O Leopardo
de Luchino Visconti, Itália, 1963

As primeiras coisas que se costuma mencionar quando se vai falar de O Leopardo são: a) a frase "As coisas precisam mudar para continuar as mesmas"; e b) o deleite visual da cena do baile, que dura um terço do filme (45min). Não que sejam pouco importantes: elas constituem, respectivamente, o centro temático - a moral da história - e a cena mais plástica que Visconti jamais fez. No entanto, nos parece que toda a densidade do filme se esvazia se nos ativermos apenas a esses dois aspectos fundamentais da obra. Por alguns motivos. O primeiro é que essa famosa frase, por mais que sintetize à perfeição o sentimento que se depreende do desenrolar da História no filme, jamais consegue dar conta da ambigüidade com que o príncipe Salina observa seu próprio mundo aristocrático em decomposição e o nascimento de um outro mundo, um mundo que ele repudia mas que ele entende ser o único capaz de algum vigor no futuro. Ou dos sentimentos conflitantes que logo se tornam mudança de posição para o jovem Tancredi, sobrinho de Salina, revolucionário aristocrata que deverá vestir a capa do conservadorismo para instituir um novo regime (mas que ele sabe que de novo não tem nada). Ou então da beleza resplandecente de Claudia Cardinale, uma beleza que não assume apenas um aspecto decorativo mas impregna o filme de um olhar completamente diferente sobre a burguesia nascente. Voltaremos a isso.

O Leopardo é menos um filme "sobre a História" do que sobre a posição em que se está dentro da História. A diferença entre os dois termos parece a princípio pequena, mas ela ganha uma dimensão profunda se imaginamos que o protagonista do filme não é propriamente um agente da História, mas apenas um espectador, como nós, do desenrolar de um processo que é maior do que qualquer indivíduo sozinho (e que no entanto é desempenhado por indivíduos, de parte a parte). É a primeira vez num filme de Visconti em que o protagonista é um herói passivo, e não um agente da história, sabedor de seu lugar ultrapassado dentro de um jogo de forças numa dada sociedade.

Daí o fato de O Leopardo ocupar um lugar muito especial dentro da carreira de Luchino Visconti. Pela primeira vez, o realizador de La Terra Trema e Sedução da Carne põe a nu seu decadentismo, tanto através da admiração por uma época que já não existe mais quanto por reconhecer que já não entende mais os tempos que estão por vir. O decadentismo de Visconti, no entanto, não funciona para instalar sua obra numa torre de marfim de uma arte grandiosa que se fecha sobre si mesma; a operação que faz de O Leopardo um filme tão inacreditável é colocar em questão essa relação decadente com o mundo, e perspectivá-la através da História. Não à toa, o filme foi recebido de forma bastante controversa pelos admiradores dos filmes anteriores de Visconti. Guido Aristarco, pensador lukacsiano de cinema que via nele seu grande herói crítico (o tipo, o herói positivo de Rocco ou de Sedução da Carne), "não escondeu seu embaraço", como escreveu Jean-André Fieschi na crítica para os Cahiers du Cinéma (nº146, agosto de 1963). O marxista aristocrata que era Visconti pela primeira vez expunha à flor da pele suas contradições mais íntimas, que infelizmente (para alguns) não se prestavam a uma captura teórica fácil pelos cantores da revolução. Ao contrário: mantendo até o fim seu credo marxista, o autor de O Leopardo revela a economia como fio lógico e a luta de classes como motor da História, mas não pinta as cores das classes sociais e da revolução de acordo com o receituário do realismo socialista. Pior ainda: sendo um aristocrata, Visconti coloca sua própria posição em cheque, e institui a crise na ideologia, no código de valores do filme. Protagonista, o príncipe Salina - que naturalmente espelha o diretor do filme - é o filtro, a unidade de sentido através do qual o espectador vê o mundo, mas não é possível fazer isso sem antes se colocar a si mesmo em crise. Pessimismo no reconhecimento de sua posição, pessimismo acerca do resultado das revoluções, mas acima de tudo pessimismo com o próprio motor da História, que só nos entrega o mesmo disfarçado de outro ("As coisas precisam mudar..."): pensamento que se cristaliza em Visconti nessa época, mas que também está inscrito num momento específico, o da primeira leva de intelectuais marxistas a desligarem-se da ideologia dos partidos comunistas europeus e do alinhamento automático a Moscou (e, logo, de uma estética condizente com esta visão de mundo).

Filme reacionário, pois, O Leopardo? Aos olhos dos militantes do Partido na época, sem dúvida. Mas e hoje? Hoje, Hoje, e como regra geral, O Leopardo é antes um filme que encontra sua revolução (pessoal e coletiva) ao criar um ponto de vista sobre o reacionarismo. Não que o decadentismo seja uma posição possivelmente renovadora: mas a inserção desse decadentismo dentro da História nos dá um novo ponto de vista sobre esse sentimento, nos desobrigando de encará-lo como a única solução possível (o que geralmente transforma o decadentismo numa coisa bastante pestilenta), mesmo que seja para o diretor (por falta de outra posição na qual se encaixar).

Quando dizíamos que a cena do baile, mais do que cumprir apenas um gozo visual, é central para o conflito de gerações e de classes que há no filme, isso diz respeito acima de tudo na forma como o príncipe Salina observa as novas gerações. As jovens aristocratas, sempre filtradas para o espectador pelo olhar do príncipe, não passam de crianças em pele de mulheres, fúteis, desengonçadas e desinteressantes. Em compensação, Claudia Cardinale, que representa a ascensão da burguesia sem decôro ao poder, é a mais bela presença feminina a jamais aparecer em tela de cinema. É a ela que Burt Lancaster concede a dança da noite, a atitude mais nobre a tomar (e um aristocrata é antes de tudo um elegante) sendo a de reconhecer que o tempo passa e que é preciso dar lugar ao novo, mesmo que isso signifique sua própria morte. Talvez apenas em All That Jazz de Bob Fosse a morte seja caracterizada de forma tão honrada, como o reconhecimento de um estado ao qual, cedo ou tarde, todos nós acedemos. Em O Leopardo, porém, essa morte é tanto individual quanto coletiva. Nunca um caminhar para longe do plano exalou tanto ar fúnebre. Morrer, mas morrer cumprindo sua função revolucionária, que é a de dar lugar ao novo. O show deve continuar.

Ruy Gardnier


Citações:

"Sempre me trataram como decadente. Tenho da decadência uma opinião bastante favorável. Estou imbuído dessa decadência."

"Não creio que se possam separar os elementos histórico-ideológicos dos elementos humanos. O problema da sua unificação na obra de arte é o problema maior do realismo, um problema que me obceca. Várias vezes fui censurado por tê-lo resolvido de uma forma puramente voluntarista e abertamente didática. É possível que haja algo de verdade nesta crítica, mas não é razão para eu abandonar a minha busca: em O Leopardo julgo ter feito algum progresso. Os elementos histórico-políticos não prevalecem sobre os demais: correm nas veias dos personagens como uma parte essencial da sua seiva vital; em algumas manifestam-se claramente; em outras encontram-se apenas no estado de sedimentos opacos, ou limitam-se a aparecer e desaparecer muito rapidamente. É inútil procurar no meu filme essa oposição cética e negativa entre sentimentos individuais e paixões coletivas, entre impulsos irracionais do coração e movimentos reais da História. Em suma, entre esperança e desespero."

AMIGO VISCONTI (no dia de sua morte)
"Compreendeu a História
Contraditória da matéria
Mas não incendiou
A solidão da Ópera Cósmica"
Glauber Rocha