Questões de olhar


Carandiru, de Hector Babenco

Entre os lançamentos do cinema nacional durante o ano, dois me parecem casos extremamente interessantes, tanto como filmes quanto pela recepção que tiveram na mídia: Carandiru e O Homem que Copiava. Num ano especialmente fraco na nossa produção, estes dois filmes foram (provavelmente junto com Amarelo Manga) aqueles que mais geraram discussão estética. O que me interessa em particular neles parece ter passado a largo de quase a totalidade destas discussões: como exatamente estes filmes optam por olhar seus objetos.

Tanto Carandiru quanto O Homem que Copiava são filmes essencialmente voyeuristas, e também filmes que se querem sobre voyeurismo. Mas a semelhança acaba ai, já que Furtado e Babenco observam a idéia a partir de perspectivas bastante diferentes. Curioso observar como a perspectiva geral sobre eles também se diferencia: Carandiru aparentemente é um filme acadêmico, enquanto O Homem que Copiava é um trabalho esperto e moderno. Porque não consigo sentir isso? Melhor voltar para os recortes de olhar e o tal voyeurismo.

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Comecemos por Carandiru. Poucos filmes podem ser experiências mais voyeuristicas do que este. O ponto de partida dele já é justamente mostrar o cotidiano de um local especifico ao qual de outra forma não teríamos acesso. Mais importante: a nossa curiosidade por este cotidiano foi cultivada, em muito, devido a um evento especifico - o massacre dos 111 presos. Babenco, ao optar por adaptar o livro de Drauzio Varella, sabia que estava lidando com isso e sabia também que precisava responder a isso.

Carandiru não deixar de ser justamente um filme sobre os próprios problemas que ele cria. Com um objeto de observação como este, qualquer cineasta precisa optar sobre como vê-lo. O livro de Varella relatava a experiência pessoal do autor com o universo retratado. O filme tem um médico (Luis Carlos Vasconcelos) que faz às vezes de narrador/mediador do espectador com o mundo que o filme representa. Muito foi dito a respeito dos problemas que o personagem e sua mediação apresentariam: a sua passividade, a sua falta de interesse dramático, a maneira como ele nunca se alteraria ao longo do filme. Todas reclamações incontestáveis, não fossem justamente estas características que tornassem tal figura interessante. O medico não deixa de ser um personagem todo "errado", dentro da convenção do que seria um bom personagem de ficção. E, por conta disso, cria um problema no fluxo da narrativa convencional que estamos vendo, ele é um estorvo que paira sobre ela.

Babenco fez uma opção por desassociar o seu narrador da figura de Varella. O médico que Vasconcelos interpreta não é Drauzio Varella, mas simplesmente um médico qualquer de classe média que resolve trabalhar no Carandiru. Ajuda muito nisso a inexpressividade da atuação de Vasconcelos, que garante que o personagem nunca ganhe uma individualidade e interesse particular. O filme emprega uma ocasional narração em off, mas a certa altura, depois da reconstituição do massacre, faz uso de um cartão com um comentário que conclui com a assinatura de Varella, diferenciando-o assim dos offs (que viriam da personagem).

Onde isso nos leva? O médico de Babenco é uma figura passiva, sempre disposta a ouvir os presos (em episódios apresentados num meio termo entre o naturalismo de TV e um artificialismo que trai este). Se emociona aqui, ri ali, se assusta um pouco com certos causos, e só. Seu sorriso no rosto no começo, será o mesmo no final. Ele experiencia um pouco daquela realidade e depois vai para conforto de sua casa, satisfeito consigo mesmo. Nós adoraríamos que esta experiência o alterasse, que o envolvimento dele com os presos fosse menos passivo, que ele demonstrasse mais revolta, em suma que ele estivesse mais próximo da figura do herói assistencialista que o cinema pseudo-humanista adora nos fazer engolir. Em vez disso, o médico simplesmente paira ali no centro daquele filme que ao redor dele parece construído com grande convencionalismo.

