Persona - Quando Duas Mulheres Pecam
Ingmar Bergman, Persona, Suécia, 1966 (PB, 82')

Sinopse

A atriz Elizabeth Vogler deixa de falar durante uma representação teatral de Electra. Seu mutismo em relação aos que a rodeiam é total, sendo então internada numa clínica. Não está doente, simplesmente optou pelo silêncio. Alma, uma jovem enfermeira, fica encarregada de tratar dela. Quando, a conselho médico, as duas se isolam em uma ilha, passam a desenvolver uma intimidade e cumplicidade crescentes. Com isso se estabelece uma constante troca de identidades.

Ficha Técnica

Direção e Roteiro: Ingmar Bergman Produção: Svensk Filmindustri Fotografia: Sven Nykvist Montagem: Ulla Ryghe Música: Lars Johan Verle Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand

Texto de Apresentação

Partindo do título oportunista, e também deslocado do tema central do filme, utilizado quando da estréia brasileira de Persona (Quando Duas Mulheres Pecam), podemos já extrair um dos temas recorrentes à obra de Ingmar Bergman, o conceito do pecado e principalmente da culpa a ele associada. É mais que sabido que a sua formação durante a infância, filho de rígido pastor luterano, viria a influenciar todo o seu trabalho em cinema, numa obra marcada por evidente evolução, partindo dos primeiros dramas, na década de 1940, que deixam um tanto a desejar, até atingir uma maturidade artística já na primeira metade dos anos 50, principalmente em Mônica e o Desejo (1952) e Noites de Circo (1953), possivelmente seu melhor filme.

Ao longo dos anos subsequentes, Bergman alçou um renome mundial, e seus filmes, apesar de temas recorrentes - o já citado sofrimento determinado pela culpa, a análise de relacionamenteos conjugais e amorosos, e a angústia do homem perante "o silêncio de Deus" - ainda apresentavam variadas abordagens, incluindo espaço para comëdias românticas, como Uma Lição de Amor (1954) e Sorrisos de uma Noite de Amor (1955), algum otimismo diante da vida, por exemplo em Morangos Silvestres (1957), e filmes de época, em O Sétimo Selo (1957) ou O Rosto (1958).

Foi durante os anos 60 que se conretizou a imagem daquilo que, com o passar do tempo, iria se tornar no imaginário do público como uma "marca registrada" do cinema de Bergman: uma temática bastante densa e agora sempre pessimista, com poucos personagens, vivendo situações de crise intensa em ambientes quase sempre claustrofóbicos, mesmo que este cenário seja a paisagem de uma ilha. Apesar desta linha já vir sendo demarcada em sua obra alguns anos, como em Através de um Espelho (1961), é justamente a partir de Persona que se faz patente uma submissão do autor a este estilo recorrente, que viria gradativamente a se tornar diluído e repetitivo a cada novo trabalho apresentado até o final da década de 60, todos rodados, assim como Persona, em sua propriedade na ilha de Farö.

Tratando especificamente de Persona, e já sabendo que em Bergman vida e obra são conceitos indissociáveis, fica claro notar que o filme foi confessamente concebido durante um período de profunda crise de seu autor, quando este se encontrava hospitalizado devido a uma pneumonia e questionando sua então atividade como diretor do Teatro Nacional de Estocolmo. Como afirma ele próprio: "Era necessário, por conseguinte, escrever qualquer coisa que apaziguasse a sensação de futilidade que sentia, a sensação de estar marcando passo." Da mesma forma, Persona deixa claros os momentos no qual o artista se vê impassível ao observar que, mesmo contra o seu desejo, sua arte acaba por ser vã como modificadora de uma realidade, impassividade essa que acaba por determinar o retiro e o silêncio constante de Elizabeth Vogler (Liv Ullmann).

O outro tema central de Persona fica evidente na seqüência entre a médica e Elizabeth que antecede a partida para a ilha. Nos termos da personagem, "o irrealizável sonho de existir, não o de parecer, mas o de ser". Em outras palavras, o filme propõe uma reflexão sobre a constante necessidade de adequação aos diferentes papéis que uma pessoa deverá exercer ao longo da vida. Enquanto Elizabeth simplesmente desiste de tentar adequar-se a esses papéis, sua companhia determina em Alma (Bibi Andersson) uma descoberta de trilhas semelhantes, frustrando suas falsas expectativas iniciais de construir um casamento e família tradicionais. É assim que ambas, Alma e Elizabeth, passam a manifestar diferentes facetas de uma só personagem, culminando na notória seqüência onde fundem-se os rostos das atrizes. Chamando mais uma vez atenção para a personalidade do diretor, convém destacar que tanto Elizabeth quanto Alma são afligidas por traumas relacionados à maternidade - a primeira simplesmente renega o filho, enquanto a segunda não aceita bem um aborto ao qual fora obrigada - o que reflete uma evidente característica de Bergman, que nunca conseguiu assumir de forma completa o papel de pai dos filhos que acumulou ao longo de sucessivos casamentos.

É também Persona o filme que inaugura a parceria entre Bergman e Liv Ullmann, atriz que desde então permanece marcada a sua obra, apesar da outra protagonista do filme, Bibi Andersson, já vir aparecendo em suas fitas por mais de uma década antes desta. Sem dúvida é seu meticuloso trabalho com os atores (quase sempre os mesmos, como Gunnar Björnstrand, Harriet Andersson, Max Von Sydow, Erland Josephson ou Eva Dahlbeck), que deve bastante a sua longa carreira de encenador teatral, um dos principais responsáveis pelo êxito e empatia dos filmes de Bergman. Este, entretanto, mesmo com um um pé no palco, poucas vezes deixa de conceber seu cinema como uma arte de imagens. E é justamente a força de suas imagens o principal trunfo de Persona, mesmo que se considere suas abordagen sob pontos de vista social ou psicológico superficiais ou hoje um tanto batidas.

Gilberto Silva Jr.


Citações


As citações foram extraídas do livro "Imagens", de Ingmar Bergman, trad. de Alexandre Pastor, Ed. Martins Fontes, 1996.

"Que o cinema seja o meio por que me expresso, é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me corresponder com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto." (pag. 49)

"O fotógrafo Sven Nykvist e eu, originariamente, tínhamos pensado numa iluminação convencional para ambas as atrizes, Liv Ullmann e Bibi Andersson, mas não deu bom resultado. Concordamos então em pôr uma metade do rosto numa escuridão total, não havendo sequer uma luz de compensação. Depois, na parte final do monólogo, foi um passo natural combinar as duas metades iluminadas dos rostos, fazendo com que se integrassem numa só face. A maior parte das pessoas tem uma metade do rosto mais fotogênica que a outra. As fotografias meio iluminadas dos rostos de Liv e de Bibi que ligamos uma à outra mostram as suas metades feias. Quando recebi do laboratório o filme com esta duplicação, pedi a Liv e a Bibi que viessem ao estúdio de montagem. Surpresa, Bibi exclamou: 'Como você está esquisita, Liv!'. E Liv por sua vez disse: 'Mas essa cara é a sua, Bibi. É você que tem um ar esquisito!' Quer dizer, ambas negaram espontaneamente as metades menos bonitas de seus rostos." (pag. 61)

"Quando lemos o texto de Persona, talvez dê a impressão de ser uma improvisação. Mas não. Esse texto foi rigorosamente concebido. Apesar disso, nunca repeti tantas cenas em minha vida como nesse filme. E quando digo que repeti cenas, não quero dizer filmagens de uma e mesma cena, no mesmo dia, mas sim de novas filmagens por não ter ficado satisfeito com as seqüências reveladas de cada dia." (pag. 64)