Por pura coincidência,
as duas únicas salas de cinema do Rio de Janeiro
atualmente com programações especiais
e mostras em exibição constante (CCBB
e MAM) realizaram, no início de maio, retrospectivas
de dois cineastas brasileiros que estrearam na década
de 60 - Cacá Diegues e Fernando Coni Campos.
O segundo fim de semana do mês viu, inclusive,
a exata sobreposição das duas mostras
- obrigando o espectador interessado a fazer algumas
opções (o que não deixa de ser
uma pena, se pensamos em tantos fins de semana de pasmaceira...).
Este texto é uma simples resposta ao estímulo
de assistir à quase totalidade da produção
dos dois cineastas (no caso de Coni faltaram dois longas,
e no de Cacá um não se conseguiu ver -
e também o resto de sua produção
sem ser a de longas). Está longe de ser um tratado
teórico, inclusive porque a superposição
do trabalho destes dois cineastas é tão
arbitrária quanto foi a oportunidade de ver os
dois trabalhos simultaneamente - apenas responde-se
ao fenômeno de se haver visto os filmes nesta
ocasião, o que é sempre um condicional
para as avaliações que se acabou fazendo
e se quer dividir aqui.
O primeiro foco de interesse,
aliás, nem veio dos filmes diretamente, e sim
de uma constatação: enquanto Cacá
ganhava o "tratamento VIP" (ou seja, mostra completíssima,
com pesquisa de filmografia, catálogo, debates
e orçamento especial) na principal instituição
de difusão cultural do país hoje (o CCBB),
Coni Campos apenas complementava a programação
da Cinemateca do MAM, a partir de cópias que
lá (ou na Cinemateca Brasileira) existam, sem
direito a catálogo, reflexão ou debate
algum. Mais: se o CCBB possui um público cativo
e as sessões de Cacá (mesmo nas tardes
da semana) nunca se realizavam para menos de 30, 40
pessoas, por outro lado um filme como Ladrões
de Cinema, de Coni, passava para cinco espectadores
no MAM - que retomou sua programação constante
e está com uma sala reformada, mas que parece
cada vez mais longe do centro das atenções
do cenário cultural-cinematográfico do
Rio hoje (não contam aqui eventos especiais de
orçamento próprio, à la Semana
da ABC ou Tim Festival, claro).
Destas condições
(antes práticas do que estéticas e/ou
conteudísticas) é que me veio a primeira
inquietação: por quê os tratamentos
tão diferenciados? Por quê Coni é
quase um desconhecido hoje, enquanto Cacá continua
dando entrevistas e sendo ouvido como fonte importante
do saber cinematográfico nacional (a lembrar
a já velha polêmica envolvendo sua entrevista
que deu primeira página no Globo em 2003)? Claro,
o mais cínico diria: Cacá continua falando
e sendo ouvido porque está vivo, ao contrário
de Coni. Mas a explicação é fraca:
Glauber não está vivo e é impossível
dizer que ele não continua central ao debate
do cinema nacional (enquanto tantos outros seguem vivos
e sem importância no mesmo). Descartada estaria,
portanto, a hipótese da explicação
simples e direta.
Assim sendo, eu pensava,
precisamos apelar para as obras - delas é que
deve vir alguma luz. Mais uma vez busquei um caminho
bem simples e direto: os filmes de Cacá seriam
muito melhores ou mais importantes que os de Coni. Bem,
contando-se o óbvio fato de que ambas as categorias
são altamente subjetivas, o que eu pude constatar
é: a hipótese não se sustenta,
de novo. Acho que ninguém (nem Cacá) gostaria
de entrar numa insalubre competição de
tal ordem, até porque é inútil
e despropositada (seja para o cinema brasileiro como
um todo, seja mesmo para este texto), mas vale o veredito:
o cinema de Coni em nada é inferior ao de Cacá.
Então não havia jeito: precisava-se ir
aos filmes não em busca de "padrões de
qualidade" e sim de sintomas - que poderiam elucidar
tanto a relação do público com
a obra quanto os reflexos na manutenção
da carreira dos dois diretores.
