, dos quais se destaca o último volume, com Dirigido por Andrei Tarkovski, o documentário de Michal Leszczylowski que consiste basicamente no making of de O Sacrifício, mas que traz também trechos de uma entrevista com Tarkovski à beira de um rio (local bem alusivo à sua obra) e uma entrevista da esposa dele. Desta última saem frases preciosas, como no momento em que ela afirma que, ao contrário do simbolismo que muitos críticos tentavam enxergar nas cenas oníricas de seus filmes, "Andrei viu os sonhos como processos físicos do corpo". Os trechos do roteiro de O Sacrifício mostrados no documentário revelam uma prática que vai contra toda a técnica ensinada nas escolas de cinema à mesma medida que casa perfeitamente com a idéia de cinema do diretor russo: o roteiro escrito no pretérito perfeito, e contendo informações absolutamente subjetivas. Enquanto materializador do tempo, Tarkovski não temia filmar fragmentos de uma memória tão emocional quanto seletiva (o paroxismo disso está em O Espelho). O presente do filme é já um passado, e não há separação entre uma e outra dobra do tempo, mas sim conluio. Suas impressões do tempo não foram alcançadas através do plano estático: a temporalidade era convidada pela sucessão espacial – travellings lentos, intermináveis, uma perscrutação de superfícies que poucos cineastas conseguiram realizar com tanta acuidade.

Não só como esforço de revisão, mas também ampliando a compreensão da obra de Tarkovski e provocando reflexões sobre os filmes que ainda estavam inéditos por aqui, Contracampo traçou um painel completo, da primeira à última imagem filmada por ele. Os textos aqui não se fixam a uma visão reduzida ou monopartidária sobre a rica filmografia do diretor. Se Tarkovski afirmava que o artista não deve ter a ilusão de que faz a si próprio, sendo ele produto de seu tempo e das pessoas com que vive, os textos da pauta recaem precisamente sobre esse aspecto, seja tematicamente (como os de O Rolo Compressor e o Violinista e de Andrei Rublev), seja por um "calor crítico" que faz os filmes parecerem estar sendo descobertos pela primeira vez. Boa chance de pensarmos juntos a evolução do artista em praticamente três décadas de uma carreira separada por intervalos longos, além de marcada pelo exílio na fase final. "Não peça a ninguém o que você mesmo pode fazer", ele, perfeccionista, dizia. Não deixe de ver ou rever os filmes desse cineasta extraordinário, nós aqui sugerimos. E desde já convidamos à leitura.

Luiz Carlos Oliveira Jr.