F FOR FUCK
Tarantino e o elogio da vulgaridade

O retorno dos Pixies, que fazem show em Curitiba no início de maio, não consegue escapar a um clima dúbio, de alegria e estranheza (quem imaginava, mais de dez anos após o último disco da banda – o Trompe le Monde, de 1991 –, que o quarteto se reuniria?). A despeito dos exageros fincherianos, o final de Clube da Luta, de 1999, com prédios implodindo ao som de "Where is my mind?", não constitui uma imagem crepuscular tão forte a ponto de servir como créditos finais de uma década. Mas a retomada dessa música de 1987 é sintomática com relação ao que ela representa: Pixies, como atesta a brevidade de sua (primeira) existência – da segunda metade dos anos 80 até o início dos 90 –, parece ter surgido justamente para fazer a transição entre as duas décadas, aglutinar as influências precedentes (do punk ao pós-punk, da surf music ao ska, dos sons às imagens, de Neil Young a David Lynch e Eraserhead) e atapetar o chão para o rock dos anos 90, que não cansaria de fazer seu estilo ecoar. No encarte da coletânea Death to the Pixies, um texto de Frank Black afirma que o grande efeito do fenômeno Nirvana foi transformar a contracultura em cultura. Quando o Nirvana estourou, Pixies e Sonic Youth já existiam há discos e já tinham gravado as obras-primas de suas carreiras, mas foi só com "Smells like teen spirit" que o eixo da música pop abraçou de vez o rock "alternativo", subvertendo qualquer categorização – daí a indagação de Frank Black sobre o que é contracultura depois de Nirvana (a questão, na verdade, tem raízes bem mais profundas, anteriores tanto a Nirvana e Pixies quanto a The Clash e Sex Pistols).

Questionamento parecido pode ser encaminhado ao papel de Quentin Tarantino no cenário cinematográfico. O que é cinema independente americano depois de Cães de Aluguel e Pulp Fiction? E depois de elucubrações sobre hambúrguer, batatas fritas e programas televisivos (antes encontráveis somente em Jarmusch e afins) se tornarem o paradigma de diálogo de uma porção considerável do cinema mainstream? Tarantino fez pelo cinema americano (e pelo cinema, de uma forma geral – pensar nos britânicos na linha Guy Ritchie/Danny Boyle, em Amores Brutos, em Coisas para Fazer em Denver Quando Você Está Morto...) o que Pixies e Nirvana fizeram pela música: tanto uma passagem dos anos 80 para os 90 (óbvio que isso se direciona a aspectos específicos e deve ser relativizado) quanto a naturalização de alguns signos antes restritos à "contracultura". E seus ecos também puderam ser sentidos em boa parte da produção que então se seguiu, algumas vezes atingindo níveis desastrosos (como citado no parêntese precedente).

Cães de Aluguel e Pulp Fiction, filmes de 1992 e 1994, respectivamente, espelhavam uma posição cinéfila marcante nos anos 80, quando a fruição doméstica do cinema através do videocassete e da tv a cabo resultou numa multirreferencialidade extrema. Não tardou até que fossem apontados mil e um reflexos de uma possível tradição videoclubista na obra de Tarantino (do que seu passado como balconista de vídeo-locadora aparecia como prova irrefutável). Da blaxploitation ao kung fu, do filme policial americano anos 70 ao filme yakuza, do western spaghetti à primeira geração do cinema indie, de Kubrick a Ringo Lam: está tudo lá. O fato que não deixa de ser curioso agora é que Kill Bill chega logo após a década em que se ampliou e se consolidou um mercado de world cinema, mercado que traz como uma de suas fatias mais fartas justamente o filme de ação de Hong Kong. O vácuo que separa Kill Bill de Jackie Brown talvez se explique por aí: missão 80-90 cumprida, veio o período de reciclagem, até chegar a hora, uma década após Cães de Aluguel, de fazer um filme a partir das influências de uma cinefilia incrementada durante os últimos anos pelo dvd, pela internet, pela circulação maior de filmes asiáticos (a exemplo do wu xia pan , o filme chinês de espada). Se hoje é possível baixar os filmes de King Hu pela internet, nada mais normal do que surgir uma obra de Tarantino bebendo diretamente nessa fonte. E a questão é certamente muito mais conceitual do que material: não é que só agora ele disponha dos meios de acesso a essa produção que tanto lhe interessa e estimula, a questão é que só agora lhe ocorre o sentido de realizar o seu exercício estético-cinefílico. Numa era de remakes abundantes, ele propõe uma outra modalidade de reciclagem: a reinvenção de formas (ao invés da reutilização de scripts).

