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                         Kids e os Profissionais é 
                          o verdadeiro filme de estúdio de Larry Clark. 
                          Muito mais do que Bully e Longe da Escuridão, 
                          e sem falar na presença de atores famosos no 
                          elenco (James Woods, também produtor do filme, 
                          e Melanie Griffith), Kids e os Profissionais tem 
                          claramente uma proposta de mixar a alguns códigos 
                          do cinema de gênero o trabalho iconográfico 
                          e conceitual que Clark apresentara em Kids. O 
                          título do filme no Brasil, nesse sentido, traz 
                          bastante significado: a proposta foi mesmo ver como 
                          os garotos do filme anterior se sairiam quando infiltrados 
                          no mundo adulto (no caso, o mundo do crime). Esse universo 
                          adulto, mais particularmente o regido pelos tentáculos 
                          sociais do crime, com que o cinema indubitavelmente 
                          está acostumado a lidar, terá seus códigos 
                          constantemente problematizados. É aí que 
                          se põe em tensão a linha dramática 
                          de Kids e os Profissionais, e de toda a obra 
                          de Clark por tabela, uma vez que a passagem à 
                          idade adulta, com o repertório de responsabilidade 
                          e peso moral que isso implica, surge no filme mesmo 
                          que seja para ter suas bases corroídas. Em suma, 
                          o que compõe o substrato essencial dos filmes 
                          tradicionais sobre adolescentes e que Larry Clark pôs 
                          radicalmente de lado em Kids, filme em que não 
                          há passagem senão de tempo (tomado em 
                          sua acepção mais concreta) e de corpos 
                          (hedonistas, verdadeiras usinas de experimentação), 
                          será aqui discutido frontalmente; é no 
                          próprio terreno do filme de "sexo, drogas 
                          e criminalidade", terreno já perfeitamente 
                          naturalizado ao cinema americano (independente ou não) 
                          – mais que isso, tornado mainstream nos anos 
                          90 –, que Clark afirmará a impossibilidade de 
                          um solo firme (ainda que este seja fértil, como 
                          será dito mais adiante) para a juventude contemporânea 
                          fincar suas raízes. Seus filmes se alimentam 
                          de uma movimentação permanente (e indeterminável); 
                          ninguém pára quieto em lugar algum. 
                           
                          A passagem ritualística, situada num plano de 
                          maturidade interior – e, portanto, para além 
                          do que o filme tem de concreto – realmente se opõe 
                          ao projeto de Clark. Kids e os Profissionais 
                          faz uma inversão interessante em relação 
                          ao enredo clássico do filme de adolescente em 
                          transformação. Ao invés do adulto 
                          sábio e orientador e do jovem talentoso porém 
                          rebelde, ou seja, ao contrário da relação 
                          mestre-discípulo, o filme de Clark aproxima do 
                          adolescente Bobby, que começa o filme sendo espancado 
                          ao ser pego roubando, o criminoso de meia-idade Mel 
                          (James Woods), cuja noção de responsabilidade 
                          e equilíbrio é discutível sob qualquer 
                          aspecto. Mel injeta heroína, toma porres homéricos 
                          e se mete em transações arriscadas como 
                          se ainda fosse um aventureiro do crime; é um 
                          adolescente em igual ou maior medida que Bobby, e aí 
                          reside a questão maior do filme: o contato com 
                          o universo adulto não como aproximação 
                          da sabedoria pacata, compreensão da maturidade, 
                          mas justamente o contrário disso, ou seja, o 
                          esforço para subverter seus mecanismos, profissionalizar-se 
                          na contravenção. Em Kids os adultos 
                          mal aparecem: há uma geração de 
                          adolescentes à deriva (de suas pulsões, 
                          glândulas, indeterminações, veleidades). 
                          E em Kids e os Profissionais os adultos são 
                          mostrados em contato permanente com a juventude, ora 
                          a ela querendo se assemelhar, ora arriscando interpretá-la 
                          de modo equivocado (como em Bully), do que o 
                          melhor exemplo está na cena clímax, quando 
                          o homem do casal rendido em função de 
                          um acerto de contas resolve tentar dialogar com Bobby 
                          dizendo que ele "é um bom menino, apenas 
                          provavelmente veio de uma broken family", 
                          ao que Bobby quase responde com um tiro. E qual seria 
                          a broken family, o lar corrompido? A dos pais 
                          de Bobby, de que nem tomamos conhecimento no filme? 
                          Ou a família disfuncional formada por Bobby e 
                          sua namorada Rosie acompanhados de Mel e Sid (Melanie 
                          Griffith, que mostra aqui que sua propensão ao 
                          junkie é anterior a Cecil Bem Demente, 
                          de John Waters)?  
                           
