O Outro Lado da Rua
Marcos Bernstein, Brasil, 2004

Há uma atmosfera programática em O outro lado da rua que faz do filme não muito mais do que um objeto morno de observação. Para um filme que trata de sentimentos em ebulição e da descoberta de afetos, a frieza da narrativa (empregada pelo roteiro e direção do estreante Marcos Bernstein) contribui apenas impedindo, no final das contas, que o filme provoque qualquer impacto ou qualquer tipo de sentimento forte no espectador.

"Provocar", essa talvez seja a palavra em falta no vocabulário cinematográfico do filme, por demais preocupado em "cumprir" as artimanhas e manhas de seu roteiro. De alguma forma, O outro lado da rua repete o padrão dos recentes filmes brasileiros a receber a famigerada ajuda do "Laboratório de Roteiros de Sundance" (vem à cabeça, de cara, Durval Discos), cujo principal sintoma parece ser a estranha inconsistência com que tentam se apropriar de um cinema de gênero apenas como exercício de amenização formal da invenção e, por outro lado, parecem se aproximar de um cinema de invenção apenas como forma de dar às obras o frágil status de "obra de arte".

O resultado, como se pode ver nesse O outro lado da rua, é um cinema marcado pelo esmaecimento da linguagem, em que as seqüências parecem antes estar obedecendo ao roteiro do que se utilizando dele como potencializador de imagens. Essa é a marca central dessa espécie de amestramento que os roteiros cinematográficos parecem sofrer através de Sundance um certo ar de cartilha esfriada, apinhada de pequenas sacadas/tiradas de falas marcadas, mas incapaz de ser o que deveria ser o grande papel de um bom roteiro: dar ao filme a base de possibilidades justamente de ultrapassá-lo. Em O outro lado da rua, tem-se a impressão de que cada cena está ali colocada funcionalmente, repetindo diretrizes narrativas sem qualquer vivacidade cênica.

Mesmo as elogiáveis interpretações de Fernanda Montenegro e Raul Cortez aparecem perdidas, indecisas entre um naturalismo mais livre e um cinema de tipos (que parece demarcado pelas falas, algumas habilidosas, escritas por Bernstein). Raul Cortez, talvez por trabalhar com um personagem mais contido/duro, acaba por alcançar um tom de voz e fragilidade que (bem mais discretos do que a "figura" da personagem Regina) se segura melhor nessa flutuação incerta de estatutos. Não coloco aqui em cheque a habilidade corporal de Fernanda Montenegro, mas a forma como a narrativa é incapaz de apresentar-lhe uma sintonia/direção clara de interpretação. Fazendo com que o desenrolar do filme se torne um refém de si mesmo, dependente das pequenas iluminuras que a atriz sabe impôr aqui ou ali em seus passos, a um só tempo, marcados e indecisos.

Essa imprecisão, essa deriva involuntária (intra e inter-cenas) entre um cinema-posado e um cinema de improvisos acaba mesmo minando a suposta atmosfera de suspense que o filme tenta empregar. Ou seja: o filme "informa" que há suspense, o filme "informa" que há um possível perigo, o filme "informa" que a personagem esteja temerosa e confusa emocionalmente – mas em nenhum momento a construção de linguagem e atmosfera cênica consegue fazer com que o filme atice esses afetos físicos/fortes no espectador. Não há suspensão alguma de sentidos no suspense de O outro lado da rua: está tudo muito dado, mastigado, mecanicamente repetido dentro dos lugares comuns "da solidão urbana" e da "velhice". A própria vida caótica de Copacabana se transforma num pano de fundo reiterativo, sem vida, em que o filme dá muito pouco tempo a seu próprio tempo para escapar de si e, possivelmente, surpreender. Mesmo a bela cena de amor entre Regina e o "suspeito" parece muito aquém de seus atores, tamanha a gana da narrativa em seguir sempre adiante, sempre adiante; num dinamismo de eventos esvaziados (e irritantemente ornados por uma trilha sonora calculada para encontrar as lágrimas...).

De repente, o filme acaba. E a sensação é de que essa beleza possível se perde em tamanho sentimentalismo de laboratório, fazendo-o passar sem provocar (de novo a palavra) qualquer vestígio, qualquer pegada mais firme – transformando um cinema salpicado de algumas boas premissas num objeto frio e de resultado não mais do que decepcionante. Resta, sim, ali, um ou outro olhar entre os dois atores, alguns silêncios adoráveis, um certo tom de voz que Montenegro encontra nessa ou naquela frase e que, por vezes, vale mais do que todo o resto do filme... E não muito mais do que isso.

Felipe Bragança