Ironicamente, foi a própria difusão do cinema asiático que permitiu que muitas pessoas assistissem a City on Fire, de Ringo Lam, e acusassem Cães de Aluguel de plágio. Tarantino, por sua vez, diz que a principal influência do filme é o clássico O Grande Golpe (The Killing), de Stanley Kubrick. Mas a questão mais interessante que se pode extrair daí não diz respeito a ele ter ou não "copiado" obras anteriores: a questão maior está na maneira como isso explicita o tipo de relação que Tarantino estabelece com as imagens, relação que pode também ser ilustrada pelo que diz Jean-Claude Bernardet num belo texto ("A subjetividade e as imagens alheias: ressignificação"): "O banco de imagens é um bordel onde escolhemos as que mais convêm a nossos fins. Imagens cujas origens podem se perder". Essa prostituição das imagens mantém o cinema de Tarantino em movimento. Para que serve o grande banco de dados imagético criado pelo mundo senão para ser desfrutado, revivificado, transformado? Apesar de não manusear imagens de arquivo, o cinema de Tarantino consiste, em grande medida, em retrabalhar uma iconografia que o precede, sendo fiel em maior ou menor grau. Longe de podermos achar que ele utiliza operações de transferência de linguagens e estilos no intuito de apagar suas origens e tentar tomá-los como seus: há um caráter tanto de reverência às fontes (citadas verbalmente em seus filmes) quanto de admiração pelo potencial plurissêmico das imagens. Também não se deve de maneira alguma achar que inexista um universo marcadamente dele, o que a própria terminologia mobilizada para designar os filmes que o têm como referência evidente confirma (tarantínico, tarantinesco, tarantinização).

Em relação ao assunto Cães de Aluguel/City on Fire/The Killing, o que há de relevante, além de observar o quão abertamente o filme exprime a existência de diversos vasos comunicantes no universo-cinema, está no modo como Tarantino conseguiu uma curiosa interseção de elementos dos filmes de Kubrick e Ringo Lam. O conjunto representado por Cães de Aluguel é não só essa interseção, mas também uma forma de lidar com as convenções de gênero carcomendo-as pela raiz através da confusão temporal, da ausência de funcionalidade narrativa dos diálogos, da exploração de espaços lacunares (um armazém, uma boate com shows eróticos, um beco repleto de pichações, uma lanchonete como outra qualquer). O filme começa com a discussão, puxada pelo personagem do próprio Tarantino, sobre a música "Like a Virgin", da Madonna. Ou seja, um dos maiores fenômenos pop dos anos 80 sendo debatido por um grupo de homens vestidos de terno (como gangsteres à moda antiga) e usando e abusando de um linguajar e uma postura absolutamente identificados ao despojamento característico dos anos 90. Um deles diz que não gosta do que Madonna tem feito, que prefere a época de "Borderline". O outro comenta a canção dos anos 70 que ouviu no programa de rádio ("K-Billy’s Supersounds of the Seventies") cuja narração marca importante presença no filme. Em suma, Tarantino inicia uma discussão que traz referências de décadas anteriores àquela em que o filme se passa quase que para apresentar o seu projeto de cinema, dizer para o que veio e com que bagagem.

Da mesma forma que John Ford realizou um western de interiores em O Homem que Matou o Facínora, re-avaliando uma série de estruturas do gênero, Cães de Aluguel é um filme de gangster enfurnado em duas ou três locações de interior, o que favorece uma resolução bastante teatral quando das seqüências no armazém, o espaço delimitado (palco) onde as sucessivas entradas em cena definem o andamento dramático. Cães de Aluguel propõe uma lógica bem matemática: um grupo de homens identificados por cores (poderiam perfeitamente ser números), uma mala com diamantes (o coeficiente milionário), uma operação mal sucedida (equação mal resolvida), uma geometria de miras que acaba fazendo as parcelas se subtraírem umas às outras, um personagem-resto (o de Steve Buscemi) que fica com a fortuna. Esse lado de equação não linear (tanto por lidar com um tempo circular quanto por incorporar o acaso), que frustra um plano milimetricamente calculado para ser o golpe perfeito, é algo que aproxima muito o filme de Tarantino de The Killing. Kubrick também trabalha, a seu modo, a lógica e a estrutura do filme de gangster, exercitando todo seu apreço visual e compondo tipos marcantes (a mulher adúltera que tenta interferir nos planos do bando, o marido bobalhão, o careca abrutalhado que cuida do "trabalho sujo" – e cujo biótipo é emprestado ao Joe de Cães de Aluguel –, o mentor intelectual do roubo – que termina o filme vendo o dinheiro voar pelos ares).

