Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
Alfonso Cuarón, Harry Potter and the Prisoner of Azkaban, EUA, 2004

Talvez a maior das dificuldades de aproximação com o mundo retratado nos dois primeiros filmes de Chris Columbus para os livros de J.K. Rowling fosse captar a amplitude daquela realidade, um universo rico - muito mais do que meramente de excentricidades mas também cheio de humanidade. Talvez ao notar o fracasso do primeiro filme, que ainda se esforçava de alguma forma em tal aspecto, Columbus tenha optado no segundo em se conter na trama, em tentar criar um filme mais redondo - criando um filme um bocado torto. Muito mais do que adicionar meramente menos ingenuidade à trama, como se tem sido comum mencionar, Alfonso Cuarón teve em seu primeiro grande mérito quebrar essa barreira: Harry Potter e todo o mundo retratado ali (e isso vale não só para as proximidades de Hogwarts, mas como para tudo ali mostrado) recebem um tratamento muito mais aberto neste terceiro filme. Tanto da parte do cineasta, como também do roteirista Steven Kloves, que teve a alcunha de adaptar todos os livros até aqui (trabalhando em contato direto com a autora), fica claro que aquele universo é cheio por demais de detalhes e possíveis subtramas, de personagens (alguns excelentes como os gêmeos Weasley surgem muito menos em cena do que poderiam) que enriqueceriam ainda mais a obra, de possibilidades que ali não poderiam caber, mas que bravamente expostos nos permitem enxergar para além do menino-bruxo e sua varinha. Mesmo que não possa ali mostrar essa infinitude de vida, o filme respira essa existência. Uma impressão forte o bastante para de partida coloca-lo em oposição clara às medianas adaptações anteriores.

Um dos primeiros fortes indícios é a opção do filme em não ignorar a vida privada de Harry. Enquanto se quer nos era dado a possibilidade de saber que o garoto dividia um quarto com outros rapazes nos filmes de Columbus, aqui, logo após a chegada a Hogwarts, já somos introduzidos não só a esta informação, mas num momento humano que pareceria um extraterrestre nos primeiros filmes, vemos os meninos fazendo o tipo de brincadeira e piada que qualquer jovem adolescente faz - nos é permitido ver que a diversão existe ali para além de aventuras com varinha. A sutileza é um dos pontos mais acertados de Cuarón na relações dos personagens: todas as reações, tanto em relação a trama que dá impulso ao filme quanto a fatos normais que os jovens personagens encaram na idade, são mostrados com um nível de acerto impressionante. Enquanto no segundo filme Chris Columbus mostrou ter a sutileza de um mamute na cena em que Ron e Hermione mostravam pela primeira vez um interesse diferente um pelo outro, aqui há diversos momentos em que a possibilidade surge, mas as reações e as causas são sempre filmadas com precisão humana incrível, sem ter que apelar para momentos épicos com música emotiva no volume máximo.

Toda essa carga humana em falta nos primeiros filmes – quem disse que magia não casa com humanidade? – serviu também para solucionar um problema comum e fácil de se cair: o de mitificar em excesso Harry Potter. Em momento algum o personagem aqui parece cair em algo sobrehumano, sem deixar ao mesmo tempo de ser um grande mago em formação. Isso se vê em todos estes momentos citados de cotidiano, mas também por Harry necessitar cada vez mais da ajuda alheia – claro que só Harry poderia ter espantado os dementadores num momento-chave do filme, mas ele jamais se quer cogitaria estar ali presente não fosse Hermione, ou muito menos saberia o que fazer ali não fosse o professor Lupin. Ao contrário do que muito se previu, o falecimento de Richard Harris e a entrada de Michael Gambon com o mago supremo de Hogwarts, Dumbledore, foi um grande achado para o filme. Além de Dumbledore ser aqui tratado de forma bem menos endeusada, Gambon permitiu ao personagem um ar bem mais descontraído, permitindo a ele até mesmo momentos de humor, algo que a figura absolutamente serena e poderosa centrada em Harris nos primeiros filmes jamais nos permitiu ver.

Interessante ver o quanto insiste a crítica (ao menos local) em que Harry Potter voltou mais "maduro" – afinal, embora seja claro que a referência caiba muito mais ao filme do que ao personagem, ser maduro é algo que este filme estará sempre longe. É o oposto que vive o longa na verdade – enquanto seus personagens adentram cada vez mais uma fase menos madura e cheia de explosões (toda a seqüência inicial de Harry com os tios, o chute na cama, Harry sorrindo na cama e mostrando pela primeira vez que também se diverte ao enganar propositalmente os tios), sua trama também parece cada vez menos redonda e fechada, abrindo diversas pontas que não se interessa em fechar. Se há amadurecimento aqui, é um grande adendo de inteligência e porque não, esperteza.

