CARTAS
do diretor do Arquivo Nacional, sobre o armazenamento dos filmes na instituição

Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2004

Prezados Senhores responsáveis pela revista eletrônica Contracampo.

Nós estamos aprendendo coisas novas todos os dias. Decidimos responder à revista eletrônica Contracampo para que as coisas não fiquem complicadas mais do que estão. Primeiramente, com relação aos comentários escritos pelo Sr. Felipe Bragança, sobre a matéria publicada pelo jornal o globo com o título de Silêncio da Prefeitura frustra o Arquivo Nacional , gostaríamos de esclarecer alguns pontos, para que os leitores possam ter uma oportunidade de tomar conhecimento dos fatos vistos da perspectiva de quem está gerenciando os filmes que foram transferidos da Cinemateca do MAM para o Arquivo Nacional . Aliás, o melhor que se pode fazer neste momento é convidar não só o Sr Felipe Bragança como também todos os interessados, para virem ao sexto andar do Arquivo Nacional e ver com os próprios olhos como as latas vieram, como foram dispostas nas salas, e os dilemas da conservação daqui para frente.

Não há o que esconder, nem o que deva ser posta em lugar oculto. Trata-se de um patrimônio que precisa ser vigiado pelos “proprietários” e pelo cidadão interessado pela sua própria história (aliás, os legítimos proprietários, uma vez que quase a totalidade dos títulos foi produzida com dinheiro público). É nossa obrigação mostrar tudo o que ocorre, e não esconder a luz do projetor com a peneira. Venham ao Arquivo Nacional e tomem conhecimento dos trabalhos desenvolvidos na Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos e das intenções e projetos que pretendemos desenvolver junto com a Coordenação de Preservação do Acervo do Arquiv o Naciona l. Só assim, creio, será possível desfazer qualquer disse-não-disse e livrar-se da mais terrível das formas de conhecimento: a de segundo grau, quer dizer, aquele que crê saber porque ouviu dizer.

As coisas não são nem um pouco fáceis no campo da preservação cinematográfica. Nunca foram. A situação dos filmes na Cinemateca do MAM, depois de décadas, e dos filmes que já estavam no Arquivo Nacional (e também dos que estão em qualquer cinemateca do mundo), é a maior prova do quanto às películas estão submetidas aos fatores ambientais. Para se ter uma idéia do tamanho do problema, basta verificar que o depósito climatizado bem estruturado da Cinemateca Brasileira só veio a se tornar uma realidade cerca de cinqüenta anos depois da sua fundação, em São Paulo, da qual devemos tirar ensinamentos e juntar esforços no oceânico projeto que é dar conta de toda a produção sobreviven te da cin ematografia brasileira.

Para anular todas as tentativas de transformar o “Caso MAM” em uma disputa bairrista (uma falsa briga, infantil e retrógrada, como se fosse um campeonato que chega à final entre as torcidas do flamengo e do Corinthians), basta se tocar que nenhuma instituição, sozinha, poderá dar conta dessa enorme missão. Daí porque não fica difícil reconhecer, diante de uma montanha de latas, que a descentralização dos arquivos de filmes é inevitável e recomendada pelos organismos internacionais. Portanto, quando uma nova instituição inicia as práticas de preservação cinematográfica mereceria receber aplausos. Por isso, quando ouvimos dizer que o Arquivo Nacional é um “novo MAM”, ou um “sarc ófago” de filmes, nos assustamos diante da incerteza que ronda aqueles que se preocupam com a preservação. Estremecemos porque não há nenhuma garantia de que, se não forem tomadas medidas certas e rápidas, os filmes poderão ser conservados, e então veremos o triste espetáculo da destruição. Se nada for feito, veremos ampliado o buraco negro da memória cinematográfica brasileira. Ficamos incomodados porque a segurança mínima que temos, é duvidosa para quem está do lado de fora.

