Andrei Rublev
Andrei Tarkovski, Andrei Rublyov, URSS, 1969


O que leva Andrei Rublev a pintar a célebre "Trindade", que sintetiza os ideais de fraternidade, de amor e de serena santidade? Da mesma forma que o monge do século XV, Andrei Tarkovski se lança na tortuosa busca espiritual pela verdade: trata-se de conhecer o mundo a ponto de descobrir-lhe a beleza oculta, cuja revelação através da complexidade da criação artística é o momento único e extraordinário que justifica toda a existência e, por conseguinte, a vida.

Andrei Rublev não possui caráter histórico ou biográfico. Dividido em episódios, dos quais nem sempre o monge-pintor participa, o filme abdica da ordem cronológica clássica para se moldar às intenções subjetivas do cineasta de analisar e de compreender a natureza poética de seu personagem. Como o escultor que, do bloco de mármore, retira o excesso até chegar à obra, Tarkovski esculpe o tempo, centrando-se apenas nos acontecimentos fundamentais da vida de Rublev que possam expressar as relações entre o mundo e a arte, entre a exterioridade e a interioridade, bem como as dúvidas e os tormentos do criador na sua procura pelo conhecimento e pela verdade.

Assim, Rublev se afasta do personagem tradicional, cujas ações sobre o mundo determinam a trama e a movem à frente. O monge-pintor, ao contrário, comporta-se como observador da realidade, incapaz de com ela interagir: exteriormente estático, o interior do protagonista arde de paixão pelo que se lhe apresentam aos sentidos do corpo. De fato, o interesse primordial de Tarkovski está na eterna dicotomia entre o Dentro e o Fora, ou seja, quando a alma descobre, perplexa, a insuficiência do "eu" e, em conseqüência, esquadrinha o visível para encontrar o "outro" que a complemente. A arte como ato de fé, que reconcilia o subjetivo e o objetivo a fim de celebrar o mistério da vida.

No entanto, o movimento de apreensão sensível da experiência empírica não se dá sem conflito, sem tensão, pois o desejo da alma de se fundir ao mundo pressupõe, inevitavelmente, o medo de ser por ele corrompida. Em Andrei Rublev, a realidade medieval russa, vista pelo monge, é sórdida, violenta, cruel: as invasões tártaras que destroem a cidade de Vladimir, os ritos pagãos na floresta que aniquilam a fé, os ciúmes do assistente Kirill quanto à arte do mestre, os desmandos da nobreza feudal que oprime os camponeses, a jovem que se entrega aos soldados de ocupação. Abalado por este profundo caos e pelo conhecimento abjeto que ele dissemina, Rublev se perde, mata um homem, iguala-se à barbárie que o cerca.

Confrontado à terrível tangibilidade do real, onde buscar, neste exterior, a verdade, o sentido da existência que satisfaça ao espírito? Sem respostas para tamanho paradoxo, Rublev isola-se do mundo, fecha-se em sua interioridade para se purificar da corrupção na qual está mergulhado: ao renegar a pintura e a fala, o monge reforça o personagem observador e passivo proposto por Tarkovski.

Como acreditar no Fora, como voltar a ter fé? Segundo Andrei Rublev, por meio da criação artística, demonstrada no maravilhoso episódio em que Boriska deve construir um sino para seu senhor, sob pena de decapitação caso o objeto não badale. Seguindo sua intuição, rechaçando as opiniões alheias, mantendo a integridade da idéia original, não fornecendo concessões de qualquer espécie, Boriska encarna um legítimo "autor", cuja inabalável crença em sua arte (que se mostra pura fé, visto que não embasada na técnica ou na ciência) contamina Rublev, o qual retorna, a partir do processo de identificação com o jovem sineiro, à pintura de ícones.

A tensão permanente entre interior e exterior, entre o Dentro e o Fora, explode na profusão de cores da seqüência final, que explora, em detalhes, a "Trindade" de Rublev. Mais do que revelar a beleza escondida do mundo, a arte a constrói, inventa-a por seus próprios meios, funda o instante que permite não ver de novo, e sim olhar o novo, momento ímpar que oferece razões para se continuar a viver. A questão, enfim, é manter a fé em um Dentro co-presente ao Fora, como indica o último plano do filme, no qual a realidade, a cores tal como a pintura que o precede, torna-se ela mesma uma obra-de-arte.

Paulo Ricardo de Almeida