ANGELS IN AMERICA
Mike Nichols, Angels in America, EUA, 2003

Mais que um simples filme ou mini-série para TV a cabo, Angels in America configurou-se como uma espécie de evento na programação da televisão paga nos EUA, assim como a peça teatral que lhe deu orígem esteve para a Broadway dez anos antes. Desde que o mercado da produção para cinema de Hollywood passou a praticamente exigir que todo filme se torne um sucesso imediato, direcionado para um público majoritariamente adolescente, as produções originais para os canais de filmes a cabo (em especial a HBO) se tornaram um porto seguro para diretores veteranos que desejam tratar de temas mais "adultos" ou que simplesmente buscam novas opções para trabalhar.

É o caso de Mike Nichols, assim como antes dele Norman Jewison ou o já falecido John Frankenheimer, todos artesãos distantes da genialidade, mas de reconhecida competência e que, com um bom material às mãos, conseguiam quase sempre realizar filmes eficientes, e por vezes mesmo brilhantes. Nichols, em especial, retornara às orígens teatrais em seu primeiro filme para a HBO, Uma Lição de Vida (Wit), onde transpusera para TV outro texto teatral de prestígio. Sendo assim, foi mais que acertada a sua escolha para comandar a adaptação às telas que o dramaturgo Tony Kuschner escreveu de sua longa (originalmente mais de 7 horas) peça teatral Angels in America, assim como o filme, dividida em duas partes, Millenium Approaches e Perestroika, com uma fidelidade que, em cinema, se caractrizaria inviável.

Tal fidelidade, no entanto, acaba por se materializar como um calcanhar de Aquiles para o Angels in America da TV, pois suas maiores limitações aparentam ser advindas do próprio texto a que lhe deu orígem. Seu tema é a repercussão da epidemia de AIDS num grupo de personagens homossexuais, na Nova York de meados da década de 80, época em que ser vitimado por tal doença era garantia de morte certa num curto período de tempo. São dois os acometidos: o advogado de direita Harry Cohn, figura verídica que até a morte negara não somente a doença, como também sua própria homossexualidade, e o jovem Prior que ao manifestar os primeiros sintomas é abandonado pelo namorado Joe. Este, por sua vez, virá a ter um caso com Louis, um advogado enrustido e casado ligado a Cohn. Kuschner tece de forma razoavelmente competente a teia de relacionamentos que envolve as personagens, mais seu texto assume contornos bastante pretensiosos por desejar abranger questões de transcendência mítica e religiosa ao apresentar Prior como tendo visões (os anjos do título) que o situam num patamar de profeta, ou até mesmo de mártir e colocando Hester, a esposa drogada de Louis como uma espécie de par em seu martírio, enquanto Cohn é visto como um quase demônio.

Angels in America pode até desejar ser uma obra de abrangência universal, mas na verdade reflete de forma bem clara e parcial a mentalidade e visão de mundo do grupo ao qual pertence seu autor, novaiorquino, assumidamente gay e de formação política de esquerda. Isso fica bem claro quando o texto apresenta a América governada por Reagan e infectada pelo HIV como "um tempo em que o mundo foi abandonado por Deus". Por certo tal abordagem fez de Angels in America, peça ou minissérie, uma espécie de "queridinha" para os intelectuais americanos liberais, mas a uma visão mais atenta e distanciada (pelo menos do que se apreende pela versão televisiva), deixa bastante claras suas limitações, entre elas uma conclusão, apesar de otimista, excessivamente discursiva e dramaturgicamente capenga, além, evidentemente, do já referido excesso de pretensão, ao trabalhar a mitologia religiosa, principalmente das crenças mórmon e judaica, explorando em especial com o tema da redenção. Se ressente também da falta de um pouco mais de humor ou ironia, pois os momentos nos quais estes se se fazem presentes, como as falas do rabino logo no início ou a primeira visita do anjo, são aqueles em que o texto se mostra mais rico.

O que não impede que a minissérie se configure como um trabalho quase sempre atraente durante a maior parte da cerca de seis horas que somam suas duas partes, divididas cada uma em três capítulos. É aí que entra a tarimba e o talento de Mike Nichols, superando o texto de Kuschner com uma encenação muito bem amarrada, que não busca esconder a orígem teatral, mas sim enquadrá-la de forma coerente em outro veículo, conseguindo muitas vezes fazer com que Angels in America funcione como um eficiente novelão, o que acontece nas seqüências mais realistas. Já as visões de Prior se revelam de difícil transposição, acabando por transparecer às vezes pouco convincentes, puxando o espetáculo um pouco para baixo, talvez pelo fato do meio televisivo não ser o mais favorável para que se crie uma ambiência onírica, que certamente causaria um melhor efeito no palco ou mesmo em tela de cinema. Mas Nichols faz o que pode.

E como em quase toda obra de Mike Nichols, o trabalho com o elenco, no qual a maioria interpreta mais de um papel, se faz um destaque a parte. Pode-se dirigir atores tão bem como Nichols, mas melhor é difícil. Nem tanto pelos medalhões: Al Pacino cria seu Harry Cohn comu uma mistura do Michael Corleone idoso de O Poderoso Chefão 3 com o RP do recente O Articulador, mas impressiona nas cenas de doença; Meryl Streep tira de letra a mãe de Louis ou mesmo um velho rabino, se destacando como o fantasma de Ethel Rosenberg; Emma Thompson, exceto pelas breves aparições do anjo, tem pouco o que fazer. Já os experientes mas menos conhecidos Jeffrey Wright (Belize, o sagaz e espirituoso enfermeiro negro que cuida de Cohn), o único que participara da montagem teatral, e Mary Louise Parker (Hester) estão brilhantes, fazendo valer os prêmios que já receberam pelo filme. Quanto aos desconhecidos, também brilhante está Ben Shenkenman (Joe), mas Justin Kirk (Prior) consegue a façanha de superar a todos. Apenas Patrick Wilson (Louis) se ressente de um personagem que é o mais fragilmente desenvolvido pelo roteiro e que fica meio abandonado nos momentos finais deste Angels in America que, mesmo sendo um trabalho que não corresponda a toda a relevância ou brilhantismo apregoados pela mídia norte-americana, certamente vem à tona como uma atração digna de atenção e interesse.


Gilberto Silva Jr.