Mas, não temos motivos para contestar o Sr. Bragança. Não termos dúvidas de sua boa intenção. Fica muito clara, no texto, a preocupação com o destino dos filmes que estavam na Cinemateca do MAM e que foram transferidos para o Arquivo Nacional, num processo confuso, apressado e que levou a muitos mal-entendidos, sobretudo entre colegas e amigos que até antes do episódio mantinham-se unidos. Por isso, não há outra saída além da abertura do campo de visão. Reafirmamos o convite: venham ao Arquivo Nacional, vejam com os próprios olhos os avanços, as vitórias, as derrotas e as perspectivas que temos para o futuro. Aproveitem a ocasião e busque m uma for ma de nos ajudar porque é tudo o que estamos precisando hoje: de aliados. Essa aliança não pode ser compreendida como uma simples associação ao Arquivo Nacional. Não precisamos de aliados de casas, pessoas ou de autoridades, mas de aliados dos filmes. Assim, estaremos isentos de uma atitude corporativista desconfortável e não será difícil encontrar formas para uma conjugação de forças na luta pela salvação de uma coleção que não é só de películas provenientes do MAM, mas do conjunto de títulos que tem diferentes origens, cerca de 50 mil rolos hoje.

O artigo escrito na Contracampo foi oportuno, porque acreditamos ser necessário acertar os ponteiros e informar melhor o que está ocorrendo. Assim, gostaríamos de esclarecer aos leitores alguns pontos. Peço a atenção para catorze pontos que podem ajudar a compreender uma situação que não foi fundada pelo Arquivo Nacional:

1- A Cinemateca do MAM é parte da nossa história e o fim de suas atividades de preservação de filmes muito nos entristeceu. Se a Direção do MAM reconheceu sua incapacidade de preservar filmes (talvez tenha sido uma decisão corajosa), nem por isso diminuiu a nossa tristeza. É dispensável aqui lembrar o quanto a Cinemateca do MAM foi importante para as nossas vidas políticas e culturais. Por esse motivo, a despeito de todo o ocorrido, acreditamos que a Cinematec a do MAM irá se reestruturar e readquirir suas possibilidades plenas de difundir filmes, possibilitar a pesquisa, agora não mais como cinemateca, mas como filmoteca. As cópias que lá ficaram oferecem àquela histórica sala de cinema um extraordinário espaço de exibição, formação de platéias, alfabetização cinematográfica etc. A programação do “ Tela Brasilis ” e a mostra atualmente em cartaz “ Documentando a Música Brasileira ”, estão aí para demonstrar toda a riqueza da história do cinema depositada nas cópias que ficaram no MAM.

2- Nós defendemos a existência na cidade do Rio de Janeiro de uma Cinemateca. Não é só um pleito de cariocas, é uma necessidade nacional. Se não for possível concretizá-la no MAM, que seja em outro lugar. Entendemos que uma Cinemateca na cidade do Rio de Janeiro reunirá forças, ampliará o campo de pesquisa e de difusão cinematográficas, bem como será a garantia de um mercado para técnicos altamente especializados nas práticas de pesquisa, preservação e process amento fílmico. Os trabalhos na Área de Tratamento de Filmes do Arquivo Nacional também têm esse mesmo significado.

3- Tudo o que o Arquivo Nacional pretende é construir um banco de matrizes. Cuidar dos negativos, das cópias únicas e lutar para a sua duplicação e preservação, criando condições para uma conservação preventiva. Não vai ser fácil. Essa iniciativa é importante para os diretores, os produtores, os governos pró-arte, os amantes de cinema, o público brasileiro e isso explica a nossa ansiedade que às vezes dá a impressão de que somos exagerados e obsessivo s. Os fil mes são frágeis, não esperam as decisões demoradas da burocracia e nenhuma película chegou ao Arquivo Nacional em bom estado. Pelo contrário, muitas chegaram em estado de coma e teremos a mórbida missão de passar o atestado de óbito para muitas delas. A conservação preventiva passa a ser o objetivo precedente. Basta notar que um importante filme pode custar dois milhões de reais para ser recuperado, enquanto o dobro desse dinheiro poderá evitar que se destruam milhares deles.