Neste sentido, a obra
de Cacá foi generosa, pois logo na primeira sequência
do primeiro de seus longas surgiu a pista inicial e,
a meu ver, principal: Ganga Zumba (1964) abre
com um "table top" à la slide show, com narração
em off que localiza fatos históricos e contextualiza
formações sociais para introduzir o filme
que veremos a seguir. De uma cajadada só, três
coelhos: a disposição ao didatismo, o
interesse por construir uma historiografia brasileira,
e o de "sociologizar" os mitos da formação
da cultura nacional. Pode-se dizer que Cacá apresenta
na sua primeira sequência as três grandes
constantes de sua obra, que se repetirão de uma
forma ou outra ao longo de seus filmes.
O tom didático
não é nem uma questão apenas de
exemplificar e historiografar, mas é uma opção
quase onipresente de construção dramatúrgica
mesmo: em Cacá, tudo se explica ao máximo.
Uma enorme quantidade dos diálogos em seus filmes
são dedicados menos a revelar ou esconder algo
sobre um personagem do que a fazer a trama avançar,
ou deixar bem clara a função dramática
ou metafórica de personagens ou situações.
Seus diálogos raramente fluem com a naturalidade
de personagens com vida própria, e muito mais
parecem as palavras dos títeres de um plano bem
estruturado. Na verdade, a questão principal
(se problema ou qualidade, deixamos ao gosto do freguês,
me interessa mais aqui é apontar características
do que julgá-las) é que Cacá faz
sempre "filmes de tese". Muito se pensou antes sobre
o que se quer dizer, e depois se vai aos personagens
para dizê-lo (basta pensar, por exemplo, na clara
função de cada um dos três imigrantes
nordestinos em A Grande Cidade: O Marginal, O
Trabalhador, O Malandro). Esta característica
vai dos filmes de aparência mais "prosaica" (Chuvas
de Verão, Um Trem para as Estrelas)
aos mais claramente "historicistas" (Xica da Silva,
Quilombo); dos filmes mais diretos, simples (Veja
essa Canção) aos mais metafóricos
(Os Herdeiros, Joanna Francesa, Orfeu);
e, finalmente, em categoria aí sim absolutamente
pessoal, dos mais felizes (Dias Melhores Virão,
A Grande Cidade) aos menos bem sucedidos (Deus
é Brasileiro, Tieta).
Esse desejo didático
não apenas se junta aos outros dois pontos levantados
(historiografar o Brasil e explorar sua "formação
cultural") como só pode ser entendido misturado
com eles. Cacá não fala de outra coisa
do que não "O BRASIL" (assim em maiúsculas
mesmo) em todos os seus filmes. Se seus filmes históricos
são claras tentativas de formular hipóteses
em vários campos (étnico, político,
social, cultural) sobre a formação do
Brasil, seus filmes contemporâneos mudam pouco
o registro, no sentido em que são absolutamente
pensados como "reflexos diretos" do que é o Brasil
no momento em que são realizados. Assim, Um
Trem para as Estrelas não pode nunca ser
lido como apenas a história de um rapaz em busca
de um sonho e de sua namorada, mas sempre como uma crônica
sobre o Brasil do fim dos anos 80 a partir de sua juventude
- a mesma imagem vale para os mais velhos e o fim dos
anos 70, em Chuvas de Verão, e muito mais
ainda para Dias Melhores Virão e o ano
1990, por exemplo. É claro que se poderia dizer
que todo filme é um retrato do seu tempo, no
sentido em que reflete sobre o momento e local em que
é realizado, consciente disso ou não.
Mas a palavra-chave aqui é "consciência":
Cacá nunca reflete sobre seu tempo "inconscientemente",
sempre deseja apresentar um ensaio (no mínimo
uma crônica) sobre seu tempo. Pode até
ser que queira entender, mas o fato é que acaba
mesmo sempre tentando explicar alguma coisa com os seus
filmes.
