O HOMEM QUE VÊ

Toda vez que alguém escreve sobre Quentin Tarantino, a estratégia recorrente é retornar à sua velha e estereotipada imagem, a do grande cinéfilo e ex-balconista de locadora que virou cineasta e partiu para homenagear seus realizadores favoritos. Esta figura foi construída e repetida de tal maneira que gerou um problema para a apreciação de seus filmes. Existe a imagem que se criou dos filmes de Tarantino, e existe a evidência das imagens nos filmes, que contam uma outra história. É curioso como, entre tanta coisa escrita sobre a cinefilia do diretor, deixa-se escapar o essencial: que a arte de Tarantino tem muito a ver com o simples ato de olhar.

Não se trata de uma discussão sobre voyeurismo, como aquelas que se encontram em Brian De Palma ou em outros diretores, mas algo bem mais básico: o postar-se no meio de uma ação e simplesmente observá-la em busca das mais diferentes opções cênicas. Tarantino mantém um olhar atento para as menores nuances de uma situação – algo que já se aparecia com força em Cães de Aluguel e Pulp Fiction, e que se revela de forma mais clara em Jackie Brown. Não que o universo de Tarantino não seja construído a partir de uma colagem de centenas de outros filmes (se ele não for maneirista, a expressão, ao menos no sentido Daney/Bergala/Oudart, não faz nenhum sentido). Dito isso, simplesmente mencionar que os nomes dos assaltantes de Cães de Aluguel foram retirados de O Seqüestro do Metrô de Joseph Sargent (atitude bem comum em textos sobre o diretor) não nos leva a lugar nenhum. Isto acontece muito porque a lógica de apropriação de Tarantino é muito própria: não há nele o desejo de comentar aquilo de que ele se apropria (como nos filmes da Nouvelle Vague), nem um certo fetichismo cinéfilo (Melville, boa parte do cinema americano da década de 70). Tarantino faz filmes a partir do que ele vê (e o que ele vê são outros filmes), mas mantém um desejo de ir além das próprias referências. Não é à toa que aquilo que ele incorpora é reconfigurado como algo próprio e único que pertence só a ele. Afinal, quantos filmes tão construídos sobre arquétipos como Jackie Brown vão tão além deles?

Há um certo desejo pueril de impressionar, uma atração pelo efeito superficial em Cães de Aluguel e Pulp Fiction que por vezes esconde este outro lado de Tarantino. Uma observação mais atenta revela o cuidado com que a tensão é construída em Cães de Aluguel – cuidado esse que vai muito além dos efeitos fáceis. Há em Cães de Aluguel um esforço bem sucedido em tratar o galpão – onde a maior parte da ação transcorre – como um personagem. Mais importante ainda para um primeiro filme tão marcado por uma vontade de mostrar serviço, Cães de Aluguel é marcado por um precioso cuidado com o tempo. Se me perguntassem o que em Cães de Aluguel podia indicar Quentin Tarantino como um diretor maior, a resposta seria: a paciência. Esta é uma qualidade mais rara do que pode nos parecer num primeiro momento: basta olhar para a seqüência da conversa entre Steve Buscemi e Harvey Keitel no banheiro para notar como ela é construída. Tarantino quase nunca suprime um plano para ir mais rápido ao ponto – algo que seria refinado em Pulp Fiction, até chegar à perfeição de Jackie Brown (um filme que por vezes parece existir exclusivamente para acompanhar o andar de Pam Grier).

Esta paciência tem muito a ver com a atração que Tarantino exerce sobre os atores. Claro que ele oferece a eles diálogos marcantes, mas muito mais importante é que ele sempre está disposto a dar-lhes tempo. Todos os filmes de Tarantino têm momentos em que o diretor interrompe a ação com o objetivo único de abrir espaço para algum detalhe de uma atuação. Tarantino é sempre generoso com seus intérpretes, inclusive reduzindo consideravelmente os fogos de artifício em favor do ator quando quer. Outros diretores já pediram de Samuel L. Jackson atuações similares às que Tarantino lhe tirou em Pulp Fiction e Jackie Brown, com resultados bem mais irregulares. O mesmo pode se ver de forma mais clara quando comparamos as atuações de John Travolta em Pulp Fiction e O Nome do Jogo, em que o diretor Barry Sonnefield praticamente pede que ele repita o personagem do filme de Tarantino. A superfície é devidamente reproduzida, mas algo não soa igual, uma vez que falta a Sonnefield a sensibilidade para permitir que Travolta busque as pequenas sutilezas que completavam sua performance anterior.

Há em Jackie Brown um momento excepcional em que o personagem de Samuel L. Jackson, logo depois de descobrir que todas as suas economias foram roubadas, faz uma pausa para pensar. Só isso. Ele pára e pondera todas as opções até concluir que fora a personagem-título que o roubou. Pode até parecer óbvio para o espectador – que já sabia disso uma hora atrás –, mas certamente não era para o personagem (afinal praticamente todos ao redor dele poderiam tê-lo roubado). Num outro filme policial, Jackson abriria a sacola e já soltaria o nome do ladrão, mas não em Jackie Brown. Tarantino precisa dar a este personagem estes segundos a mais. Personagens num filme como este supostamente devem agir sempre por impulso (o que eles ocasionalmente também fazem aqui), mas quando alguém pára e pensa (o que eles fazem com freqüência tratando-se de Tarantino), cria-se um estranhamento. De certa forma é como a cena do Gloria de Cassavetes em que a personagem-título atira num carro que capota, pensa por um segundo e faz a coisa mais senso-comum possível: fazer sinal para um táxi. Todos rimos nesta cena tamanho o seu inusitado. Num outro filme, a personagem simplesmente fugiria correndo da cena, mas ali ela pensa. Jackie Brown parece todo construído sobre esta tensão similar: entre a trama vagabunda envolvendo o dinheiro de Jackson e as diferentes personalidades e desejos de todos que estão envolvidos nela.

 * * *

Essa é uma das razões pelas quais Jackie Brown é um salto na carreira do cineasta. Os favoritos (incluindo o próprio Gloria) continuam lá, a habilidade para tirar o máximo de locações (e o uso delas em Jackie Brown mereceria um ensaio próprio), a paciência para deixar que as situações se desenrolem no seu próprio tempo e a precisão da direção de atores estão todos lá. Só que já não estamos mais no território do exercício talentoso dos filmes anteriores. Se o livro de Elmore Leonard que lhe serviu de inspiração deu-lhe uma base mais sólida, também parece ter inspirado o melhor na sua mise-en-scène. Vejamos a cena que introduz Bridget Fonda: (1) Samuel L. Jackson e Robert De Niro conversam por muito tempo com ela fora do quadro sem que nós saibamos que ela está na mesma sala que eles. (2) Jackson lhe dá uma ordem, e neste momento Tarantino revela as suas pernas (e logo depois um dos seus braços). (3) Quando ela volta com dois copos de uísque, finalmente, Tarantino nos permite vislumbrá-la de corpo inteiro. A cena não só nos conta tudo que precisamos saber sobre a personagem (tanto a forma como é tratada, como o seu ressentimento em relação a isso), mas de forma mais sutil começa a nos informar sobre Jackson. Ordell Robbie, a personagem de de Jackson, é a figura no filme que mais se assemelha aos filmes anteriores do diretor. Tanto é que, exceção feita ao plano seqüência da abertura – verdadeira carta de intenções de Jackie Brown –, a meia hora inicial carregada por ele ainda nos promete um novo Pulp Fiction. Só que, já nesta cena inicial, o cineasta (ajudado pelo trabalho de Jackson, bem mais sutil do que aparenta) começa a nos revelar que a figura que nós vemos é uma grande construção. Ordell afinal era – por tudo que nós vemos sobre o seu passado – um bandido pé-rapado que de alguma forma acabou virando um traficante de armas de sucesso. A imagem que ele projeta é isto mesmo: uma imagem que ele tirou de um monte de outros filmes policiais. Ele não é nem tão inteligente, nem tão durão ou impiedoso quanto tenta sugerir. Maltratar a amante é só algo que ele acredita que tem de fazer. Esta construção é tão sutil que, imagino, poucos espectadores percebem o peso que a morte da amante tem sobre Jackson na parte final do filme. Quando ele mata seu comparsa, ela não o faz porque ele perdeu todo o dinheiro, mas porque antes tinha matado a amante. Desde que ele recebera a noticia, Jackson relativizava com o típico papo de sujeito durão (entre a mulher e o amigo, fico com o amigo, etc.), até que ele percebe que o amigo não vale tanto assim. Há alguma menção à personagem morta em cada uma das cenas finais de Jackson, alguma menção que indica o quanto a morte dela pesa para ele. Só que Tarantino nunca pesa a mão ao nos revelar isto – uma forma de respeitar o personagem, que certamente negaria tudo se fosse encostado contra a parede.