4- Quanto à divulgação dos filmes, o Arquivo Nacional não pretende substituir a Cinemateca, nem é da sua natureza institucional. Nosso caminho é disponibilizar cópias telecinadas na Sala de Consultas (uma das funções básicas do Arquivo: dar acesso às informações a todos os interessados); e exibir filmes em algumas épocas do ano, principalmente no RECINE – Mostra de Filmes de Arquivo, que só ganhou realidade devido à crise de que estamos falando.

5- Tão logo foi anunciada a disposição do MAM de enviar os filmes para a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e diante dos protestos ocorridos, o Arquivo Nacional apresentou-se como uma opção para reduzir as dificuldades da Cinemateca Brasileira. Assim, foram oferecidos espaços do Arquivo para guardar os “filmes públicos”, os filmes produzidos pelo governo federal. Vale dizer, o Ministério do Exército, o DNER e a Companhia Vale do Rio Doce. Desconheço quem ten ha ficado descontente com a idéia de levar as matrizes para São Paulo por desconfiança quanto à capacidade daquela instituição. Pelo contrário. A importância e excelência da Cinemateca Brasileira são indiscutíveis. Mas, a questão é maior. Manter os filmes no Rio significava garantir na cidade a permanência de acervos importantes para um município que já foi capital federal e que vem perdendo desde há muito tempo importantes documentos históricos. Brasília, São Paulo, Curitiba e Campinas, alguns exemplos, são localidades que absorveram acervos cariocas nos últimos tempos. Na reunião onde essa proposta foi anunciada estavam presentes a diretora Maria Regina Nascimento Brito (MAM), Carlos Roberto de Souza (Cinemateca Brasileira), Orlando Senna (Secretaria das Culturas do Estado), Gustavo Dahl (ANCINE), Ricardo Macieira (Secretaria das Culturas do Município do Rio de Janeiro), Embaixador Arnaldo Carrilho (RioFilme), Antonio Grassi (Secretaria da Cultura do Estado do Rio de Janeir o), Muril o Salles (ABRACI)), entre outras pessoas representantes do cinema nacional.

6- O processo teve prosseguimento num atropelo forçado pelos fatos. A precipitação não era do Arquivo Nacional, mas do MAM. Então, cineastas cariocas procuraram o Arquivo para saber se o espaço disponível comportaria filmes privados. Reconhecemos imediatamente que os filmes, ainda que privados, têm interesse público e social. Desde o início (não somos ingênuos) deixamos claro que somente com adaptações, aquisição de pessoal e de equipamentos; e a cons trução de um grande depósito climatizado, seria possível embarcar nesse empreendimento sem aventuras: transformar o Arquivo Nacional em guardião das matrizes dos filmes cujos diretores não estavam dispostos (por motivos que não nos compete analisar nem discutir) a transferir para outra cidade as suas obras. Neste momento a que nos referimos, surgiu um grupo de entusiastas, um grupo que acreditou no Arquivo Nacional, cuja convicção foi criada a partir das visitas às dependências do Arquivo: Antônio Carlos Fontoura, Roberto Moura, João Luís Vieira, Cláudia Schuch, Iêda Rosenfeld, Luís Carlos Barreto, Tetê Moraes, Zelito Viana, Walter Lima Jr., Paulo Thiago, José Jofilly, Helena Solberg, entre outros.

7- Como o processo exigia velocidade (a direção do MAM, à época, tinha pressa em livrar-se das matrizes) a Prefeitura, através do Secretário das Culturas Ricardo Macieira, que desde o primeiro instante manteve-se ligado na situação, empenhou verba específica para custear os caminhões, os sacos apropriados e outras peças para o “empacotamento” dos filmes e a transferência para o Arquivo Nacional. O processo não foi rápido como o MAM queria. Muitos film es ficara m nos corredores do MAM, ensacados, esperando o distrato com os detentores dos direitos sobre os filmes. Acreditamos que até hoje o processo ainda não esteja totalmente concluído.