                          Não são poucos os diálogos em que 
                          Bobby e Rosie afirmam categoricamente que Mel e Sid 
                          são os pais que nunca tiveram. Mas fica clara 
                          a inversão de valores: há uma cena em 
                          que Sid diz que Mel é um adulto que age como 
                          criança, e Bobby é uma criança 
                          que age como adulto. Quando Rosie informa a Bobby de 
                          sua gravidez, ele afirma que não tem maturidade 
                          para ser pai. Mas ela contra-argumenta, diz algo como 
                          "nossos pais fizeram tudo errado, mas nós 
                          vamos fazer certo". Na cena seguinte eles estão 
                          num restaurante anunciando a Mel e Sid sobre o futuro 
                          bebê, o que provoca briga no casal mais velho, 
                          cuja ferida se viu remexida pela atitude dos jovens. 
                          Gerações em conflito não por baterem 
                          de frente e mostrarem interesses divergentes, gostos 
                          opostos, modos de vida anacrônicos, mas justamente 
                          por cada uma não saber estar ocupando o lugar 
                          que supostamente lhe seria pertinente, justamente por 
                          estarem se acavalando uma sobre a outra. A coisa degringola 
                          de tal modo que, ao final, na cena do posto de gasolina 
                          no meio da estrada, Mel conclui que deve eliminar Bobby 
                          do seu caminho, restabelecer a ordem: ao conduzir 
                          o adolescente pelos meandros da marginalidade, o personagem 
                          de Woods nada fez senão integrá-lo a um 
                          outro tipo de ordem, a um outro regime de forças 
                          que permanecem externas (e, portanto, coercitivas). 
                          Mas Sid, ao saber da intenção de Mel, 
                          dá um dinheiro a Bobby e pede que ele fuja para 
                          bem longe, instinto materno e protetor a que somente 
                          ela poderia aquiescer. Num belo plano com grua, vemos 
                          Mel socar a cara de Sid dentro do carro e depois seguir 
                          viagem, enquanto a câmera sobe para mostrar Bobby 
                          lá no fundo, a se perder por uma plantação 
                          de soja ao som de "Every grain of sand", de 
                          Bob Dylan. É por essa vasta plantação, 
                          donde cada grão contém virtualmente o 
                          pão, que se esprai o otimismo que pode ser visto 
                          nesse final. Se o campo é ermo e o sol já 
                          se põe, e a corrida de Bobby se dá sem 
                          destino, não se deve negar, por outro lado, que 
                          a abertura é para todo tipo de possibilidade 
                          (o que inclui a de um futuro bom). Diferentemente do 
                          final apocalíptico de Kids, aqui a aceleração 
                          sem rédeas do adolescente resulta menos como 
                          perdição do que como liberdade. O enredo 
                          do filme assim o legitima. A desorientação 
                          permanece, o diálogo entre gerações 
                          não deu certo, mas ao menos desse destino desenhado 
                          por esse primeiro contato com a vida adulta Bobby consegue 
                          fugir, e daqui por diante ele sabe que se tiver de se 
                          transformar terá de ser por si mesmo. A despeito 
                          de toda incerteza, o solo é fértil (o 
                          que se contrapõe radicalmente às críticas 
                          que Clark recebeu por retratar uma geração 
                          suicida em Kids).  
                           
                          Tanto pela pitada de road movie quanto pela própria 
                          tematização do filme e até por 
                          algumas cenas e paisagens parecidas, Kids e os Profissionais 
                          dialoga claramente com Drugstore Cowboy, de Gus 
                          Van Sant. Num dado momento, Bobby (diminutivo de Bob, 
                          nome do protagonista interpretado por Matt Dillon no 
                          filme de Van Sant) resolve não levar Rosie para 
                          uma ação arriscada, prefere poupá-la. 
                          Mas quando volta ao quarto de motel de beira de estrada 
                          em que estavam, encontra a namorada morta por overdose, 
                          cena quase decalcada da morte da personagem de Heather 
                          Graham em Drugstore Cowboy. Coincidência 
                          mais que justa: se existem dois cineastas americanos 
                          com um projeto de cinema voltado para o universo jovem 
                          de maneira franca e objetiva são eles Gus Van 
                          Sant e Larry Clark. Kids e os Profissionais não 
                          é um filme tão bom quanto Drugstore 
                          Cowboy, mas inegavelmente sabe construir esse momento 
                          de descobertas na vida de um jovem situado à 
                          margem da sociedade como algo que não se deve 
                          julgar, mas antes conhecer de perto. E o filme extrai 
                          força e criatividade é desse "perto", 
                          dessa cumplicidade em todos os vetores (o filme não 
                          tem a ingenuidade nem a vontade de apontar desvios morais, 
                          como se fosse um pai austero, sem se dar conta de que 
                          sua estética glamouriza, por exemplo, a manipulação 
                          de armas e drogas injetáveis). Antes de ser uma 
                          comunhão mal-resolvida de interesses distintos 
                          (o filme de criminalidade e o drama social) ou apenas 
                          mais um filme de drogas e contrabandistas, Kids e 
                          os Profissionais tem um encaixe compreensível 
                          e interessante na obra de Larry Clark, nem que seja 
                          para mostrar que sua proposta de cinema também 
                          se aplica a narrativas de ação.  
                           
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                          
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