Em Carne Viva
Jane Campion, In the cut, EUA, 2003

O Principio da Incerteza

Os filmes de Jane Campion sempre colocam o cinéfilo diante de um problema: as qualidades da diretora são completamente inseparáveis dos defeitos. Há outros diretores do qual se pode dizer o mesmo, mas os defeitos de Campion tem uma tendência especial em incomodarem de tão inseparáveis de tudo aquilo que ela faz certo. Se alguém apontar um momento de um filme de Campion que seja sublime e outro que seja ridículo, não demorará a encontrar alguém que dirá o inverso. Em Carne Viva em nada muda este panorama: as idéias são no mínimo incoerentes, os personagens coadjuvantes são frágeis, a narrativa inepta. Jane Campion nunca fez (e provavelmente nunca vai fazer) um filme de todo bem resolvido, mas o que ela consegue em Em Carne Viva mais do que compensa todos estes problemas.

Isto tudo dito, o quê exatamente o filme faz? Para começo de conversa ele nos dá o cada vez mais raro prazer de ver um filme construído por alguém que sabe o que está fazendo. Há uma seqüência, ainda próxima do começo, que ilustra isto muito bem: Meg Ryan recebe carona de dois policiais; a câmera permanece dentro do carro focada quase o tempo todo nela. Campion corta para fora do carro duas vezes (na primeira para uma menina caminhando por um beco, na segunda para um prédio). As interrupções da situação principal são calibradas num timing perfeito: entrecortam a situação principal, uma variação sobre o motivo na mulher sufocada pelo universo masculino que o filme repete, até poder dinamitá-lo nos pontos certos, para aliviá-lo - da mesma forma que garantem uma evocação da insegurança da personagem.

Não é por nada que a única característica típica de um "thriller" que o filme se propõe a cumprir é a criação de uma atmosfera. O filme trabalha dobrado, da fotografia às muito bem escolhidas locações, passando pelo roteiro com excesso de suspeitos, para criar este clima de ameaça. Mas o mistério contido na atmosfera de Campion é de uma outra ordem. Porque a ameaça aqui não é a de um "bicho-papão serial killer" que o roteiro vagabundo propõe. Trata-se de uma atmosfera que reforça um clima constante de insegurança e incerteza nada reconfortante. Campion trabalha buscando atacar nossos sentidos - mas o sentido que apresenta é tudo, menos claro. O filme vai progressivamente se afastando das certezas da sua trama banal rumo a um pântano lamacento onde sobra vulnerabilidade: primeiro da personagem, mas com o tempo também do espectador (e aqui as limitações da diretora são até um ganho). Trata-se, é claro, de um estudo de personagem – todos os filmes da diretora poderiam se chamar Retrato de uma Mulher –, mas um onde até pela confusão da cineasta, não sobra espaço para nenhuma resposta clara. Ninguém parece concordar a respeito do que Em Carne Viva diz, e isto me parece muito mais um mérito, dentro da construção que o filme toma, do que se acredita num primeiro momento. As incertezas da personagem se dobram na incerteza do espectador diante das imagens.

Campion de certa forma conduz seu filme em direção a uma versão estendida da seqüência final de A Síndrome de Stendahl de Dario Argento, onde um grupo benigno de homens era transformado pela lente da câmera (e a subjetiva da personagem) numa horda de estupradores. Só que a seqüência de Argento era rápida se apavorante, enquanto a cineasta procura esta mesma atmosfera distendida por quase duas horas. Este movimento tira ênfase do horror e a passa para a insegurança. Algo que por sinal se multiplica na atuação (bem melhor do que o grosso das criticas sugeriu) de Meg Ryan. É óbvio que a atriz está se esforçando para convencer num papel supostamente mais dramático. Este esforço é nítido na tela, e dele nasce muito do que há de imperfeição nesta performance. Só que esta imperfeição é, dentro deste filme específico, uma força que abre espaço para uma vulnerabilidade que uma atuação mais tecnicamente refinada talvez não pudesse criar.

É muito por conta disso que este Em Carne Viva acaba se revelando um dos melhores filmes de Campion: a diretora acaba por encontrar, de forma quase improvável, um veículo perfeito para as suas habilidades, onde tudo que não deixa de ser problemático no seu cinema acaba conjugado em favor do filme. Expondo ao máximo seus absurdos, nos jogando longe das seguranças que a sua trama sugere, explodindo a lógica e mergulhando no absurdo, Em Carne Viva segue: bom e mal, eficaz e confuso, sublime e ridículo, pessoal, único e apaixonante.

Filipe Furtado