8- Quando a verba da Prefeitura se esgotou, as últimas transferências foram bancadas pelo próprio Arquivo Nacional, que estava diante de um processo irreversível: receber todos os filmes de cineastas que a ele recorriam. Buscamos a compreensão de todos e privilegiamos os filmes em sua versão final, em detrimento de sobras de montagem, que no momento oportuno serão recebidas.

9- Estávamos naquela ocasião convictos da construção, quanto mais cedo, do grande depósito com capacidade para abrigar quase cem mil filmes. O fato parecia consumado, dependendo apenas de um projeto e da tramitação na Prefeitura. O mestre João Sócrates de Oliveira, de passagem pelo Brasil, nos ajudou a “pensar” a melhor alternativa para a ocupação do sétimo andar (um andar inteiro) para dar estrutura a um depósito climatizado com parâmetros internacio nais. É s abido de todos que o Arquivo Nacional ocupa hoje a antiga Casa da Moeda, cuja arquitetura neoclássica está restaurada. Portanto, o Arquivo Nacional tem amplos espaços a serem ocupados.

10- O desabafo no CCBB, que causou a matéria no jornal O Globo, deveu-se única e exclusivamente a uma ansiedade. Manifestamos apenas uma angústia técnica porque lutamos diariamente contra os inimigos dos filmes: os fatores ambientais difíceis de serem controlados, no improviso das salas adaptadas, mas que não são adequadas a médio e longo prazo.

11- Como somos técnicos amantes das obras que estão sob a nossa custódia e diante de tanta responsabilidade, estamos evitando transformar o “caso” em instrumento político em período eleitoral. Aguardamos uma decisão sobre o que será do projeto que foi elaborado. Só depois de esgotada a instância inicial, anunciada como viável, buscaremos outros caminhos. Nossa aflição decorre disto: Que rumo tomar? A quem recorrer agora? Por esse motivo, esta carta resposta é uma oportunidade inevitável para manifestar nossa única posição em relação à reserva técnica: aguardamos os patrocinadores do depósito climatizado.

12- Quanto às palavras do Sr. Felipe Bragança, de que os técnicos de grande competência do MAM foram “arquivados”, devo dizer que alguns técnicos do MAM foram “arquivados” pelo próprio MAM, muito antes da crise das matrizes. Outros se “auto-arquivaram”, não tiveram interesse em acompanhar os filmes para o Arquivo Nacional. Isso não significa abandono, porque de alguns deles temos recebido importantes orientações, ainda que informais, mesmo não fazendo parte do corpo técnico do Arquivo Nacional. Mas, muitos técnicos que trabalhavam no MAM (em sua mai oria, jov ens formados em cinema pela UFF), continuam suas atividades no Arquivo Nacional. Trata-se de um pessoal importante não só pelo saber, mas pela memória de quando as latas ainda estavam no MAM. Se alguma ordem foi perdida, a responsabilidade deve ser atribuída à mudança atribulada. Agora, quando deixamos a fase crítica de emergência, devemos enfrentar o aprofundamento das atividades e essa juventude sempre será importante.

13- Não procede a afirmação de que a organização alcançada no MAM, o projeto Censo Brasileiro de Filmes, tenha se perdido. Não há nada, do ponto de vista da informação, que não se possa recuperar. Nenhum filme tem endereço desconhecido. Breve, iremos nos incorporar ao Censo. O problema inicial foi separar as películas em diferentes graus de conservação. E o problema continua, é preciso criar ambientes adequados e isolar da decomposição os filmes em bom estado. Este é problema: a conservação dos filmes, as oscilações de temperatura e umidade caracterí sticas da cidade, fatores que exigem grande esforço para estabilização. Os filmes não dão refresco, não param de se estragar. É preciso destacar que a desordem que havia (hoje nem tanto), decorreu de uma mudança cujo planejamento não existiu em função das dificuldades da transferência. Mesmo no improviso, estamos próximos de alcançar uma estabilidade não desprezável de engenharia. Quem está no Arquivo é testemunha desse esforço. Também é bom que seja dito, temos uma parceria saudável com a Cinemateca Brasileira para que os instrumentos de trabalho (fichas, planilhas etc) tenham como base a mesma linguagem adotada pela Cinemateca de São Paulo. Proximamente iremos iniciar um diagnóstico completo do acervo utilizando metodologia e linguagem técnicas já do uso da Cinemateca Brasileira. Não vamos, nem devemos, reinventar a roda e se nos faltaram listagens e outros subsídios, foi porque nos foram negados.

