BENJAMIM
Monique Gardenberg, Brasil, 2003

Há um jogo de esconde-revela narrativo em Benjamim. Percebemos isso logo nas quatro primeiras seqüências, caracterizadas pela passagem de um estado narrativo a outro, do sonho para a realidade, do presente para o passado, do real para o imaginário/memória. Tais rupturas e reordenamentos são menos experimentos de linguagem, destinados a romper fronteiras entre seus limites de tempo-espaço/verdade-mentira, e mais uma forma diferente de organização dos eventos filmados. Existe uma trama a costurar os distintos focos narrativos, cujas pontas são deixadas soltas no início apenas para serem amarradas ao final, sem possibilitar nenhum estranhamento. Ao contrário de Estorvo, também adaptado de um romance de Chico Buarque, no caso por Ruy Guerra, tudo é disposto para situar o espectador na teia de imagens, localizá-lo na desordem e lhe dar um mapa para ele se orientar.

Estorvo negava um chão para se pisar. Benjamim oferece o conforto do entendimento lógico, estreito até, e evita o desconforto das dúvidas e dos questionamentos. O jogo de esconde-revela esconde pouco e revela demais. Não vamos entrar na comparação com o livro, lido na época de seu lançamento, já de lembrança rarefeita, mas a impressão deixada é que, se nas páginas do romance, um sentido aglutinador de tudo insistia em escapar, na tela o quebra-cabeça não deixa peça sem encaixe. Para cultores de roteiros fechadinhos, de ações justificadas e relações de causa e efeito, esse é um trabalhar exemplar, mas com um truque a modelá-lo. Porque tudo parece ali planejado para fazer o espectador se sentir inteligente por ser capaz de decifrar uma arquitetura dramática intrincada. A questão é que, como o próprio filme decifra tudo para nós, nada há a ser decifrado. As conclusões são entregues na bandeja, mas revestidas de falsa sofisticação.

Se a trama é clara, seu conceito não. Benjamim parece tatear uma reflexão sobre os riscos das imagens, mas não tem estofo para levá-la a cabo. O protagonista-título é um modelo sessentão (Paulo José). Afetado por lembranças de uma paixão traumática de juventude (Cleo Pires), também modelo, ele tenta reativar o passado ao contato com uma jovem (Cleo Pires, de novo), funcionária de imobiliária com possibilidades de virar modelo, em quem vê a reprodução visual da outra. Benjamim é só uma imagem e tem fixação por uma imagem por meio da qual é remetida a outra. Não se trata de pessoas, de personagens, mas de signos apenas. Corpos, rostos, bocas. A significação deles é maleável, seja pelos emissores, seja pelos receptores. Não há correspondência direta entre aparência e realidade. Tudo pode ser simulado, reinventado, adulterado, em jogo de evidências enganosas. Verdades são versões, ora da memória e da imaginação, ora de sujeitos manipuladores. Nessa armadilha de imagens, o olhar movido pelo desejo é arapuca. Enxerga apenas o que quer enxergar. Cleo Pires encarna o depósito desses desejos e olhares manipuláveis em sua miopia. Cobiçada pelo protagonista e pela maioria dos homens em cena, ela os fará pagar caro por eles a verem apenas como fonte de prazer controlável. Tanto o olhar manipula a imagem como a imagem manipula o olhar.

Nas relações internas do filme, isso pode ser válido, mas, na relação filme-espectador, só a imagem é manipuladora. Já o olhar de quem vê é apenas manipulado, sem chance de recriar os sentidos dados. Em seu segundo longa-metragem, Monique Gardenberg, sem revelar sinais de evolução em relação a Jenipapo, fez um filme que, por suas questões e opções estilísticas, aproxima-se de uma vertente do cinema paulista dos anos 80, mas sem tê-lo digerido direito. A tematização da própria representação é rasa demais para ser encarada como uma discussão metacinematográfica. Resulta, portanto, um filme oco. Não podendo ser assimilado como um olhar para dentro da própria obra, as imagens são reduzidas a imagens vazias, sem pulsação, sem vida, sem verdade, incapazes de transformar os artifícios em um mundo próprio. Elas apenas deixam ver as vigas do edifício sem jamais compor um prédio pronto.

É difícil sentir o sangue correr até mesmo nos momentos de sensualidade, perseguida por uma câmera esforçada em erotizar cada centímetro da pele de Cleo Pires, cujo carisma é implodido pela insistência em moder o lábio para fazer charminho. Em parte porque a concepção cromática, asséptica no presente, dourada no passado, é de uma cafonice e vulgaridade agressivas. Busca um imaginário chique que, em dados momentos, soa como paródia de publicidade, tamanha a disposição em retirar das imagens qualquer resquício de vida. Por opção ou equívoco, Benjamim é um filme amorfo, de embalagem tecnicista esterilizante, que desejar soar vistoso e ousado, mas termina por ser impotente e convencional (a seu modo). Suas imagens cheiram a naftalina com Chanel Número 5.


Cléber Eduardo