AS PESSOAS DE ANGKOR
Les Gens d'Angkor, França/Camboja, 2004
 

As memórias pessoais dos khmers, as quais formam a História do Camboja, sob ameaça das transformações econômicas que afetam o país após o término do sanguinário regime de Pol Pot: nas ruínas de Angkor, símbolo máximo da nação (pois armazena e cristaliza as narrativas milenares que alimentam a coletividade), Rithy Panh se preocupa com os efeitos nocivos que a introdução da lei de mercado tem sobre os cambojanos, à margem do processo hegemônico que apaga o passado das lembranças individuais para instaurar o presente fictício de um novo espaço desmemoriado.

Capital do Império Khmer entre os séculos IX e XV, Angkor é um conjunto de templos no qual se verifica a fusão da cultura local tanto com o hinduísmo, já que a arte khmer se inspira nos deuses Xiva e Vixnu, quanto com o budismo, presente nas numerosas estátuas de Buda existentes no complexo. De profunda tensão teológica, centrada no culto aos reis divinos, Angkor alcançou seu apogeu com o rei-deus Suriavarman II, o qual construiu para si o templo-montanha de Angkor Wat, cujas cúspides das cinco torres se encontram representadas na bandeira do Camboja. Esquecida por trezentos anos, as ruínas da antiga cidade foram descobertas, no século XIX, pelo naturalista Henri Monhot, durante a ocupação francesa na Indochina.

A imagem das cúspides na bandeira cambojana, contudo, não significa duplicação inocente da realidade, uma vez que Angkor Wat, símbolo nacional, apresenta número diferente de torres conforme o regime que governa o país. Na impressionante seqüência em que os trabalhadores que restauram o complexo e o garoto que vende bugigangas para os turistas discutem sobre as diversas configurações da bandeira do Camboja nos últimos trinta anos, Panh mostra como a violenta instabilidade política da nação inflige projeto sistemático, mesmo que com métodos variáveis, de aniquilação das raízes culturais e afetivas da população, cada vez mais pauperizada. Desse modo, enquanto a bandeira monárquica era azul e possuía apenas três cúspides (o rei, a pátria e a religião), a republicana, sob a ditadura comunista de Pol Pot, tornou-se vermelha, com as cinco torres que permanecem na atual, democrática, a qual, por sua vez, reintroduziu a cor característica da monarquia. Por que a volta do azul, se o Camboja contemporâneo é uma república? Segundo um dos restauradores, para lembrar que agora há liberdade, ao que outro complementa: e que a miséria continua.

É a consciência dos operários de Angkor de que, para eles, tudo ficará igual, apesar das mudanças. Da mesma forma que os trabalhadores apontam para a maioria pobre e marginalizada do país, a restauração das ruínas também é trabalhada simbolicamente pelo cineasta: mais do que apenas esforço físico, ela implica a preservação da cultura popular, das narrativas criadas pelo povo, as quais forjaram e legitimaram a identidade nacional ao longo dos séculos. O toque de mestre de Panh, em aparência banal, é dizer que monumentos não nascem sozinhos, que cada pedra de Angkor guarda em si as lembranças, os sonhos e o sangue das pessoas que já passaram e das que ainda estão por lá, vivendo mal e porcamente nos escombros dos grandes templos.

Porém, se em S-21, A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, a eliminação das memórias individuais se dá pela política estatal comunista de assassinatos em massa, através do aterrador aparato burocrático montado pelo governo de Pol Pot para este fim, em As Pessoas de Angkor ela se adapta à nova realidade democrática do país. A ameaça, agora, vem da crescente inserção do Camboja na economia global, que transforma o sítio arqueológico onde se originou a nação em mero ponto turístico, em cartão-postal despossuído de História. Numa aula de cinema crítico, o diretor contrapõe imagens, em primeiro plano, nas quais os trabalhadores contam ao garoto as histórias e lendas dos antepassados gravadas em Angkor à dos turistas japoneses que, ao fundo, passeiam com suas máquinas fotográficas: trata-se de profanar o passado de luta e de afirmação dos khmers a fim de substituí-lo pela civilização da aparência, do consumo e da ficção generalizados, cuja presença destrói as tradições locais por ela dominadas. Neste sentido, é exemplar a seqüência na qual o guia turístico, a partir do relevo no templo, inventa uma narrativa fantástica qualquer, enquanto o trabalhador, do mesmo relevo, conta uma saga de guerras, fome, morte e escravidão.

Assim, Rithy Panh registra, de um lado, a sujeição da memória coletiva ao presente ficcional alienante, e de outro, a resistência dos cambojanos aos desmandos mercadológicos. Indivíduos que resistem porque teimam em sobreviver, a despeito da miséria e da injustiça que sofrem – seja o garoto, que engana os turistas com mercadorias a preços maiores do que valem, seja o pai que se martiriza por ter tirado o filho da escola para trabalhar e ajudar a família, seja o homem cujo galo, ferido na rinha, está para morrer (e a morte do animal significa o fim de sua única fonte de renda) –, pois, como indica o último plano de As Pessoas de Angkor, em que o menino confidencia outra narrativa ao deus, é a vida dos que sempre estiveram à margem que torna possível não só a preservação das velhas histórias, como também o surgimento de novas.

Paulo Ricardo de Almeida

 

 





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