As Bicicletas de Belleville
Sylvain Chomet, Les triplettes de Belleville, França, 2003

Há, certamente, aspectos notáveis na realização desse As Bicicletas de Beleville. Num panorama da animação ocidental obcecado em descobrir nas tecnologias da computação gráfica o eldorado de seus próximos 100 anos, é muito raro ver um filme de longa metragem, e formatado para o grande circuito, apostar de forma tão apaixonada no poder do traço, da sinuosidade do desenho bidimensional e na malícia gráfica de tão longeva tradição (gesto contra-corrente quando até a ortodoxa Disney começa a aposentar suas "animações tradicionais").

Há um pouco de Avery, um namorico com Chuck Jones e uma pitada da musicalidade Disney em suas entrelinhas. E é nessa aproximação com o que de há de mais longevo na tradição da animação de jogos físicos (norte-americana em sua maioria, friso) que As Bicicletas de Beleville se realiza no melhor de sua forma. Os jogos com engrenagens e movimentos repetitivos, com os non-senses físicos das quedas e com os gestos largos dos personagens dão ao filme sua riquíssima fauna de tipos, figuras peculiares que se fixam , ao final da projeção, como o grande viés, o grande talento de Sylvain Chomet.

Outro aspecto notável do filme é a riqueza da forma com que trabalha suas sonoridades. As nuances das falas abafadas (ou a ausência gritante de falas), os ruídos das grandes cidades, os murmúrios (e risadas) das trigêmeas, o apito insistente da "avó" e o ruído das correias das bicicletas, constróem para o filme uma atmosfera de quase-sonho, de flutuação de memória e de leve ironia, convidando o espectador para um jogo onde pequenas pistas vão insinuando tanto a narrativa, quanto as características de seus personagens. Há um certo mickeymousing "acústico" que atravessa todo o filme, jogando com a linguagem corporal dos personagens e suas sonoridades para marcar o ritmo do filme (e não o inverso tradicional: quando a música "pede" o movimento), encontrando o ápice no show das burlescas trigêmeas e seus "eletrodomésticos" (e aqui a defasagem entre o produto de massa e seu uso desviante, é a filiação mais concreta ao cinema de Tati – homenageado ao longo do filme em vários chistes e numa citação direta).

De alguma forma, o filme tenta reativar o encontro entre um certo cinema moderno dos gestos e do cotidiano, da observação pormenorizada do ócio e da rotina, com o frenesi de movimento de um grande cinema de plots e eventos, de grandes perseguições, explosões e tramas de desvelamentos. Uma espécie de cinema mudo re-verso, irônico justamente por jogar com esse seu formato (um tanto atabalhoado) que navega entre os mais elementares instrumentos narrativos e do pôr-se-em-cena e as possibilidades/firulas expressivas das imagens do pós-moderno. E é aí que o filme perde muito de seu frescor e deixa revelar sua falta de perspectivas, deixando seus méritos quase que à deriva num mar de inexpressividade...

Há uma dificuldade gritante de articular o potencial do animador (esse talento para tipos e decupagem de gestos) em um projeto que pudesse nos vislumbrar algo além de um artesão do traço, mas um realizador com um discurso capaz de ultrapassar a mera revisitação do cinema alheio. É claro que há o desejo por uma certa poesia do silêncio, um deboche aos costumes burgueses da competição e do progresso... É claro que há habilidade nas opções de cores e inspiração nos traços, e um belo elogio da memória como celebração da vida. Mas o que espanta é o fato de que, tudo isso, junto, parece antes estar perambulando sem rumo no filme, do que esboçando qualquer sentimento de novidade, de pequena invenção – dando a As Bicicletas de Beleville o ar de um objeto gracioso sim, mas apático como um armário de brechó.

Sonho amanhecido (e esmaecido), o filme chega à tela cheio de artimanhas, de atrações de cores, de possibilidades e instantes memoráveis, mas perde peso e volume quando sentido em seu todo. Um gesto por demais distante, até de si mesmo, e praticante de uma poesia vaga, marcada por um vazio de vontade que peca pela incapacidade de seduzir para além do charme efêmero de suas tiradas.

Um filme notável. Admirável, até. Mas que parece frio na forma como se limita a se referir, a imitar, a repetir o cinema que o interessa – sem o pulso capaz de fazer de si mesmo um pouco mais do que essa memória (apaixonada) da vida... e do próprio cinema.

Frieza, certamente, que não tira Chomet da lista de animadores que merecem atenção em seus próximos trabalhos (mas que está até mesmo aquém do humor surrealista que ele já havia mostrado em La Vieille dame et les pigeons - seu belo curta de 1998). Restando a expectativa de que talvez sua maestria como artesão (eu diria, como cronista de gestos) possa esbarrar em breve com uma expressão para além dessa desinteressada poética da melancolia (que hoje aparece como o principal dos clichês-atalhos – uma quase praga – e porto-seguro preguiçoso para grande parcela de um certo cinema dito, e vendido, como "de arte").

Felipe Bragança