Freud
explica?
A Globo Filmes e o fetiche-cinema
Dom, de Moacyr Góes
O centro do debate do cinema brasileiro
em 2003 (com ainda mais força no segundo semestre) foi mesmo o
fenômeno Globo Filmes, e as formas de lidar com ele. No "Cinema
Falado" que acompanha esta edição, discutimos longamente
as implicações práticas e considerações
sobre o que a experiência pode ter de eminentemente positivo para
o cinema nacional, e no que ela pode nos fazer pensar em formas de melhorar
as distorções de um sistema cheio de contradições.
No entanto, aqui neste texto eu gostaria de enveredar por um outro lado,
não discutido por nós, que lida menos com medidas práticas
e mais com uma série de pré-conceitos e posições
sintomáticas tomadas por uma série de pessoas envolvidas
diretamente neste assunto. O que me interessa, de verdade (e a Contracampo
ainda vai dedicar muito espaço para isso nas edições
futuras), é tentar começar a entender as várias implicações
desta tal relação TV-cinema, e como cada um dos meios se
coloca no imaginário dos realizadores (o que me parece mais interessante
no momento do que o imaginário do público).
Volta e meia, afinal, vemos considerações
sobre trabalhos na televisão sendo muito "cinematográficos"
(o mais clássico exemplo sendo as novelas e séries dirigidas
por Luiz Fernando Carvalho), ou por outro lado sobre uma série
de filmes que repetiriam no cinema uma dita linguagem "televisiva". Recentemente,
Jorge Furtado (sempre figura-chave neste assunto, aliás) defendeu,
em entrevista na TV, uma posição com a qual tendo a concordar:
o problema já começa mal colocado, porque as diferenças
entre cinema e TV são muito menos de construção de
linguagem (que é, em ambos os casos, a do audiovisual), e muito
mais de modo de recepção das obras pelo espectador. Assistir
a um produto audiovisual (e aí importa pouco se é um filme
na TV ou uma novela no cinema) em uma sala escura, de forma ininterrupta,
com a presença de outras pessoas - inclusive desconhecidas, é
completamente diferente de receber este produto na sua casa, numa tela
pequena, com o controle remoto na mão, intervalos comerciais, e
uma série de distrações em torno (telefone, geladeira,
possivelmente uma família, etc). Claro que esta diferença
essencial leva a uma série de considerações pelos
produtores do material audiovisual específico, o que leva sim a
uma ordenação estética e, insisto que acima de tudo,
estrutura narrativa diferenciada. No entanto, se escorar em clichês,
segundo os quais cortes rápidos e enquadramentos fechados seriam
televisivos e paisagens abertas e tempos mais longos seriam cinematográficos,
é uma tolice bastante grande - tantos e tantos filmes absolutamente
"cinematográficos" usam das primeiras características, e
produtos "televisivos" usam das outras.
O que esta separação
simplória veladamente indica, na verdade, é fenômeno
de outra natureza: enquanto o cinema (mesmo nos tempos de domínio
de uma linguagem eminentemente voltada para um público adolescente)
ainda é considerado pelo meio "bem pensante", e pelos próprios
realizadores na maioria das vezes, uma arte nobre, a TV é desprezada
como reles passatempo sem valor cultural. Prova maior disso pode ser encontrada
na recente "polêmica" sobre a mudança de editoria na Cahiers
du Cinema, onde lemos vários dos nossos críticos de mais
renome mencionando uma certa "contaminação pop" da Cahiers:
segundo eles, o templo sagrado do cinema estava sendo invadido por textos
e reflexões sobre linguagens "impuras", como a da TV e a do videogame.
Pois bem, se os segmentos considerados os mais esclarecidos são
capazes deste tipo de simplificação (onde importa mais o
assunto da reflexão do que a qualidade da mesma - antes a Cahiers
refletindo sobre qualquer tema "pop" do que o nosso jornalismo "pop" refletindo
sobre as nobres artes eruditas), o que se poderia esperar dos realizadores
em si, principalmente aqueles advindos do sistema produtivo televisivo?
A TV, por si só, não
se justificaria então como objetivo artístico a ser perseguido
por nenhum dos envolvidos (atores, técnicos, diretores), que ali
apenas ganham o seu pão enquanto esperam pela chance de exercitar
as nobres artes (cinema, teatro). Quando os que realizam e os que pensam
o conteúdo audiovisual partem deste pressuposto, a cobra acaba
mordendo o próprio rabo, e enorme parte da produção
da TV é, de fato, desprovida de interesse - mas não por
estar na TV em si, e sim porque os que a realizam não acham que
ela é digna de "interesse cultural", por assim dizer. (E aqui vale
destacar como o caminho é realmente nesta mão: figuras como
Guel Arraes e Jorge Furtado, que sempre defenderam seus produtos para
TV como tendo a mesma importância que seus filmes, não por
acaso produzem, consistentemente, parte do que de melhor se faz em TV:
questão de conceito.)
Mas, porque estas questões
andam rondando a minha cabeça? Primeiramente porque há por
trás de todas estas noções uma incômoda herança
do pedantismo elitista excludente, que faz parte de uma tradição
muito mais grotesca do pensamento nacional - aquela segundo a qual tudo
que é oriundo de uma tradição eminentemente popular,
ou que é digerido por uma parcela expressiva de uma população
de baixas renda e educação formal, não pode ter valor
cultural por si, no máximo como exótico produto a ser estudado
sociologicamente, ou então aceito quando absorvido como influência
por um expoente "educado" do meio artístico, mas nunca válido
por si só. Como a TV vai da classe A à classe E (e só
esta classificação já é pernóstica),
ela não pode, é claro, estar produzindo nenhum tipo de saber
de nosso interesse; já o cinema, cada vez mais restrito às
classes B e A (quando não só A), é, então,
um exemplo nobre de extremo valor cultural.
Mas, para ser mais direto, confesso
que esta questão me fascina porque eu tento entender, afinal das
contas, o que leva a Globo ao cinema brasileiro! É fato que, afinal,
as contas parecem de fato um problema central - existe toda a discussão
financeira em torno de uma empresa passando por problemas de caixa e precisando
diversificar sua produção, aproveitando uma onda favorável
num meio onde ainda não tinha entrada e onde o investimento seria
razoavelmente limitado (com o uso dos recursos de incentivo fiscal, e
a abertura do seu próprio espaço de concessão pública
para exibir os filmes depois, e propagandas deles agora). Mas, se esta
explicação (com nuances um pouco mais longas que estas,
que não vale explorar aqui) realmente procede, e no quesito empresarial
é predominante, eu acredito que há uma outra categoria de
motivação em jogo aqui, em especial no que se refere aos
realizadores envolvidos. E, aqui, a expressão "realizadores" é
importante, porque diz respeito justamente a uma mudança de estatuto:
os realizadores. que querem fazer jus ao nome de "artistas", precisam
se tornar "cineastas" (que palavra glamourosa!), para então sentirem,
mesmo que num movimento inconsciente, que não são apenas
empregados de uma reles indústria de manufaturados - o que os igualaria
aos mortais, e não ao mundo mágico da "arte" (na TV, como
bem sabe Gilberto Braga, seriam no máximo "celebridades"). Se no
que compete aos atores, esta separação entre arte e comércio
é bem clara (como se vê na maior parte das entrevistas),
eu acho que é ainda mais interessante pensarmos na parte dos diretores.
O que poderia motivar, afinal, a passagem da TV para o cinema?
Consideremos que aquilo que o
mais comum representante da categoria dos "cineastas brasileiros" costuma
dizer é que seu maior desejo, e problema maior do cinema nacional,
é "conseguir chegar ao público". Se esta é a aspiração
máxima do artista, convenhamos que é difícil entender
a passagem de um diretor de TV, que fala para dezenas de milhões
de espectadores, para o meio do cinema, onde o 1 milhão de pagantes
é comemorado como título mundial de futebol. Portanto, se
o maior sonho de um cineasta (ser visto pelo público) é
o que menos justifica um diretor de TV a migrar para o cinema, o que faria
isso acontecer?
Uma hipótese seria o desejo
de expressar-se de uma forma que o modelo televisivo em voga não
permite - seja na escolha dos temas, seja no formato narrativo (desejo
confesso este de um Luiz Fernando Carvalho, por exemplo). Criaria-se aqui
uma separação clara: Lavoura Arcaica não tem
nada a ver com a televisão. Já uma outra descomplicada hipótese
é a do empregado-padrão no cumprimento do serviço
de bater o ponto: se é desejo da Rede Globo criar nova embalagem
de um produto, ou seja, um filme dos Normais ou da Xuxa, Didi e
Angélica, chama-se os responsáveis pelo programa (no primeiro
caso, José Alvarenga), ou algum contratado da casa (no caso dos
filmes do segundo tipo, com Moacyr Góes, Rogério Gomes,
Reinaldo Bhoury, etc). Aqui, vale notar, há um acordo tácito
de que se trata claramente de "produto televisivo para cinema", por isso
nada de considerações artísticas de parte a parte.
Mas, o que mais me interessa é
um terceiro caso: o que motivaria um Jorge Fernando a fazer Sexo, Amor
e Traição para o cinema? Ou Moacyr Góes, um Dom?
Afinal, são todos projetos específicos de cinema (apoiados
pela Globo Filmes, mas não produtos "da casa"), mas não
há neles (assim como não há num Casseta e Planeta
- O Filme, que é da casa, mas com tratamento diferenciado)
qualquer conceituação do projeto audiovisual que os diferencie,
de novo, de um produto produzido para ser exibido na Rede Globo. Não
se trata aqui de voltar ao ponto inicial, de uma linguagem dita televisiva,
pois pensemos no exemplo de um Lisbela e o Prisioneiro, de um Houve
Uma Vez Dois Verões, projetos que usam os cortes rápidos
e o roteiro fechadinho, misturados às personas das estrelas de
TV (no caso do filme de Guel Arraes) ou a estética do vídeo
(no caso do filme de Furtado), mas são indiscutivelmente produtos
pensados para o olhar e a atenção do cinema. Não
se trata de diminuir ou caracterizar uma dita "estética televisiva"
e sim saber diferenciar: Sexo, Amor e Traição, Dom
ou Casseta e Planeta além de nada terem a adicionar ao cinema,
nada têm a ganhar ao serem produtos para o cinema - atingiriam muito
mais público na TV (aonde serão exibidos em breve, é
verdade), sem mudarem em nada suas conceituações, podendo,
assim, ser realizados por muito menos dinheiro.
Então, continuando confuso
num primeiro momento, é que eu chego como única resposta
ao fetiche-cinema: a atração de ser "cineasta", de "fazer
um filme", de ser "artista", que a TV não permite, este "meio de
expressão menor". Afinal, porque Jorge Fernando, realizador de
algumas das mais importantes séries e novelas da TV brasileira,
precisaria fazer um filme para 2 milhões de pessoas? O que ele
teria a provar nesta passagem? (Sobre isso, como eu indiquei, falaremos
mais especificamente em breve na revista) Acima de tudo, o seu "pedigree"
artístico, diria eu.
E a maior e mais interessante
prova disso vem da relação com a crítica. Quando
se faz TV, afinal, a crítica não é considerada importante,
só o Ibope. Primeiro porque, na maior parte das vezes, nem há
espaço para produção de pensamento específico
sobre a TV. E, quando há, como no exemplo da Cahiers, ele é
desprezado até mesmo pelos leitores e fãs do meio de expressão
crítica. Raras vezes se viu um diretor ou um autor de TV sendo
questionado quanto à "recepção crítica" de
um programa de TV: o acordo tácito é que a crítica
não se interessa por isso, e o diretor não se preocupa se
o que faz neste meio tem qualidades ou não. Para provar isso, basta
notar que mesmo os elogios a certos programas de TV vêm na forma
de uma crítica ao meio: assim, as mini-séries "de qualidade"
da Globo, seriam "diferentes do que se vê na TV", teriam "qualidade
de cinema".