E aí vale a primeira
ponte com Coni, que não explica quase nada, só
confunde. Os filmes de Coni são tão impressionantemente
vazados de Brasil como os de Cacá - só
que de um Brasil que aflora em todas as imagens mas
nunca se permite entender, explicar, historicizar. Talvez
o exemplo mais óbvio fosse o de Uma Nega Chamada
Tereza, visto mesmo que suas condições
de produção fizeram com que o filme adquirisse
um formato final ainda mais caótico e inconclusivo
do que o diretor intencionava. Mas, essa perda do controle
de um filme (no caso, prática) acaba funcionando
como a melhor maneira de entender o cinema de Coni:
sempre a um passo do precipício, sempre arriscando
uma relação com o espectador e com o Brasil
como assunto. Quando vai à literatura (Viagem
ao Fim do Mundo, Um Homem e sua Jaula, O
Mágico e o Delegado) não o faz em
busca de obras folcloricamente definidoras de um caráter
nacional (como um Tieta); quando vai à
música popular (e aí Jorge Ben é
um senhor exemplo, já que aparece em Tereza
e em Xica da Silva) volta menos com uma expressão
que ilustra um sentimento nacional do que com uma inevitável
confluência entre a alegria e a alienação
(paradoxo que Xica até expõe, mas
de forma muito menos incômoda, mais cheia de certezas);
quando vai à História (a reencenação
de Tiradentes em Ladrões de Cinema) não
busca uma explicação clara de uma formação
e sim um jogo de espelhos com o presente, de múltiplos
significados. Acima de tudo, para Coni nada é
sagrado: fiquemos apenas com a lembrança dos
favelados roubando os gringos, enquanto eles filmam
um desfile de carnaval com fantasias de índios,
em Ladrões de Cinema: a superposição
e recontextualização de signos é
tamanha e tão rápida que desafia qualquer
explicação direta, simplória. Qual
o papel, afinal, dos índios, dos forasteiros,
dos pobres? São vários, e sempre se redefinindo,
nos diz Coni.
E esta noção
de nenhum assunto ser sagrado ou resolvido para Coni
vai permitir passar para o ponto seguinte: o desenvolvimento
da carreira de cada um dos dois e sua filiação
dentro do cinema brasileiro. Se Coni sempre recusou
a participação num grupo, numa concepção
de cinema que o enquadrasse, o explicasse, Cacá
é cria indissociável do Cinema Novo -
com o qual Coni tantas vezes brinca e avacalha em seus
filmes, justamente pelos desejos de explicar o Brasil
e salvar o Brasil de seus "cineastas-gênios".
Coni nunca foi contra o fato do Cinema Novo existir,
nunca fez oposição a ele e a seus membros
(escreveu em parceria com Joaquim Pedro, Jabor); só
que, incapaz de sentir-se de fato enquadrado, desconfiava
das manobras de patotagem que estes grupos costumam
implementar. Se Viagem ao Fim do Mundo foi colocado
em diálogo com o dito Cinema Marginal ("marginal
não filma, marginal vai preso" - parecia responder
ele em Ladrões), a carreira de Coni como
um todo não permite qualquer enquadramento. Já
Cacá não só reafirma constantemente
seu orgulho de ser um dos membros-fundadores do Cinema
Novo como consegue algo ainda mais prodigioso (e que
nenhum outro cineasta de então conseguiu - seja
pela morte prematura, seja pela incapacidade de se enquadrar):
se molda ciclicamente (estilisticamente, inclusive)
aos cinemas que o Brasil permite produzir ao longo de
sua carreira. Camaleão de uma intelectualidade
"de esquerda", mistura e encarnação quase
improvável do "Homem Cordial" de Sérgio
Buarque com o coronelismo redivivo que permitiu um mítico
domínio do Cinema Novo sobre os caminhos do cinema
nacional por um bom tempo (e no qual o parceiro mais
constante de Cacá não foi cineasta, e
sim Luiz Carlos Barreto), Cacá seguiu e segue
produzindo sem interrupções os filmes
"que o Brasil quer ver" - e nisso não encontra
paralelo nem mesmo entre os remanescentes do Cinema
Novo.
Ora, e finalmente o quadro
parece começar a se esclarecer nas inquietações
iniciais: filmes e personalidade do cineasta Cacá
Diegues, contra as mesmas coisas de Coni Campos, parecem
tornar mais fácil entender a super-retrospectiva
rica e popular em pujante centro cultural de um contra
o balanço "quase sem querer" e quase para ninguém
em decadente cinemateca do outro. Num Brasil que cisma
em desafiar a compreensão, quem explica, quem
mitifica e compreende é sempre de mais fácil
digestão do que quem confunde; e quem se adapta
e se aninha sempre garante mais continuidade do que
quem confronta. Cacá Diegues e Coni Campos: seus
filmes em cartaz aonde estiveram neste início
de mês de maio de 2004 no Rio de Janeiro dão
mesmo muito pano para a manga de quem quiser saber mais
dos caminhos do cinema brasileiro e, por que não?,
do Brasil.
Eduardo Valente
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