14- Por último, parece repetitivo, é preciso insistir que nós temos agora a chance concreta de construir os depósitos, fundamentais para manter viva a memória do cinema brasileiro em qualquer formato e duração. Se o depósito for construído hoje, ainda assim será tarde, porque a situação é grave e vem se acumulando há décadas. Penso que boa parte dos problemas será bem resolvida somente com a participação de toda a comunidade de praticantes do cinema, já que tanta falta faz nesta hora a voz dos espectadores, que deveriam reclamar seu passado e o futur o. Os fil mes do MAM não podem nem devem, simplesmente, mudar de mãos, quando precisamos de todas as mãos. No entanto, um aspecto une a todos nós, inclusive o senhor Bragança: a aflição e a certeza de que sem depósito climatizado estável em parâmetros aceitáveis, não haverá futuro para os filmes.

Clovis Molinari Jr.

Coordenação de Documentos Audiovisuais

e Cartográficos do Arquivo Nacional




Caro Clóvis Molinari,

Fico satisfeito em ver que minha breve colocação aqui na revista suscitou tamanho interesse de sua parte em tentar esclarecer certos pontos obscuros de um processo que já vinha sendo esquecido pela mídia e discussões diárias do meio. Num primeiro momento, quero deixar claro que a idéia da Nota que assinei em nenhum momento foi atacar as boas intenções do Arquivo Nacional, mas colocar uma questão central e mais importante nessa discussão: a de que a preservação da memória cinematográfica não pode ser tratada como objeto de mera emergência, a de que boas intenções e investimentos pontuais não substituem um investimento sistemático na área e a de que o Arquivo Nacional, apesar de seu movimento quase heróico de receber as matrizes no momento de crise do MAM, não pode representar a grande solução para o problema.

Quando falo em sarcófago de filmes (admito que um termo “forte”, digamos), tento chamar a atenção do público para o fato de que o papel de uma cinemateca é muito maior do que o mero depósito e preservação física das películas. Uma cinemateca deve antes de tudo ser um local de política cinematográfica capaz de transformar em memória corrente aquilo que está registrado nos suportes fílmicos – e isso inclui cuidar das matrizes, das cópias únicas, do material de documentação, das novas tecnologias e das diferentes formas de difusão dessa memória. O que sempre me preocupou no projeto do Arquivo Nacional para os filmes foi perceber que de solução emergencial, seu interesse pelos filmes foi se transformando em um arremedo de solução definitiva que não respondia a essas demandas – se limitando a ser um alívio imediato para o problema do desmembramento do acervo.

Trabalhei por quase dois anos no MAM como técnico do Censo Cinematográfico (com parte da equipe de jovens especialistas que hoje trabalha no A.N.). Acompanhei o proscesso de empacotamento dos filmes no MAM e sei que o trabalho até hoje está incompleto. Certamente, como defendi em carta pública à época da explosão da crise, a ida dos filmes para São Paulo seria um marco negativo na memória cinematográfica da cidade do Rio de Janeiro e também brasileira (visto que é tecnicamente sabido que não se deve concentrar toda a memória de imagens de um país em um só edifício ou instituição por uma simples questão de segurança contra eventuais tragédias: incêndios, alagamentos – que provocassem a perda de um desses depósitos). O que questiono agora é: isto feito, os filmes mantidos no Rio de Janeiro, porque não levar a diante o projeto de Cinemateca Carioca (ou “do Rio de Janeiro”, como preferem alguns)? Porque investir no Arquivo Nacional como esse centro de preservação de filmes se você mesmo admite ser a favor de uma cinemateca para a cidade? Uma cinemateca que finalmente funcionasse com a amplitude de ações que caracterizam uma verdadeira política de preservação e difusão do cinema – uma cinemateca em que o foco maior não fosse o do arquivamento emergencial, mas o da construção de uma verdadeira rede de informações sobre o cinema brasileiro voltada para a recuperação de matrizes e difusão de imagens.