As parcas cenas externas de Cães de Aluguel são uma das coisas que o diferenciam de City on Fire, de 1987, este sim um autêntico filme policial (no sentido de que realiza uma radiografia de espaço urbano e se atém a temas típicos do gênero). Além de, em matéria de estilo, Ringo Lam e Quentin Tarantino também diferirem bastante, City on Fire e Cães de Aluguel jamais podem ser apontados como filmes iguais por um motivo muito simples: o primeiro é verdadeiramente um filme de ação, enquanto o segundo parte de seus componentes apenas para filmar as fissuras entre eles. Cães de Aluguel é mais ou menos a exposição dos fracassos de possíveis personagens de um filme de ação e o encadeamento do conteúdo das elipses desse filme (ou seja, os tempos mortos que ficam retidos na peneira da narrativa convencional). As longas deambulações de personagens que conversam banalidades (ora a pé, com a câmera os acompanhando num plano contínuo, ora de carro, onde Tarantino sempre opta pela variação do corte), presentes em Cães de Aluguel e recorrentes em Pulp Fiction, jamais caberiam em City on Fire. Em compensação, City on Fire apresenta, entre outras, as seguintes semelhanças com Cães de Aluguel: 1) um policial infiltrado numa quadrilha que rouba diamantes; 2) a camaradagem que surge entre esse policial e um dos membros da quadrilha; 3) um roubo que dá errado porque a polícia chega na hora; 4) a seqüência final que se passa num armazém e termina exatamente com uma triangulação de tiros. Só esses quatro elementos já retiram o filme de Tarantino do campo da inspiração e o transportam ao da citação (ou imitação, se preferirem). Problemas? Nenhum, pois boa parte do cinema contemporâneo que realmente interessa vive é dessa contaminação sadia, dessa incontrolável circulação de imagens pelo mundo.

Amo muito tudo isso

Talvez não seja possível aplicar a Tarantino o modelo de reificação proposto pelos estudos tradicionais sobre cultura de massa. Em seu cinema, não se trata de reproduzir uma estrutura através do rearranjo formal que lhe permite contar a mesma história (e propagar a mesma ideologia) de modo sempre novo mas sempre igual, mudando-se a aparência mas mantendo-se a medula. Não se trata de reorganizar as formas dentro de um campo gravitacional conhecido e aprovado, e sim de transportá-las a um universo espectral e múltiplo, "o universo Tarantino" (como ele mesmo afirma existir), onde os fragmentos escolhidos a dedo dentre o vasto oceano da cinefilia são deslocados de sua origem (esta só passa a interessar ao próprio cineasta, que a cita despudorada e incessantemente) e se perdem na poeira cósmica. Cinema de quem ama cinema, de quem ama ver. Cinema à imagem da imagem, mergulho profundo no espaço-tempo que só pode existir... no cinema.

Nesse espaço-tempo metacinematográfico, Tarantino lida com significados intrínsecos (fatuais e expressionais); seus personagens importam menos pelo perfil psicológico do que pela iconicidade. Assim como em Sergio Leone, Lo Wei e Robert Clouse (os dois últimos, diretores de filmes com Bruce Lee), a decupagem não obedece a motivações psicológicas dos personagens, mas sim a uma motivação visual e coreográfica do diretor. O refinamento de Tarantino concentra-se na estrutura narrativa e na visualidade. O que importa é conceber um painel saturado de signos e cores e movido por ações geometricamente programadas (o triângulo de pistolas ao final de Cães de Aluguel, as imbricações de espaço em Pulp Fiction e Jackie Brown). Os personagens são tagarelas, mas não falam de suas preocupações, não traçam uma psicologia própria, não desfazem sua opacidade (não falam de si, falam do mundo exterior). Personalidade, temperamento, afetividade: tudo isso é confabulado pela ação pura e, do ponto de vista da dramaturgia, não ultrapassa um nível de tensão superficial (um bom exemplo é o romance platônico entre Vincent Vega e Mia Wallace, praticamente condensado na seqüência – quando ocorre a já antológica dança dos dois – do restaurante em que cada mesa representa uma iconografia consagrada e garçons e garçonetes estão vestidos como ícones da cultura pop). Ao apanhar personagens ultracodificados (o gangster, a jovem doidinha, o "limpador" – impossível esquecer a participação de Harvey Keitel como Mr. Wolf em Pulp Fiction –, o vilão de filme B...), Tarantino lhes concede uma existência estritamente cinematográfica. Tudo nesses personagens é moldado para fora, tudo é em função da imagem que resultará de sua exploração (no sentido mais politicamente incorreto do termo).

A cartela que abre Pulp Fiction é bastante emblemática, contendo uma definição de dicionário da palavra pulp: "1) substância macia, úmida e informe; 2) revista ou livro contendo assunto violento e sendo caracteristicamente impresso em papel tosco e inacabado". É partindo dessa matéria vulgar e maleável que Tarantino busca uma estética em nada grosseira, em nada disforme. Ficção barata, sim, mas escrita em papel luxuoso. Se Jackie Brown exprime uma certa maturidade artística, Cães de Aluguel e Pulp Fiction são como manifestos em favor da cultura pop mais rasteira. No clássico diálogo entre John Travolta e Samuel L. Jackson no carro, logo no início de Pulp Fiction, eles falam de como os franceses chamam o Big Mac (o da promoção nº 1) e o Quarteirão com Queijo (o da promoção nº 2). Kill Bill, com seus volumes 1 e 2, parece vir justamente para reafirmar esse cinema transnacional e de hambúrguer com fritas: excelente pedida.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 




Harvey Keitel em Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino