Kids e os Profissionais
Larry Clark, Another day in paradise, EUA, 1997

Kids e os Profissionais é o verdadeiro filme de estúdio de Larry Clark. Muito mais do que Bully e Longe da Escuridão, e sem falar na presença de atores famosos no elenco (James Woods, também produtor do filme, e Melanie Griffith), Kids e os Profissionais tem claramente uma proposta de mixar a alguns códigos do cinema de gênero o trabalho iconográfico e conceitual que Clark apresentara em Kids. O título do filme no Brasil, nesse sentido, traz bastante significado: a proposta foi mesmo ver como os garotos do filme anterior se sairiam quando infiltrados no mundo adulto (no caso, o mundo do crime). Esse universo adulto, mais particularmente o regido pelos tentáculos sociais do crime, com que o cinema indubitavelmente está acostumado a lidar, terá seus códigos constantemente problematizados. É aí que se põe em tensão a linha dramática de Kids e os Profissionais, e de toda a obra de Clark por tabela, uma vez que a passagem à idade adulta, com o repertório de responsabilidade e peso moral que isso implica, surge no filme mesmo que seja para ter suas bases corroídas. Em suma, o que compõe o substrato essencial dos filmes tradicionais sobre adolescentes e que Larry Clark pôs radicalmente de lado em Kids, filme em que não há passagem senão de tempo (tomado em sua acepção mais concreta) e de corpos (hedonistas, verdadeiras usinas de experimentação), será aqui discutido frontalmente; é no próprio terreno do filme de "sexo, drogas e criminalidade", terreno já perfeitamente naturalizado ao cinema americano (independente ou não) – mais que isso, tornado mainstream nos anos 90 –, que Clark afirmará a impossibilidade de um solo firme (ainda que este seja fértil, como será dito mais adiante) para a juventude contemporânea fincar suas raízes. Seus filmes se alimentam de uma movimentação permanente (e indeterminável); ninguém pára quieto em lugar algum.

A passagem ritualística, situada num plano de maturidade interior – e, portanto, para além do que o filme tem de concreto – realmente se opõe ao projeto de Clark. Kids e os Profissionais faz uma inversão interessante em relação ao enredo clássico do filme de adolescente em transformação. Ao invés do adulto sábio e orientador e do jovem talentoso porém rebelde, ou seja, ao contrário da relação mestre-discípulo, o filme de Clark aproxima do adolescente Bobby, que começa o filme sendo espancado ao ser pego roubando, o criminoso de meia-idade Mel (James Woods), cuja noção de responsabilidade e equilíbrio é discutível sob qualquer aspecto. Mel injeta heroína, toma porres homéricos e se mete em transações arriscadas como se ainda fosse um aventureiro do crime; é um adolescente em igual ou maior medida que Bobby, e aí reside a questão maior do filme: o contato com o universo adulto não como aproximação da sabedoria pacata, compreensão da maturidade, mas justamente o contrário disso, ou seja, o esforço para subverter seus mecanismos, profissionalizar-se na contravenção. Em Kids os adultos mal aparecem: há uma geração de adolescentes à deriva (de suas pulsões, glândulas, indeterminações, veleidades). E em Kids e os Profissionais os adultos são mostrados em contato permanente com a juventude, ora a ela querendo se assemelhar, ora arriscando interpretá-la de modo equivocado (como em Bully), do que o melhor exemplo está na cena clímax, quando o homem do casal rendido em função de um acerto de contas resolve tentar dialogar com Bobby dizendo que ele "é um bom menino, apenas provavelmente veio de uma broken family", ao que Bobby quase responde com um tiro. E qual seria a broken family, o lar corrompido? A dos pais de Bobby, de que nem tomamos conhecimento no filme? Ou a família disfuncional formada por Bobby e sua namorada Rosie acompanhados de Mel e Sid (Melanie Griffith, que mostra aqui que sua propensão ao junkie é anterior a Cecil Bem Demente, de John Waters)?