Estive na equipe que escreveu um dos projetos de Cinemateca Carioca e que foi levado até reuniões com os interessados e possíveis patrocinadores – tendo o projeto chegado até as mãos do sr. João Sócrates pelas mãos do prof. João Luiz Vieira. Sabemos que, na ocasião, havia muitas dúvidas sobre se o A.N. seria mesmo o melhor destino para os filmes e a opção pelo local se cristalizou, antes de tudo, pela capacidade de evitar a debandada e, depois, pelo aceno da prefeitura de que o dinheiro que vinha sendo solicitado para uma possível Cinemateca Carioca estaria sendo investido, na verdade, no Arquivo Nacional. Criou-se, então um impasse, que até hoje não foi respondido: afinal, qual o papel do Arquivo nesse processo? “Criar um banco de matrizes”? Mas essa função não caberia a uma bem implantada e funcional cinemateca? O que preocupa é que essa solução de improviso no A.N. se torne uma solução definitiva limitada a apenas uma das funções de uma cinemateca, adiando mais uma vez a possibilidade de se criar uma verdadeira política municipal para a difusão e preservação de nossa memória audiovisual. O alívio de um primeiro momento (representado pelo Arquivo) não pode se transformar em um arquivamento de projetos mais completos e sustentáveis. Até hoje nos parece muito obscura a forma como a Prefeitura do Rio deixou de lado o projeto da cinemateca que vinha, digamos, “namorando”, e preferiu acenar com um investimento pontual e vultoso no Arquivo Nacional.

O Arquivo corre o risco de se tornar um novo MAM, sim; na medida em que mais uma vez se torne um espaço de guarda de filmes totalmente alijado de qualquer política organizada para a memória de nosso cinema. Projetos pontuais como o REcine não substituem políticas municipais para a área, focadas e capitaneadas por um órgão municipal especializado. Porque fazer um arquivo de filmes no Arquivo Nacional e continuar dizendo que é preciso uma cinemateca carioca num outro momento, num futuro próximo, etc?... Não é possível que mais uma vez se deixe para depois um projeto que seria, finalmente, o órgão especializado que há décadas se faz necessário na cidade (o próprio MAM inflacionou a capacidade de sua cinemateca – o que levou à crise – justamente porque nunca existiram grandes referências na cidade para a guarda de filmes...). Entendo que fique feliz com as vitórias do Arquivo Nacional (de verdade: parabéns), nesse processo de manter os filmes em um estado razoavelmente bem preservado e ordenado, mas não entendo, mais uma vez, qual o papel dessas vitórias na criação de um projeto definitivo para a guarda e difusão de filmes na cidade. Pergunto: esses investimentos e “avanços” não acabam esvaziando o projeto da cinemateca?

O suporte fílmico é um objeto de preservação e memória que não pode ser considerado tecnicamente apenas como mais um objeto de arquivo – filme ocupa muito espaço (e cada vez mais), filmes cheiram mal, filmes (e sua química) atacam acervos de papel, filmes precisam de equipamentos básicos para sua manutenção (moviolas, enroladeiras, etc...). Porque fazer esse investimento no Arquivo Nacional e não numa definitiva e bem estruturada cinemateca? Essa é a grande incógnita que se propaga.