O cineasta nos coloca diante de um jogo duplo, nos oferece o olhar sobre aquele outro mundo que sacia nossa curiosidade, mas ao mesmo tempo nos obriga a levar junto aquela figura que nos lembra da nossa própria posição. Mais do que um mero exercício voyeurista (o que ele também não deixa de ser), Carandiru acaba se afirmando como um filme sobre o nosso voyeurismo.

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O Homem que Copiava certamente não é um mau filme (da mesma forma que Carandiru esta longe de ser um filme perfeito). Há momentos nele – em especial, algumas cenas entre Lázaro Ramos e Pedro Cardoso – que me fazem acreditar que Furtado ainda fará o grande filme que desde de os seus primeiros curtas se espera dele. O problema é justamente o porquê destes belos momentos nunca chegarem a construir um filme mais relevante.

Algum tempo depois da estréia do filme, me vi relendo uma discussão sobre o estado do cinema francês em 1957, publicada pela Cahiers du Cinema, e fiquei impressionado com o quanto ela lembra um dos nossos cinema falados, não pelo formato em si, mas pelo tipo de comentário - quase como se com alguns ajustes, ela pudesse ser adaptada para o cinema brasileiro em 2003. De certa forma esta experiência ajudou a jogar luz sobre a minha (um tanto complicada) relação com O Homem que Copiava. O problema do filme de Furtado não seria, a meu ver, de realização, mas de conceito. É um filme que já era velho quando estava sendo pensado. É até fácil compreender porque um filme como O Homem que Copiava (assim como o bem mais jurássico Amarelo Manga) pode encantar alguns. Dentro do panorama do cinema brasileiro em 2003, estes filmes chamam sim uma certa atenção, mas dentro do panorama do cinema em 2003 são filmes triviais e perdidos no tempo.

O problema central de O Homem que Copiava é que Furtado parte para discutir uma questão essencialmente imagética a partir de uma estratégia que se resolve toda no papel. Não à toa o filme parte de falar de imagem e termina falando de narrativa, porque dentro da sua concepção inicial a imagem só existe na medida que ela narra um evento. Nada impede qualquer um de fazer um bom filme acreditando que imagem existe apenas em função da narrativa, mas quando o filme quer colocar em questão a imagem isto vira um fator limitador (chequem Minority Report, de Spielberg para ver uma outra versão deste mesmo problema).

Não surpreende, tendo isto em conta, que voyeurs no filme são apenas os personagens. O espectador e o diretor são deixados devidamente de fora da questão. Apesar de o filme nunca esconder a própria figura de Furtado, olhando de cima a ação e decidindo que personagens têm direito ao perdão ou não (o que não deixa de ser outra indicação de uma certa caduquice do filme), não há espaço em O Homem que Copiava para qualquer crise ou questionamento. Nós estamos bem longe de filmes como A Tortura do Medo ou Não Amarás, e mais próximos de uma versão bastante melhorada de uma Terça Nobre, inclusive no tipo de relação que o filme constrói com espectador.

As habilidades de Furtado como roterista, que lhe serviam muito bem em filmes de 15 minutos, vêm se mostrando um problema desde que ele passou ao longa. Se Houve uma Vez Dois Verões dava sinais de cansaço próximo ao final, o problema aqui é bem mais grave. Existe uma tendência a saturação de idéias que tem como resultado uma perda de interesse no filme. Se seus primeiros 40 minutos são cheios de possibilidades, na altura da última sacada de roteiro só resta acompanhar a última grande cartada de Furtado friamente.

Se após Carandiru, eu tinha bastante o que pensar, depois de O Homem que Copiava me restou apenas notar o quão crível ele é - todos os temas pelo qual ele passou reduzidos a mero acessório. Isto tem muito a ver com a forma que cada filme se relaciona com os mundos que representa e também em como eles se expressam. Carandiru até poderia simplesmente negociar o personagem mediador só em texto, mas ele esta lá na forma como a mise-en-scène das historias que ele ouve, no uso expressivo de Vasconcelos (todos os atores de O Homem que Copiava tem atuações tecnicamente melhores que as de Vasconcelos, mas nenhuma delas parece existir por nenhuma outra razão alem da sua própria excelência). Ou seja é a diferença entre quem molda o mundo a partir de seu olhar e de quem está simplesmente satisfeito com a própria esperteza.

Filipe Furtado