O que é esta
imagem?
10. Quando do lançamento
de Dez, alguns fãs de Abbas Kiarostami
olharam desconfiados. O que bem seria este filme? Onde
estavam afinal as belas imagens, os planos abertos que
marcavam o trabalho anterior do cineasta? Elas não
estão em Dez. Como também não
está a paisagem rural do Irã que nos acostumamos
ver na maioria dos filmes anteriores do diretor. Trata-se
também de um filme urbano com foco e ponto de
vista centrado na classe média iraniana. Portanto,
trataria-se de uma ruptura na obra do cineasta? Muito
pelo contrario. Dez é um avanço
natural, só mais um passo dentro de um caminho
que o cineasta vêm traçando ao menos desde
os seus filmes mais antigos a chegar até nós.
9. Abbas Kiarostami é
um cineasta que mantém o meio em constante fluxo.
A cada filme há a necessidade de chegar a imagem/abordagem
mais justa. Daí seus filmes desconcertarem num
primeiro momento. Neste sentido sua mudança para
o digital nos parece colocar diante de um problema de
percepção. Se A.B.C. África
ainda podia ser justificado como filme humanista, o
mesmo parece mais difícil de ser feito aqui,
já que apesar do tema politicamente correto,
Dez parece por demais incompleto quando visto
como editorial sobre a situação da mulher
no Irã.
8. Numa simplificação
bem grosseira, pode-se dizer que o que atraiu Abbas
Kiarostami no digital é que ele torna o processo
de filmagem mais simples. O formato permite com que
o cineasta elimine todo o aparato cinematográfico
tal qual nos acostumamos a pensar. Kiarostami, dessa
forma, pode permanecer mais próximo do que é
que ele vá transformar em imagem. Pode parecer
bobo de tão simples (e recentemente em Cannes
houveram os cínicos que ridicularizaram o seu
documentário sobre a realização
do filme por defender idéias tão óbvias),
mas isto está longe de parecer tão simples
para um cineasta como Kiarostami. Seus filmes são
marcados – assombrados talvez seja uma expressão
melhor – por todas as questões éticas/morais
que este ato a principio muito simples, que é
transformar algo numa imagem, levanta. Basta lembrar
da equipe de O Vento nos Levará a esperar
que uma senhora de 100 anos morra para então
poder registra-la. O cinema capta a morte em progresso,
escreveu certa vez Jean Cocteau. É um negócio
muito sério.
7. Captar uma imagem,
portanto, é algo que termina por revelar um certo
poder. Relações de poder estão
no cerne de qualquer filme, por mais que para muitos
diretores trate-se de uma questão que nunca se
manifesta. Em Kiarostami ela está em cada fotograma,
em cada relação, em cada opção
sua como diretor.O mero fato dele ter resolvido filmar
alguém num determinado espaço já
revela o poder que ele e sua câmera possuem sobre
esta pessoa e/ou espaço. Não é
uma posição a qual ele se coloque de forma
cômoda. Se nos filmes de Mohsen Makhmalbaf (para
ficarmos no outro grande veterano do cinema iraniano)
esta posição de poder patriarcal do diretor
nunca chega a constituir um problema, para Kiarostami
ela será sempre uma questão independente
da figura do diretor ser mais (Através das
Oliveiras) ou menos (O Vento nos Levara)
benigna. Abbas Kiarostami descreveu Dez como
um filme sem diretor. Paradoxalmente quanto mais sem
diretor o filme se revela, mais ele se afirma como um
filme de Abbas Kiarostami.
6. É justamente
por colocar, ainda mais do que em seus outros filmes,
suas preocupações com o poder da figura
do diretor em relevo, que Abbas Kiarostami termina por
abrir espaço para que o seu lado político
aflore. Há diversas formas de poder se relacionando
aqui, não é a toa que a motorista (Mena
Akabari) se veja as vezes por cima, as vezes por baixo
nas relações que trava com seus passageiros.
Mas muito mais que a escolha do tema, Dez se
mostra político pelo que tem de confrontador.