Seguindo isso, vou, brevemente, a cada um de seus pontos e os respondo – convidando o leitor a um pequeno ping-pong:

1 – Certamente a Cinemateca do MAM ainda tem função importante na difusão de filmes e preservação de cópias – principalmente um certo grupo de materiais “sem dono”, que não seguem as normas correntes de depósito e por isso sobrevivem à margem das políticas oficiais de preservação (sobras de negativos, materiais familiares, etc). A questão foi a forma abrupta com que os filmes foram quase despejados de seu lugar, depois de anos de crescente descaso dentro da instituição. Acredito, porém, que, passada a tempestade, e mudada a diretoria do museu, a Cinemateca do MAM possa finalmente reencontrar seu lugar estratégico de difusora de imagens.

2 – Repito: como os projetos do Arquivo Nacional pretendem trabalhar para a criação da Cinemateca do Rio de Janeiro?

3 – Esse “tudo” que o arquivo pretende não seria da alçada dessa Cinemateca do Rio? Não há um conflito de interesses aqui? Sei que os filmes não esperam, sei do estado dos filmes, revisei grande parte deles no MAM, mas não creio que a velha desculpa da burocracia seja argumento para que a Prefeitura do Rio desista de investir na Cinemateca para colocar dinheiro “emergencial” no Arquivo Nacional. Entendeu, o “conflito de interesses'? Além do mais, apresentar atestado de óbito para filmes é algo bastante complicado: não se deve, nunca, jogar filmes fora, não se deve considerar nunca materiais “perdidos definitivamente”- já vi filmes melados, cristalizados, mofados, serem recuperados (mesmo que em parte) e esse tipo de orientação é preocupante. Por isso é que repito: uma cinemateca deve ser levada adiante integralmente por especialistas da área e não pode seguir as normas de outras formas de arquivamento, por se tratar de um suporte muito específico (no MAM o problema foi claro – a dificuldade da diretoria entender as demandas da preservação de películas só piorou os problemas). Quase como você disse: não faz bem mais sentido (financeiro, mesmo) investir num grande projeto de cinemateca do que continuar com soluções rápidas e atalhos fortuitos que tendem a se perpetuar de forma desordenada?

4 – Como assim “substituir a Cinemateca”? Você está tratando uma possível futura Cinemateca do Rio como um lugar onde, prioritariamente, se exibem filmes, é isso? Acho que o conceito dessa instituição foi citado aqui de forma limitada – Você sabe disso.

5 – Já falamos sobre isso – melhor os filmes no Rio do que em São Paulo. Mas a resposta de emergência não pode esvaziar a solução definitiva.

6 – Não disse que o Arquivo Nacional teria sido precipitado. Precipitado foi arquivar os projetos de cinemateca... Porque construir esse grande depósito climatizado no Arquivo Nacional – isso não estaria “substituindo” a cinemateca como você afirma disse não querer fazer? Com a dificuldade de se conseguir orçamento para tais projetos – um não acaba inviabilizando o outro? Temos que ficar atentos para essas questões.

7 – De fato o processo não está concluído – matrizes e sacos de filmes continuam à espera no MAM de uma instituição que possa as receber por completo.

8 – Louvável.

9 – Repito; porque construir esse grande depósito no arquivo e não na “Cinemateca do Rio”? “Porque a Cinemateca ainda demora” – é isso? Mas , como vemos, o projeto do A.N. também se arrasta há quase dois anos...Rapidez não é a questão central aqui. Não questiono se o A.N. tem espaço, mas questiono se esse espaço não acaba funcionando como uma versão limitada de cinemateca. Além do mais, sabemos que a raridade e destaque histórico dos acervos seria essencial para capitanear outras ações satélites de nossa cinemateca – ou seja: o acervo que hoje se encontra com o A.N. não deixa de ser um instrumento de pressão política importantíssimo que uma jovem Cinemateca do Rio não deveria/poderia ignorar. Sei que o A.N. não é irresponsável, mas me parece que um projeto atropela o outro, não? E que uma cinemateca seria um projeto bem mais relevante do que apenas um paradeiro seguro para os filmes.

