Minha Vida sem Mim
Isabel Coixet, My life without me, Espanha/Canadá, 2003

A pergunta se impõe: é possível chamar de ato de caridade ou de honestidade aqueles que são feitos apenas para que outras pessoas tomem conhecimento e considerem seus realizadores pessoas "caridosas" ou "honestas"? Não estariam seus perpetradores automaticamente excluídos dessas categorias, pela simples motivação de seus atos? Pois a pergunta vale, quando pensamos em Minha Vida sem Mim: como chamar de "sensível" um filme que parece obcecado em cada plano em "parecer sensível"? O filme usa uma série de artifícios de linguagem que parecem se ligar à uma noção de "sensibilidade" com tal frieza que há sempre um inequívoco distanciamento entre o espectador e o objeto deste dito "olhar sensível". Na verdade, o problema parece ser de ordem dupla: com esses artifícios o filme parece querer atingir o espectador como "sensível", mas ao mesmo tempo negar sua condição melodramática ou manipuladora. Só que do jogo duplo não pode emergir mais do que um esquizofrênico exercício de "morde-e-assopra" cinematográfico.

Como se sabe, o tema do "doente terminal" é dos mais explorados pela dramaturgia, especialmente nas produções para TV que costumam passar no nosso querido Supercine. A diretora Coixet parece auto-consciente demais disso o tempo todo, querendo fugir de ser enquadrada em tal categoria, sem no entanto perceber que (lição que podia ter aprendido, aliás, de seu padrinho artístico e produtor executivo, Pedro Almodóvar) o abraço ao melodrama não será nunca um problema em si, e sim de que tipo de releitura de gênero se poderá montar a partir dele, que honestidade e entrega pode criar entre espectador e personagens, entre espectador e narrativa (porque se o melodrama é o gênero da entrega, por natureza, como alcançá-la quando a diretora o nega?). O que é toda a recente produção de Almodóvar senão um diálogo em alto nível com a tradição do melodrama? Temos ainda outros felizes (com trocadilho) exemplos recentes podem vir do estudo de caso de Todd Haynes em Longe do Paraíso, ou do aparente mapeamento da matriz genética latino-americana do gênero melodramático por alguns cineastas argentinos (o mais recente exemplo entrou em cartaz por aqui junto com o filme de Coixet - Valentin, de Alejandro Agresti).

Coixet parece ter vergonha o tempo todo de sua matriz melodramática clara (mas, ora bolas, o filme é narrado em off pela pessoa que vai morrer!), e a evita tanto com procedimentos de linguagem (se filiando ao "modus filmicus" do cinema independente pela granulação e jogo cromático alterado da imagem, pela câmera inquieta, pela montagem em cortes descontínuos) quanto por golpes narrativos (o uso dos personagens "offbeat", "estranhinhos", ou a negação da morte como tema entre os personagens - evitando grandes explosões de sentimentos). No entanto, como sua confiança em seu talento de emocionar pela via do distanciamento não a deixa segura, então ela carrega na música, nos tons explicativos da pior estirpe - aquele que tenta suprir a ausência da possibilidade fílmica do artifício do discurso interior do personagem (típico da literatura, matriz, aliás, do filme - uma adaptação literária), e até mesmo num uso quase grotesco da câmera lenta, como no desfecho do filme. Com isso, o filme trafega o tempo todo num meio termo absolutamente covarde entre manipular e negar que o está fazendo, bem envergonhado.

Mas, o pior de tudo é o trabalho com personagens que ela opta por fazer por conta desta opção. Definido que se trata de um filme "sensível", que vai querer a adesão do espectador sem, no entanto, deixar de ser "muderno", Coixet se agarra ao mais triste método de manipulação: o que nega tridimensionalidade, vida própria aos personagens. Filmado com desejos de extremo realismo, de "vida como ela é" (a câmera e o estilo nos dizem isso o tempo todo), seu desenho de personagens nada deixa a dever ao mais óbvio trabalho de tipos: o marido compreensivo, o amante atormentado e romântico, o médico amigo e emocionado. Todos não passam disso: tipos - e uma boa pista para isso é a escalação de figurinhas fáceis do circuito "alternativo" do cinema mundial em papéis mínimos, como que a emprestar estampas aos seus personagens e prestígio ao filme ao mesmo tempo (Amanda Plummer, para variar, faz a "doidinha" de plantão, Maria de Medeiros surge como uma cabeleireira excêntrica, etc). Destes, o pior é mesmo Mark Ruffalo como o "amante extra-sensível", um personagem tão ruim quanto a interpretação do ator.

No meio dessa unidimensionalidade (que é bastante melodramática, mas por isso mesmo anti-naturalista por definição), mesmo a personagem principal tenta ser afogada, por exemplo, por sua narração em off - que a empresta qualidades de quase santa, de figura que passa pelo martírio sem perder por um segundo uma mistura de retidão de caráter e compreensão da vida que não se poderia esperar dela. Há uma necessidade de tornar a ela também a encarnação da diretora: "sensível", acima de tudo, mas sem perder jamais a superioridade e compreensão com todos os seus "anjos tortos" (o marido, as filhas, a mãe, a amiga). Não há espaço aqui para revolta com a condição da morte vindoura - apenas uma amável despedida da vida, onde se recoloca e direciona a vida de todos à sua volta, como uma deusa de sabedoria e amor. A vida parece vista de tão longe que, de fato, sua perda não seria nada assim tão grave, no máximo tristonho.

No entanto, existe um motivo plausível para esta personagem nunca deixar completamente de ser pungente, e nos manter minimamente interessados no filme, e este motivo tem nome: Sarah Polley. Polley é uma atriz que, desde que a vimos pela primeira vez (O Doce Amanhã), sempre mostrou uma capacidade inata de iluminar a tela nas suas passagens por ela, dar força e vida interior a qualquer personagem (basta ver o ótimo Madrugada dos Mortos). Aqui, ela não deixa que o clima de "melodrama-blasé" que Coixet tenta impor ao filme apague sua condição de atriz: com uma mordida de lábios enquanto conversa com o amante, com um esbolo de sorriso triste enquanto se despede dele, com cada mínimo gesto na tela, Polley parece um libelo contra a banalidade de um filme que chega a conclusões profundas como "não existe gente normal". Ela tenta, sozinha, elevar o filme a algo mais do que Coixet parece conseguir fazer dele. Não chega a conseguir, mas seus esforços ao tentar tornam, pelo menos, o esforço do espectador mais bem recompensado.

Eduardo Valente