24 Horas de Sonho
de Chianca de Garcia, Brasil, 1941 (P/B)

AMADORA DE SUICÍDIOS

24 Horas de Sonho não é um filme muito lembrado em nossa cinematografia. Não há sobre ele qualquer menção no livro História do Cinema Brasileiro, e mesmo seu diretor, Chianca de Garcia, só é citado no livro como roteirista e diretor de um filme anterior da Cinédia, Pureza (1940). No entanto, há diversos motivos que fazem crer que trata-se de um filme que – se não exatamente um marco na história do cinema nacional – traz motivos temáticos e estéticos suficientes para ser considerado um destaque no período em que foi realizado. Ainda mais: 24 Horas de Sonho é o único longa-metragem do cinema brasileiro em que aparecem como atores a dupla Dulcina & Odilon, casal de suma importância para nosso teatro.

1941 é um ano decisivo para a criação de um modelo cinematográfico que dominou o imáginário do cinema brasileiro – sobretudo o carioca – até meados dos anos 50: a comédia carnavalesca. Em 1941, nasce a Atlântida Cinematográfica, que com filmes de Watson Macedo e José Carlos Burle foi a principal sistematizadora do que veio a se convencionar, de forma um tanto preconceituosa à época, sob o nome de "chanchada". Não que já não houvesse exemplos anteriores, inclusive da própria Cinédia: tanto o perdido Alô Alô Brasil (1935) quanto Alô Alô Carnaval (1936), além do pioneiro Coisas Nossas (1931, de Wallace Downey, produzido por Alberto Byington), aproveitavam-se da chegada do verão par estrear e continham, em certa medida, influências narrativas herdadas do rádio.

Mas 24 Horas de Sonho de forma alguma pode ser considerado uma chanchada. Sua matriz parece mais próxima das comédias americanas sofisticadas realizadas por Ernst Lubitsch, num interesse pelos cenários luxuosos, por um certo amoralismo dos personagens, mas acima de tudo por detalhes da trama, como os nobres europeus decaídos ou uma trama sobre roubos de jóias que mais de uma vez trazem à mente Ninotchka, realizado dois anos antes. Só que o mais curioso do filme, e o que faz dele um objeto notável diante da produção da época, é a inuagural tentativa de mesclar o repertório dos filmes "sérios" com o das comédias de repertório "baixo", geralmente as de tom carnavalesco.

Se podemos ver, num momento de humor sutil surpreendente, o Cristo Redentor dando as costas à personagem que tenta pela enésima vez o suicídio, vemos no momento seguinte nossa heroína burlescamente envergonhada diante de um policial que chega à cena e interrompe o ato suicida. 24 Horas de Sonho faz com tranqüilidades e sem nenhum pudor a passagem da comédia elegante ao pastelão, algo que no seio da produção da época, cheirava a anátema. Mesmo nos filmes da Cinédia, os projetos mais ambiciosos – Bonequinha de Seda, Ganga Bruta – pareciam exercer diferença clara em relação àqueles destinados a fazer funcionar o fluxo de caixa.

Uma ex-empregada doméstica, amadora de suicídios (como no pré-título do filme de Julio Bressane mais tarde chamado Crazy Love), à solta entre os nobres europeus dentro do Copacabana Palace. Soa, 25 anos antes, um pouco como Caetano Veloso cantando o "Coração Materno" de Vicente Celestino e deflagrando o lema tropicalista de vender biscoitos finos para as massas. É assim que Clarice, vivida de forma exuberante por Dulcina de Moraes, finge que é a Baronesa das Torres Altas – idéia que tem ao ver um cartaz afixado na parede no momento de fazer o check-in no hotel –, e vive suas vinte e quatro horas de sonho visitando um palácio, flertando com outro espertalhão que se faz de rico – Odilon Azevedo, seu eterno parceiro –, vestindo-se bem e ornando-se com as mais belas jóias.

24 Horas de Sonho, como sua protagonista, não tem nenhuma necessidade de se decidir entre o "luxo" e o "lixo". Existe no filme o Copacabana Palace como reduto da classe alta na mesma medida que existe o rádio popular para o divertimento das classes baixas. Da mesma forma que Clarice veste uma máscara luxuosa, a de nobre européia despossuída pela guerra, ela também interpreta a "Mulher Sherlock", como caloura de rádio que responde adequadamente a uma série de enigmas e transforma-se em sucesso imediato. Nenhuma faceta é excludente, e todas são complementares. Comportamento social, parece dizer o filme – e nisso vai até uma crítica talvez não-intencional ao desejo que existia muito na época e que sobreviveu, de certa forma, até hoje, o de fazer "filmes sérios" –, é apenas uma questão de teatro.

Last but not least, é imprescindível destacar o trabalho corporal de Dulcina de Moraes, responsável por um filme à parte quando, completamente bêbada – a camareira, interpretada por sua mãe, a também atriz Conchita de Moraes, diz que ser nobre é beber muito e não perder a pose –, ela persegue o ladrão que tenciona roubar as jóias valiosíssimas de outra nobre hospedada no Palace. Dulcina desenvolve uma espécie de tateio desajeitado, entre o burlesco e a dança experimental, que encantam pelo equilíbrio e pelo controle de movimentos. Outros destaques são o humor negro do filme, tanto no que tange ao tratamento do suicídio sem pruridos morais e à questão social ("Então por que o senhor não se suicida?", diz Clarice ao gerente do hotel), e a notável interpretação de Aristóteles Penna, como o chofer de táxi e filósofo de plantão Cícero, espécie de anjo da guarda da heroína.

Eis que, quando tudo se acaba, a Mulher Sherlock vai poder exercer sua pose de baronesa. As máscaras se conectam. E a interpenetração de repertórios é possível.

Ruy Gardnier


Filmografia

Chianca de Garcia (1898-1983):

1930 Ver e Amar (produção portuguesa)

1936 O Trevo de Quatro Folhas (produção portuguesa)

1938 A Rosa do Adro (produção portuguesa)

1938 Aldeia da Roupa Branca (produção portuguesa)

1940 Pureza

1941 24 Horas de Sonho