As 1001 Noites
de Pier Paolo Pasolini, Itália/França, 1974 (cor)


Texto de Apresentação

Como defender um filme abjurado por seu próprio diretor? Expliquemos. De 1971 até 1974, data de feitura dos três filmes que compõem a Trilogia da Vida (na ordem Decameron, Os Contos de Canterbury e As 1001 Noites), a recepção pública dos filmes de Pasolini adquire dimensões inacreditáveis, causando comoções, processos públicos por obscenidade, criando espectadores aos borbotões, e ocasionando filmes de soft-porn realizados no mesmo estilo. No começo de novembro de 1975, Pasolini é assassinado em condições misteriosas. Uma semana depois, é publicada uma carta póstuma em que ele diz abjurar os filmes de sua Trilogia, pois os filmes haviam sido "capturados" e integrados pelos mecanismos de poder da sociedade.

Defender um filme abjurado não é apenas falar das qualidades e das características de estilo presentes no filme - isso seria mais uma vez fazer o jogo de poder que separa o artista do renovador social, e a beleza artística de seu potencial (auto-)revolucionário. Se Pasolini decide abjurar de seus filmes, é porque a sexualidade vista a partir do olhar da inocência e de um certo elogio do primitivo, por mais que tenham claramente uma significação revolucionária diante da cultura de repressividade e moral burguesa, encontram uma neutralização a partir do momento em que a imagem sexual - é ocasião de lembrar que o começo dos anos 70 é o boom social do cinema pornográfico - passa a virar apenas uma mercadoria entre outras, destituída de seu caráter de contestação e entregue a uma visualidade apenas fetichista, quando não francamente reacionária.

E então As Mil e Uma Noites de Pasolini são exibidas em 2004 na Sessão Cineclube. Logo As Mil e Uma Noites, certamente o mais onírico, o mais "fácil" de ver, o mais "lindo" filme da trilogia: obedeceremos à lógica de poder que classifica o filme de "cinema de poesia" como forma mais simples de colocá-lo numa prateleira onde ele se torna tanto exibível quanto inócuo? Pois é: nos parece que o trabalho crítico de defesa para um filme abjurado por seu diretor consiste em trazer à luz todo o potencial revolucionário contido em cada pedaço de película e jogá-lo contra uma certa recepção asseptizante do filme, uma que certamente existe (e talvez seja a hegemônica) e que hoje, dada a cultura dos "corpos belos em exposição" das academias de musculação, das fórmulas mágicas de dieta e do sistema de recauchutagem plástica, tende a ser mais forte do que antes. O corpo que sai de As Mil e Uma Noites não tem nada de asséptico. É um corpo negro, mestiço, africano; corpo desdentado, proletário, subdesenvolvido. E belo por causa disso. Se há uma idéia constante em toda a obra de Pasolini, é a de que os corpos dos materialmente despossuídos (pobres, subdesenvolvidos) gozam apesar de toda tentativa de constrangimento do controle oficial, e o gozo é o momento em que todo poder de coerção mostra-se inútil, porque não consegue cassar toda a liberdade daqueles a quem ele impinge sua força. O sexo e o prazer dos corpos engajam politicamente: são momentos de resistência à média ponderada do controle social, instantes de não-reconciliação com um status quo hipócrita (e em Pasolini, como em Foucault, todo sistema de poder é concebido como hipócrita e controlador social, de Teorema a Salò).

Os ricos gozam com o poder, os pobres só têm seus corpos, mas o gozo dos pobres é uma afronta ao poder dos ricos (porque mostra que o gozo do poder é meramente imaginário, realizado por suposição). Uma cena evidente dessa regra geral pasoliniana é aquela em que Franco Citti, de cabelos vermelhos, interpreta um demônio que mantém como prisioneira uma jovem alva e linda. Um rapaz penetra por acidente o santuário do demônio, e não consegue resistir à pura beleza da moça, que também se apaixona por ele. Quando o demônio reaparece, não há nada mais que ele possa fazer: corte-lhe os braços, corte-lhe as pernas, a moça é ainda capaz de fazer amor com os olhos.

Se há três cineastas com os quais Pasolini mantém relação de espelho, são Glauber Rocha, Marco Ferreri e, hoje, Larry Clark. Glauber pela criação de um corpo experimental do Terceiro Mundo, Marco Ferreri pela animalização do homem, Larry Clark pelo sexo como símbolo de liberdade em relação a um poder oficial, insurreição dos oprimidos. As pombas que aparecem em As Mil e Uma Noites não são simples metáfora: o ser humano em Pasolini não tem controle sobre suas paixões, é mais Epimeteu do que Prometeu, age antes e só pensa quando já não é mais possível agir novamente (a história de Aziz, interpretado pelo ator-fetiche de Pasolini, Ninetto Davoli, é exemplar a esse respeito). Bebe, come, ama, fode: reduzido a seus dados mais básicos e constitutivos, o homem está assim passível de tornar-se livre da Lei, não mais prisioneiro da consciência, essa inimiga que - de Sartre aos padres - não fez senão interiorizar um processo de culpa por algo que não existe (perverso, quem?). Pasolini, comunista e homossexual, tenta criar com seus filmes uma ontologia da resistência, política e sexual - os dois interligados. Não vejamos As Mil e Uma Noites como objeto exótico - por mais que o apelo do primitivismo more ao lado, e exista no filme -, tampouco como historinha regozijante e mimosa. As Mil e Uma Noites é um manifesto existencial-político, e vendo assim nos sentimos claramente à vontade para retirar o voto de abjuração por Pasolini e finalmente gozar com Sherazade.

Ruy Gardnier


Citações


"O artista ou o escritor, seja ele quem for, se é digno deste nome, contesta sempre, mesmo se não tem consciência disso. A obra poética, em particular, constitui sempre uma empresa "contestadora" na medida em que, infringindo o código, inova em relação a ele, e em relação ao contexto social onde este código está em vigor."

"A "mitificação" da natureza implica a "mitificação" da vida tal como ela é concebida pelo homem antes da era industrial, e tecnológica, quer dizer, em torno dos modos de produção agrária. Somente aqueles que acreditam no mito são realistas, e vice-versa. O "mítico" é apenas a outra face do realismo."

"Quando viajo para o Terceiro Mundo, é por prazer, por puro egoísmo, porque ali me sinto melhor. Quando chego num destes países, perco de vista a injustiça e a miséria que aí reinam, o regime reacionário que o dirige. É uma reação sentimental que sobrepuja a ideologia. Detesto tudo o que toca o "consumo", eu o abomino no sentido físico do termo"