Dez
de Abbas Kiarostami, Ten, Irã/França, 2003(cor)

O que é esta imagem?

10. Quando do lançamento de Dez, alguns fãs de Abbas Kiarostami olharam desconfiados. O que bem seria este filme? Onde estavam afinal as belas imagens, os planos abertos que marcavam o trabalho anterior do cineasta? Elas não estão em Dez. Como também não está a paisagem rural do Irã que nos acostumamos ver na maioria dos filmes anteriores do diretor. Trata-se também de um filme urbano com foco e ponto de vista centrado na classe média iraniana. Portanto, trataria-se de uma ruptura na obra do cineasta? Muito pelo contrario. Dez é um avanço natural, só mais um passo dentro de um caminho que o cineasta vêm traçando ao menos desde os seus filmes mais antigos a chegar até nós.

9. Abbas Kiarostami é um cineasta que mantém o meio em constante fluxo. A cada filme há a necessidade de chegar a imagem/abordagem mais justa. Daí seus filmes desconcertarem num primeiro momento. Neste sentido sua mudança para o digital nos parece colocar diante de um problema de percepção. Se A.B.C. África ainda podia ser justificado como filme humanista, o mesmo parece mais difícil de ser feito aqui, já que apesar do tema politicamente correto, Dez parece por demais incompleto quando visto como editorial sobre a situação da mulher no Irã.

8. Numa simplificação bem grosseira, pode-se dizer que o que atraiu Abbas Kiarostami no digital é que ele torna o processo de filmagem mais simples. O formato permite com que o cineasta elimine todo o aparato cinematográfico tal qual nos acostumamos a pensar. Kiarostami, dessa forma, pode permanecer mais próximo do que é que ele vá transformar em imagem. Pode parecer bobo de tão simples (e recentemente em Cannes houveram os cínicos que ridicularizaram o seu documentário sobre a realização do filme por defender idéias tão óbvias), mas isto está longe de parecer tão simples para um cineasta como Kiarostami. Seus filmes são marcados – assombrados talvez seja uma expressão melhor – por todas as questões éticas/morais que este ato a principio muito simples, que é transformar algo numa imagem, levanta. Basta lembrar da equipe de O Vento nos Levará a esperar que uma senhora de 100 anos morra para então poder registra-la. O cinema capta a morte em progresso, escreveu certa vez Jean Cocteau. É um negócio muito sério.

7. Captar uma imagem, portanto, é algo que termina por revelar um certo poder. Relações de poder estão no cerne de qualquer filme, por mais que para muitos diretores trate-se de uma questão que nunca se manifesta. Em Kiarostami ela está em cada fotograma, em cada relação, em cada opção sua como diretor.O mero fato dele ter resolvido filmar alguém num determinado espaço já revela o poder que ele e sua câmera possuem sobre esta pessoa e/ou espaço. Não é uma posição a qual ele se coloque de forma cômoda. Se nos filmes de Mohsen Makhmalbaf (para ficarmos no outro grande veterano do cinema iraniano) esta posição de poder patriarcal do diretor nunca chega a constituir um problema, para Kiarostami ela será sempre uma questão independente da figura do diretor ser mais (Através das Oliveiras) ou menos (O Vento nos Levara) benigna. Abbas Kiarostami descreveu Dez como um filme sem diretor. Paradoxalmente quanto mais sem diretor o filme se revela, mais ele se afirma como um filme de Abbas Kiarostami.

6. É justamente por colocar, ainda mais do que em seus outros filmes, suas preocupações com o poder da figura do diretor em relevo, que Abbas Kiarostami termina por abrir espaço para que o seu lado político aflore. Há diversas formas de poder se relacionando aqui, não é a toa que a motorista (Mena Akabari) se veja as vezes por cima, as vezes por baixo nas relações que trava com seus passageiros. Mas muito mais que a escolha do tema, Dez se mostra político pelo que tem de confrontador. Não é a toa que cada uma das seqüências do filme seja aberta com o soar de um gongo de ringue de boxe. Filme de impasse, sem espaço para reconciliações (não há no cinema político muitas cenas mais fortes que a seqüência #2), o filme não dará trégua ao espectador. Não surpreende que seja um campeão de expulsões da salas de cinema.

5. Abbas Kiarostami como se sabe não é cinéfilo, mas como todo grande cineasta pensa o cinema. Dez também é político pelo que diz sobre o "cinema de arte" hoje. Eric Hobsbawn no seu A História Social do Jazz comenta como a vida do músico de jazz moderno se tornou muito mais difícil quando este conseguiu pela primeira vez afirmar o seu público. Com um circuito de jazz pela primeira vez formado, estes músicos se viram diante de um público que ansiava pela mesma meia dúzia de standards a ser repetidos a exaustão. O universo do cinema de autor desde que venceu a batalha e se estabeleceu (e por conseqüência foi absorvido pelo mercado) vive um impasse similar.Dez é um dos primeiros filmes sobre este impasse feito de dentro.

4. Como já mencionado antes tudo aquilo que num primeiro momento associamos a Abbas Kiarostami desaparece em Dez. O que cineasta faz aqui, de certa forma, é explicitar como a maior parte daquilo que temos como cinema de autor não passa de uma superfície atraente. "Kiarostami" desaparece, mas o filme não deixa de ser a essência destilada de Kiarostami. Orson Welles fizera algo similar no seu Verdades e Mentiras, que não surpreendentemente foi acusado já naquela época de não ser um filme de Orson Welles devido a falta de imagens de Orson Welles. Mas o que diabo seria uma imagem de Orson Welles? Porque nós cinéfilos sempre acreditamos ter o poder de saber o que é melhor para os nossos autores favoritos? É preciso, Kiarostami nos demonstra, implodir o autor, para lhe devolver a importância.

3. Dez certamente tem imagens de Abbas Kiarostami. Ao menos se por esta expressão temos imagens que se preocupam com o que elas representam. O que é esta imagem? Abbas Kiarostami parece sempre perguntar. Já se definiu mise en scene como todos os recursos que um diretor tem para expressar sua relação para com o seu objeto. Com Dez, o cineasta se coloca numa posição onde estes recursos se tornam limitados. A função de diretor parece se tornar muito mais a do promotor de uma situação (que posteriormente vai poder organizar na sala de montagem). Só que ao mesmo tempo poucos filmes parecem mais preocupados com esta relação. No carro de Dez não está em jogo somente as relações daquelas personagens, mas também as do diretor com a sua câmera, com seus atores e com as imagens que eles produzem juntos. Filme-impasse, mas também um filme-processo extremamente preocupado consigo próprio. Só que Kiarostami sendo um sujeito esperto sabe que se um cineasta não pode deixar de pensar cinema, não pode também correr o risco de se fechar em si mesmo. O filme anda nesta corda bamba, mas nunca cai.

2. Hoje, com a critica se apaixonando novamente por uma idéia meio romanceada de documentário Dez é essencial. Assim como já fizera com Close-Up, o cineasta acaba com a linha tênue do documental e ficção. Todo filme é afinal representação. Os atores não profissionais interpretam versões de si mesmos (a exceção da prostituta já que o cineasta não conseguiu convencer nenhuma a atuar no filme), as conversas foram desenvolvidas depois de longas discussões entre eles e o diretor. O ressentimento do garoto Amin é verdadeiro, importa se estamos diante de um filme de ficção? De novo, o Welles de Verdades e Mentiras é uma boa referencia (mas também O Filme de Nick, de Wenders e Ray).

1. Mais importante: Dez é um filme que pensa a imagem, sem deixar de pensar o mundo. O que é cada vez mais raro e por isso mesmo essencial.

Filipe Furtado