Não são poucos os diálogos em que Bobby e Rosie afirmam categoricamente que Mel e Sid são os pais que nunca tiveram. Mas fica clara a inversão de valores: há uma cena em que Sid diz que Mel é um adulto que age como criança, e Bobby é uma criança que age como adulto. Quando Rosie informa a Bobby de sua gravidez, ele afirma que não tem maturidade para ser pai. Mas ela contra-argumenta, diz algo como "nossos pais fizeram tudo errado, mas nós vamos fazer certo". Na cena seguinte eles estão num restaurante anunciando a Mel e Sid sobre o futuro bebê, o que provoca briga no casal mais velho, cuja ferida se viu remexida pela atitude dos jovens. Gerações em conflito não por baterem de frente e mostrarem interesses divergentes, gostos opostos, modos de vida anacrônicos, mas justamente por cada uma não saber estar ocupando o lugar que supostamente lhe seria pertinente, justamente por estarem se acavalando uma sobre a outra. A coisa degringola de tal modo que, ao final, na cena do posto de gasolina no meio da estrada, Mel conclui que deve eliminar Bobby do seu caminho, restabelecer a ordem: ao conduzir o adolescente pelos meandros da marginalidade, o personagem de Woods nada fez senão integrá-lo a um outro tipo de ordem, a um outro regime de forças que permanecem externas (e, portanto, coercitivas). Mas Sid, ao saber da intenção de Mel, dá um dinheiro a Bobby e pede que ele fuja para bem longe, instinto materno e protetor a que somente ela poderia aquiescer. Num belo plano com grua, vemos Mel socar a cara de Sid dentro do carro e depois seguir viagem, enquanto a câmera sobe para mostrar Bobby lá no fundo, a se perder por uma plantação de soja ao som de "Every grain of sand", de Bob Dylan. É por essa vasta plantação, donde cada grão contém virtualmente o pão, que se esprai o otimismo que pode ser visto nesse final. Se o campo é ermo e o sol já se põe, e a corrida de Bobby se dá sem destino, não se deve negar, por outro lado, que a abertura é para todo tipo de possibilidade (o que inclui a de um futuro bom). Diferentemente do final apocalíptico de Kids, aqui a aceleração sem rédeas do adolescente resulta menos como perdição do que como liberdade. O enredo do filme assim o legitima. A desorientação permanece, o diálogo entre gerações não deu certo, mas ao menos desse destino desenhado por esse primeiro contato com a vida adulta Bobby consegue fugir, e daqui por diante ele sabe que se tiver de se transformar terá de ser por si mesmo. A despeito de toda incerteza, o solo é fértil (o que se contrapõe radicalmente às críticas que Clark recebeu por retratar uma geração suicida em Kids).

Tanto pela pitada de road movie quanto pela própria tematização do filme e até por algumas cenas e paisagens parecidas, Kids e os Profissionais dialoga claramente com Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant. Num dado momento, Bobby (diminutivo de Bob, nome do protagonista interpretado por Matt Dillon no filme de Van Sant) resolve não levar Rosie para uma ação arriscada, prefere poupá-la. Mas quando volta ao quarto de motel de beira de estrada em que estavam, encontra a namorada morta por overdose, cena quase decalcada da morte da personagem de Heather Graham em Drugstore Cowboy. Coincidência mais que justa: se existem dois cineastas americanos com um projeto de cinema voltado para o universo jovem de maneira franca e objetiva são eles Gus Van Sant e Larry Clark. Kids e os Profissionais não é um filme tão bom quanto Drugstore Cowboy, mas inegavelmente sabe construir esse momento de descobertas na vida de um jovem situado à margem da sociedade como algo que não se deve julgar, mas antes conhecer de perto. E o filme extrai força e criatividade é desse "perto", dessa cumplicidade em todos os vetores (o filme não tem a ingenuidade nem a vontade de apontar desvios morais, como se fosse um pai austero, sem se dar conta de que sua estética glamouriza, por exemplo, a manipulação de armas e drogas injetáveis). Antes de ser uma comunhão mal-resolvida de interesses distintos (o filme de criminalidade e o drama social) ou apenas mais um filme de drogas e contrabandistas, Kids e os Profissionais tem um encaixe compreensível e interessante na obra de Larry Clark, nem que seja para mostrar que sua proposta de cinema também se aplica a narrativas de ação.


Luiz Carlos Oliveira Jr.