10 – Exatamente: as salas não são adequadas a médio ou longo prazo – e se é para se fazer um investimento a longo prazo...

11 – Certamente esse é o grande dilema: onde estão os patrocinadores? Porque não transformar esse projeto em algo mais amplo em que o A.N. entraria como PARCEIRO do projeto e não como paradeiro final dos filmes?

12 – A questão do “arquivamento” dos técnicos se deu de forma bastante atribulada. Sabe-se que outros projetos apareceram na época da crise do MAM e gente que dedicou décadas de trabalho e amor aos filmes foi acusada publicamente de “interesseira” por simplesmente discordar das opções apresentadas pela maioria. Tipo de politicagem que isolou o A.N. no centro das atenções e minou outras alternativas. A forma unilateral como o A.N. entrou na questão como solução definitiva para acalmar os ânimos, acabou provocando a perda de contribuições riquíssimas para esse processo, ainda que alguns jovens técnicos (com quem trabalhei por 16 meses) tenha continuado seu trabalho no A.N.

13 – Passei 16 meses no processo, repito. Sei o que é revisar filmes diariamente e organizá-los em graus de conservação e tipos de material. Quando começou o empacotamento para a retirada dos filmes, muito do que tinha feito até ali se perdeu, sim. Ou seja: mais uma vez, o processo atribulado fez com que grande parte do trabalho tivesse que ser refeito. “Refeito”, isso mesmo – abrir novamente as mesmas latas para revisar o que já havia sido revisado poucos meses atrás... Recuperável é, mas passar mais de um ano em um processo e vê-lo desmontado, é triste e aterrador (além de parecer dinheiro jogado fora...). Confio muito na capacidade de meus ex-colegas e sei que eles estão fazendo de tudo para desfazer esse mal. A análise técnica e de conservação dos filmes havia avançado em boa parte no MAM (seguindo os moldes da Cinemateca Brasileira e com orientação da mesma), mas o despejo dos filmes provocou um atropelo de referências no mínimo irresponsável – e isso não é culpa do A.N., nem de longe. Não coloquei assim em momento algum – apenas listei como um dos problemas que uma cinemateca poderia suprir: a questão da estabilidade institucional e do compromisso específico para com os filmes. Como o Arquivo Nacional seria provisório a principio, sempre me pareceu estranho refazer o trabalho ali – mas, bem, pelo visto o A.N. não se quer mais tão provisório (e aí a questão volta ao início).

14 – Perfeitamente. Assinaria esse seu parágrafo, só que trocando as palavras “depósitos climatizados” por “Cinemateca do Rio” (com depósitos, midiateca, sala de projeção, sala de pesquisas e tudo o que dá realmente peso ao sentido das palavras “Preservação” e “Memória”). A sensação é a de que, construindo ou não os depósitos no A.N., daqui há uma década vamos estar novamente falando da necessidade de uma Cinemateca do Rio e discutindo os porquês dela não ter sido implantada na “tão propícia ocasião do desmanche do acervo de matrizes do MAM”...Sabe aquela sensação de que se está perdendo um momento histórico de mudanças por falta de articulação e por vícios por “atalhos”? É disso que eu falo.

Bem, termino aqui essa carta escrita no calor das horas: espero não ter ofendido a organização do Arquivo Nacional – minha questão nunca foi colocá-los contra a parede, até porque sua participação é essencial, hoje, para a defesa e articulação de um projeto sistemático e amplo para a memória do cinema na cidade do Rio. Mas acho que devem ser, enfatizo, ações articuladas, em torno de uma instituição municipal (ou civil, implantada com orçamento do município) e estável que possa articular os esforços de todos (inclusive do A.N.) para uma verdadeira rede de informações e guarda de filmes no município, integrando os diferentes acervos em torno de um projeto muito maior do que lutar por esse ou aquele depósito climatizado.

Um abraço,

Felipe Bragança