Respiro
Emanuele Crialese, Respiro: L'île de Grazia, Itália/França, 2001

Os primeiros planos surgem: a vida na ilha, as crianças brincando, o mar. Construído principalmente em cima de planos gerais, o filme nos dá antes a percepção daquele ambiente, da vida naquele lugar, a câmera como lápis exato para um tratado de etologia. Ela analisa com dedicação o comportamento de dois grupos de crianças que brigam entre si, sem apoiar-se inicialmente em nenhum personagem-guia: Respiro começa como se o filme se tratasse mais de "ilha" do que de "Grazia", a protagonista interpretada por Valeria Golino. A doce sensação de perder-se no relato de uma história sem personagens vai se fechando aos poucos, quando apenas uma das famílias daquela ilha passa a ser tratada com mais ênfase. Aos poucos o filme vai deixando o geral e entra no particular, como se a ficção fosse se fazendo sozinha, por escolha doss acontecimentos e não de uma história pré-formatada e pronta para ser digerida.

Se o começo do filme é puramente físico e descritivo – mostra corpos e os comportamentos desses corpos em movimentos –, a continuação manterá suas propriedades, aplicando-as não mais ao conjunto da cidade, mas à família retratada. O documentário etnográfico se transforma em A Woman Under The Influence, de Cassavetes. Grazia é uma mulher, mãe de dois filhos e uma filha já adolescente, casada, aparentemente vivendo o dolce far niente de uma pequena ilha paradisíaca no Mediterrâneo. Ela sofre, contudo, surtos de grande raiva e felicidade, procedimentos anti-sociais, perigosos para a convivência numa comunidade tão pequena e regulada pelo respeito à moralidade. Respiro mostrará como uma mulher passará de musa da cidade a puta da vila, e de lá a santa. Poucas vezes houve tema mais italiano.

Falou-se em Cassavates, e não é sem sentido. Tal como o diretor de Faces realizou com sua esposa Gena Rowlands, Emanuele Crialese prefere trabalhar com Valeria Golino (numa atuação de tirar o fôlego) os gestos físicos, os reflexos, os momentos bruscos. A perturbação de Grazia é tomada mais em seu dado físico do que em sua psicologia: ela vai tomar banho de mar numa da barrriga para cima na hora em que o barco pesqueiro de seu marido passa (com todos os tripulantes observando o espetáculo), ela se oferece para sair num passeio de barco com dois turistas desconhecidos, ela vai dar banho nos cachorros e acaba molhando a casa inteira e banhando-se à maneira de uma criancinha, ela abre o canil da ilha procurando um de seus cachorros e cria uma celeuma insustentável...

Se Emanuele Crialese preferiu a fisicalidade ao invés da psicologia, é menos por preferir as ações aos pensamentos do que por querer mostrar um retrato de uma personagem que perturba um sistema vivo ontologicamente, como pura expressão de si mesma. Se a psicologia se ajuntasse ao filme, Grazia seria tomada ou como a perseguida injusta que uma cidade covarde e omissa proscreve, ou como a doente irreconciliável que deve ser expulsa daquela comunidade antes que consiga destruir mais do que destruiu. Grazia é ao mesmo tempo uma e outra, a potência ingênua de vida e a potência autodestruidora do instinto, nem só um nem só outro. Outra beleza de A Ilha de Grazia é saber aproveitar o tipo de comunidade que existe numa ilha pequena. Nem exatamente uma sociedade, nem propriamente uma família, o povo dessa ilha permeia-se de ambos. Quando um novo policial chega à ilha, decide parar a mobilete de Grazia com mais dois filhos, ao que ela logo pergunta: "Você é novo aqui, não?" Um juízo de sociedade como aquele ("Ela oferece perigo público ao carregar mais de uma pessoa em sua mobilete") só poderia ser feito por alguém que acaba de chegar naquele lugar e é alheio aos códigos. Assim, a decisão final – devemos ou não queimar Grazia? – também será decidida por essa ambigüidade: como familiares, salvamos sua vida e a vida de seus próximos ou, como sociedade, proscrevemos seus atos em nome de um ideal de sociabilidade ao qual devemos nos ater? No balanço entre os dois, Respiro consegue extrair uma beleza rara, bruta, poesia instantânea como cada gesto reflexo de sua protagonista.

Ruy Gardnier