Tudo isso muda quando se refere
ao cinema, e aí eu chego ao ponto nevrálgico deste texto:
de repente é muito importante ser aceito pelos críticos,
ou então mostrar seu desprezo por estes, quando não o aceitam
(se não se desse importância de fato ao que os críticos
dizem, o certo seria ignorá-los, como se faz na TV). Vamos lembrar
de três exemplos recentes:
Em 2003, em Gramado, Moacyr
Góes lançou Dom, seu primeiro de quatro filmes (em
seis meses), aquele que teria maiores "ambições artísticas"
- embora em nada se diferenciasse de qualquer "Caso Especial" na TV, seja
em trabalho narrativo, de personagens ou visual. Na entrevista coletiva,
já criticado, o produtor Diler Trindade afirma que "um dia ainda
vai se dar o devido valor à Rede Globo" (como assim, valores em
reais, ou dólares, ou em público? Ah, ele quis dizer, os
críticos...); enquanto Moacyr Góes disse que havia um "preconceito
no Brasil com ser popular" (e da platéia veio a resposta inspirada:
"o preconceito com o popular é seu, se acha que para ser popular
o filme precisa ser ruim assim").
Entrevista com Jorge Fernando
em "O Globo", na qual ele comemora o "sucesso" de Sexo, Amor e Traição
afirmando que não tem nenhuma vergonha de fazer televisão
e usar sua linguagem no cinema (mas não explica, afinal, para quê
fazer cinema, então), e apela ao clichê máximo de
sempre: "eu não me preocupo com os críticos, mas sim com
o público" (então, para quê falar dos primeiros, afinal?
- eu não me preocupo com os desenvolvimentos na área da
tecnologia para cirurgias plásticas, por isso os ignoro e nada
sei ou tenho a dizer sobre eles).
Final do filme Casseta
e Planeta, experiência que, à parte o fracasso na parte
de realização, mesmo com o público se revelaria mal-sucedido.
Não satisfeito com as respostas mais tradicionais sobre a crítica,
os Cassetas colocam um epílogo dentro do próprio filme,
no qual, entre outras coisas, explodem um crítico e zombam das
reclamações que ele faria do filme. Afora ser clara solução
para um filme que não sabe como terminar, e da aparente auto-crítica
extrema (eles sabiam que não havia como falar bem do filme, então
"melhor nos defendermos logo"), a surpresa: porque pessoas com influência
em tantos milhões de espectadores estão tão preocupados
em ironizar e "explodir" aqueles que mal falam para milhares? Para que
"se rebaixar" e responder a quem não exerce qualquer efeito sobre
seu sucesso?
Não existem provas maiores
de que se deseja um outro patamar de aceitação, portanto.
Se afirma constantemente que "o que me importa é o público";
mas se é assim, afinal, porque não ficar fazendo TV para
trezentas vezes mais espectadores? A resposta verdadeira é a que
reafirma algo sobre o Brasil: há que se diferenciar dos "sem talento",
dos "empregados braçais", do "populacho" - que seriam os trabalhadores
da TV. Há que se tornar "cineasta", que se discutir com a "crítica",
pois ao fazer os dois o realizador se afirmaria na condição
de "criador de arte". E, assim, pode dormir mais tranquilo, como parte
de uma elite cultural muito mais importante - agora se é colega
de classe de Martin Scorsese, de Truffaut, de Fellini.
A conclusão a que se chega
é a mais óbvia, mas não menos estranha: o veículo
mais poderoso de expressão audiovisual no Brasil tem complexo de
inferioridade. Adora negar, mas tem vergonha de ser "popular", de precisar
ser aceito nas festinhas do pessoal da "arte". E, assim, os cineastas
brasileiros vivem mendigando fundos e querendo público, enquanto
os que têm ambos só querem ser "cineastas brasileiros". Quem
disser que é fácil de entender, por favor, me explique.
Eduardo Valente
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