Esta lógica marca de certa forma cada personagem do filme. É por isso que Jackie Brown parece ao mesmo tempo o filme mais anônimo do diretor (no sentido de ser aquele que se ancora de forma mais direta às qualidades do tipo de filme médio, mais aparentemente comercial e vagabundo que o diretor ama: da presença de Pam Grier às seguranças de uma bem bolada mas nada original trama de gênero) e também o mais particular (na forma com que partindo disso ele constrói um mundo rico e único). Estamos num filme em que todo o trabalho de direção se concentra na tensão entre dois extremos – entre um mundo que se constrói a partir de uma lógica do gênero cinematográfico e outro que passa ao largo dela. Todos em Jackie Brown viram um monte de filmes e gostariam que suas vidas saíssem mais ou menos como um, mas Tarantino trabalha justamente para acentuar a distância entre estas duas coisas. Daí a ênfase tão grande no filme sobre o ato de envelhecer. Afinal, se há algo que "filmes" garantem é justamente a eternidade de cada instante. Só que, com a exceção de Ordell – tão envolvido com sua própria imagem –, todos sabem que nada funciona assim. A ansiedade que marca tanto o filme aparece nesta relação entre o que se projeta e o que efetivamente se tem. Ou como um dos policiais coloca para Jackie: após 20 anos, espera-se ter algo mais na vida do que ser mal paga para trabalhar na pior companhia aérea possível; mas, bem, às vezes isso acontece. É uma questão de, uma vez admitido isto, se virar da melhor forma possível. Se Ordell acha que é um personagem de cinema, Jackie decide que precisa agir como um (o que é bem diferente). Sabemos que ela vai ter sucesso no que ela for tentar pela maneira como todo o espaço cênico na seqüência de abertura se definia a partir dela, mas também porque nunca temos dúvida de que ela compreende muito bem as regras do jogo do universo do filme. Em Jackie Brown a glamurosa atuação de estrela de Pam Grier existe em meio aos cenários menos glamurosos que o diretor conseguiu encontrar, da mesma forma que uma das grandes piadas do filme é que o grande golpe da sua complicada trama consiste em carregar uma sacola do ponto A para o ponto B.

Neste cuidadoso jogo, se Jackie põe os eventos do filme em ação ao assumir sua posição como estrela, caberá ao seu diretor venerá-la, mas nunca se identificar com ela. O filme pode se chamar Jackie Brown, mas o seu centro é o agente de fianças Max Cherry (Robert Forster, numa das atuações mais perfeitamente calibradas dos últimos anos). Max pode ser ele próprio um arquétipo, mas neste universo de tipos auto-conscientes ele é o único que não parece ter interesse nenhum nisso. Na primeira vez que o vemos, se há algo projetado na tela, é a segurança de um sujeito mais do que satisfeito com o que tem. Max Cherry é o mais comum e desinteressante sujeito possível, e nisso reside a sua força. Alguém a certa altura diz que todo agente de fiança é picareta, mas a partir do momento em que o vemos pela primeira vez estamos prontos para confiar nele; está ali um sujeito tão satisfeito com o que tem que é difícil imaginá-lo saindo da linha para obter alguma vantagem. Isto é, até ele botar seus olhos em Jackie. Os dois planos-chave de Jackie Brown mostram apenas Pam Grier caminhando (na primeira vez se aproximando da câmera, na segunda se afastando). Ambos são subjetivas filmadas do ponta de vista de Max, e a importância deles está no olhar que se lança mais do que naquilo que é olhado. Se o espaço cênico de Jackie Brown é construído a partir do corpo de Pam Grier, é o olhar de Max quem estabelece esta mise en scène. É quando ele a vê que para ele o mundo também entra em gravitação. A partir deste ponto, Max só realiza duas ações: carregar a tal sacola e olhar Jackie. O filme a todo momento se interrompe para que Max olhe para Jackie. A função de Max Cherry no filme é justamente essa: ele é o homem que vê, olha, observa. É por isso que Tarantino o compreende e se identifica com ele como com nenhum outro personagem de sua obra.

É por causa desta relação que o clímax de Jackie Brown ressoa tão forte. A seqüência que falsamente nos é apresentada como o epílogo – mas só pode ser vista assim se acreditarmos que o centro do filme é a trama policial – é bem simples. Jackie beija Max e o convida para viajar para Europa com ela. Então, este homem cujo olhar desejoso se tornara o centro das duas horas anteriores (ou seria o olhar do cineasta? Ou o nosso?), e que havia sido abalado por aquela mulher (lembrem-se que é ele quem carrega a sacola), este homem se afasta assustado, observa-a ir embora e chora. Todos os desejos que ele tinha projetado até ali se materializam, e só lhe resta fugir assustado, lamentando. É um momento de exposição de personagem e diretor raros (a seqüência não existe no livro). É a confissão/lamento do homem que vê, mas não pode tocarç que deseja, mas prefere a segurança de uma certa distancia. Neste momento em que câmera sai de foco, Tarantino realiza aquilo em que Samuel Fuller (que morreu quando o filme estava sendo finalizado e recebeu um agradecimento especial nos créditos) era mestre: transformar o pulp em poesia. Cães de Aluguel e Pulp Fiction partiam das fascinações cinematográficas do seu autor e tentavam tirar dali obras-primas. Com Jackie Brown, sem tentar, ele finalmente conseguiu uma ao contemplar, se impregnar e refletir sobre elas.


Filipe Furtado

 

 




Robert De Niro e Samuel L. Jackson em Jackie Brown