Cuarón revela também um ponto primordial em cinema, a questão do tempo. O entrecortar dos planos, até mais em uma aventura como esta, pede uma noção de tempo exercida aqui com um tipo de particularidade acertada que chega a surpreender. Se Cuarón foi contratado por ter realizado A Princesinha, O Prisioneiro de Azkaban vai se aproximar principalmente deste longa. O ponto é: Cuarón parece exibir uma capacidade rara em saber dirigir este tipo de produção: tanto neste novo longa quanto em A Princesinha o cineasta parece unir este talento de manipular grandes produções (que exigem diversas particularidades), ao seu lado mais humano, presente em filmes como E Sua Mãe Também ou Grandes Esperanças. Estes dois longas de grande orçamento soam mais completos e não menos pessoais (sem deixar de responder a outros estímulos, incluindo ser um ótimo produto de vendagem fácil). Anima ver que Cuarón já declarou ter interesse em voltar futuramente (até mesmo muito em breve) a dirigir um Harry Potter.

Cuarón mostrou também ter ótima noção de como aproveitar seus atores. O segundo filme, por exemplo, denunciava uma tendência impressionante a canastrice por Rupert Grint, o Ron. Cuarón então resolve usar essa canastrice na direção de atores para acrescentar ao personagem, não abandonando o ator em suas dificuldades: ele ainda exibe a mesma careta, mas aqui ela deveria estar presente. Todos os adolescentes aqui parecem ter passado por conversas um tanto mais longas sobre seus personagens; do próprio Harry (Daniel Radcliffe), pouco inocente, explosivo mas ainda assim heróico, até mesmo ao garoto-mala Draco Malfoy, irritante como deve ser, mas sem um excesso quase insuportável visto antes. Os adultos não caem fora: como citado em outro momento temos a marcante presença de Michael Gambon, mas também David Thewlis e Gary Oldman - o segundo sobretudo surpreendendo muito, fugindo por completo do óbvio e longe de estar no piloto automático. Alan Rickman aos poucos permite mais ambigüidade ao professor Snape, a cena em que protege os garotos é de uma sutileza bastante forte. Trabalhando dentro de um universo tão específico e particular, o cuidado em saber usar estes elementos pode ser vital, e alguns excessos ainda escapam mesmo com o cuidado - Emma Thompson por exemplo parece o tempo todo estar na corda bamba entre uma péssima atuação e uma ótima (o que não deixa de ter seu interesse particular).

Embora pudesse listar as mais diversas seqüências de ótimo cinema, há a volta no tempo, uma pequena obra-prima. Além de uma idéia inteligentíssima arquitetada em cena com extrema eficiência – os planos em que Harry e Hermione acompanham a si mesmos a distância são sobrepostos de tal maneira que fica claro o exímio trabalho com o quadro. Ao voltarem no tempo para que pudessem salvar um personagem, os dois amigos não enganam o tempo ou algo similar, mas sim a si mesmos – a forma como o filme põe isto em cena é impressionante, invertendo toda a noção de narrativa clássica até ali posta em cena. Toda a encenação é feita com tamanho trabalho que, para notar diversas sutilezas perdidas nestas seqüências (e tudo o que vêm pouco antes delas), é necessário uma ou mais revisões. Toda a alteração no tempo ocorre diante de nossos olhos sem que possamos perceber: Cuarón monta tudo de forma que a encenação se faça presente, mostrando incrível habilidade em saber manipular o que se decorre em cena. Tudo que se segue na volta no tempo, cada passo, é uma reconstrução de algo que já foi visto – realizado de forma única. A cena em que Hermione e Harry finalmente chegam em tempo ao local onde estavam é de um humor (uma das armas mais bem utilizadas pelo cineasta no filme) genial.

Um dos aspectos que mais soavam errados nos filmes de Columbus partiam da capacidade de transformar um tema com tantas brechas cinematográficas em obras um tanto carentes em todos os aspectos da construção dentro do cinema. Um dos grandes triunfos de Cuarón em O Prisioneiro de Azkaban é não só adicionar um lado muito mais próximo da magia e bruxaria ao filme, dando espaço para suspense mais desenvolvido, mas o de também levar ao que filma um uso pensado e consideravelmente melhor das diversas particularidades da obra de J.K. Rowling. A começar pelo uso do espaço de Hogwarts, explorado com planos mais longos e que permitem uma noção boa da dimensão do local - além do ótimo uso do mapa que vai parar nas mãos de Harry, que além de ter extrema importância ao desenrolar do filme, desdobra a decupagem. Podemos citar ainda os quadros "vivos", que não ganham só um espaço maior em cena, como deixam de ser mero artefato irreverente local, tal qual as fotos em movimento (até mesmo um desenho em um momento); ou os "dementadores", não presentes nos filmes anteriores, mas não menos bem usados. Ou ainda a maneira como Cuarón dá espaço para que John Williams se solte na trilha sem ter de cair no "mais do mesmo" que o persegue diversas vezes: em um momento (uma perseguição chuvosa em meio ao céu no único momento de quadribol do filme) Williams repentinamente transforma sua tradicional música de suspense em uma espécie de releitura do tema de Psicose, outra sutileza somente percebida em uma revisão.

Construir dentro do cinema usando todos os artifícios à mão na criação de um universo não só bem articulado, mas cheio de sentimentos e questões (dos quais muitos persistem soltos e sem respostas), além da percepção do tempo como chave do cinema, são das muitas, e cada vez mais perceptíveis, belas impressões deixadas por O Prisioneiro de Azkaban.

Guilherme Martins