Não é a toa que cada uma das seqüências
do filme seja aberta com o soar de um gongo de ringue
de boxe. Filme de impasse, sem espaço para reconciliações
(não há no cinema político muitas
cenas mais fortes que a seqüência #2), o
filme não dará trégua ao espectador.
Não surpreende que seja um campeão de
expulsões da salas de cinema.
5. Abbas Kiarostami como
se sabe não é cinéfilo, mas como
todo grande cineasta pensa o cinema. Dez também
é político pelo que diz sobre o "cinema
de arte" hoje. Eric Hobsbawn no seu A História
Social do Jazz comenta como a vida do músico
de jazz moderno se tornou muito mais difícil
quando este conseguiu pela primeira vez afirmar o seu
público. Com um circuito de jazz pela primeira
vez formado, estes músicos se viram diante de
um público que ansiava pela mesma meia dúzia
de standards a ser repetidos a exaustão. O universo
do cinema de autor desde que venceu a batalha e se estabeleceu
(e por conseqüência foi absorvido pelo mercado)
vive um impasse similar.Dez é um dos primeiros
filmes sobre este impasse feito de dentro.
4. Como já mencionado
antes tudo aquilo que num primeiro momento associamos
a Abbas Kiarostami desaparece em Dez. O que cineasta
faz aqui, de certa forma, é explicitar como a
maior parte daquilo que temos como cinema de autor não
passa de uma superfície atraente. "Kiarostami"
desaparece, mas o filme não deixa de ser a essência
destilada de Kiarostami. Orson Welles fizera algo similar
no seu Verdades e Mentiras, que não surpreendentemente
foi acusado já naquela época de não
ser um filme de Orson Welles devido a falta de
imagens de Orson Welles. Mas o que diabo seria
uma imagem de Orson Welles? Porque nós cinéfilos
sempre acreditamos ter o poder de saber o que é
melhor para os nossos autores favoritos? É preciso,
Kiarostami nos demonstra, implodir o autor, para lhe
devolver a importância.
3. Dez certamente
tem imagens de Abbas Kiarostami. Ao menos se
por esta expressão temos imagens que se preocupam
com o que elas representam. O que é esta imagem?
Abbas Kiarostami parece sempre perguntar. Já
se definiu mise en scene como todos os recursos
que um diretor tem para expressar sua relação
para com o seu objeto. Com Dez, o cineasta se coloca
numa posição onde estes recursos se tornam
limitados. A função de diretor parece
se tornar muito mais a do promotor de uma situação
(que posteriormente vai poder organizar na sala de montagem).
Só que ao mesmo tempo poucos filmes parecem mais
preocupados com esta relação. No carro
de Dez não está em jogo somente
as relações daquelas personagens, mas
também as do diretor com a sua câmera,
com seus atores e com as imagens que eles produzem juntos.
Filme-impasse, mas também um filme-processo extremamente
preocupado consigo próprio. Só que Kiarostami
sendo um sujeito esperto sabe que se um cineasta não
pode deixar de pensar cinema, não pode também
correr o risco de se fechar em si mesmo. O filme anda
nesta corda bamba, mas nunca cai.
2. Hoje, com a critica
se apaixonando novamente por uma idéia meio romanceada
de documentário Dez é essencial.
Assim como já fizera com Close-Up, o cineasta
acaba com a linha tênue do documental e ficção.
Todo filme é afinal representação.
Os atores não profissionais interpretam versões
de si mesmos (a exceção da prostituta
já que o cineasta não conseguiu convencer
nenhuma a atuar no filme), as conversas foram desenvolvidas
depois de longas discussões entre eles e o diretor.
O ressentimento do garoto Amin é verdadeiro,
importa se estamos diante de um filme de ficção?
De novo, o Welles de Verdades e Mentiras é
uma boa referencia (mas também O Filme de
Nick, de Wenders e Ray).
1. Mais importante: Dez
é um filme que pensa a imagem, sem deixar de
pensar o mundo. O que é cada vez mais raro e
por isso mesmo essencial.
Filipe Furtado
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