Encontrando Bill Murray


Bill Murray em Encontros e Desencontros de Sofia Coppola

A atuação de Bill Murray em Encontros e Desencontros tem lhe valido, além de prêmios e indicações, um reconhecimento há muito merecido, porém quase sempre despistado. Ao longo de mais de duas décadas no cinema, contudo (e felizmente), Murray jamais precisou de tal tipo de reconhecimento oficial (até porque premiações, verdade seja dita, não são fiéis indicadores da qualidade de um trabalho artístico, e tampouco fazem um ator querer dar mais ou menos de si – os grandes certamente não atuam pensando em estatuetas). Desde que teve sua verdadeira estréia cinematográfica em 1979 com Almôndegas, de Ivan Reitman, comédia canadense ambientada num acampamento de férias – e que marca também o início da parceria com Harold Ramis, então roteirista, que depois dirigirá Feitiço do Tempo –, Bill Murray vem colecionando trabalhos notáveis. Dos antológicos protagonistas de Nosso Querido Bob, Feitiço do Tempo e Os Fantasmas Contra-atacam até um papel secundário como em Três É Demais, de Wes Anderson (trabalho cuja não indicação ao Oscar de ator coadjuvante foi por muitos considerada um escândalo), Murray nunca deixou de brilhar.

Para quem admira o trabalho do ator o prognóstico atual é positivo: está para chegar aos cinemas do Brasil, depois de ter passado pelos festivais de 2003, Falando de Sexo, "comédia louca" de John McNaughton na qual Bill Murray faz um advogado empenhado em livrar um colega de profissão da acusação de abuso sexual. O filme é tão hilário quanto imperdível. A um prazo mais longo, fora o desde já ultra-aguardado Garfield, teremos também o próximo filme de Wes Anderson, que, depois de pôr Bill Murray como coadjuvante em dois filmes (Três É Demais e Os Excêntricos Tenenbaums), reservou para ele o papel principal de seu novo trabalho, que está sendo rodado agora. A ser aguardado com muita ansiedade.

O filme de Sofia Coppola criou uma ótima ocasião para se falar da obra deste que é seguramente um dos melhores e mais peculiares atores americanos de hoje. Ela chegou mais perto de Bill Murray do que qualquer diretor tinha chegado antes, e talvez derive daí a magnífica repercussão que seu personagem em Encontros e Desencontros rendeu. Ficou mais fácil se dar conta da genialidade de Murray, pois lhe foram oferecidos um tempo de exposição e uma liberdade de experimentação pouco comuns ao longo de sua carreira. Na maioria das vezes Murray fez papéis secundários, ainda que possamos elencar uma série de filmes em que foi protagonista, incluindo o próprio Não Tenho Troco, belo trabalho de que foi também co-roteirista e co-diretor. Se sua carreira parece discreta, em termos de repercussão na mídia, é porque discreta também é a equação que lhe permite amarrar seus principais elementos de atuação: propensão tanto à comédia física quanto à de tiradas inteligentes e rápidas, expressões faciais absolutamente cativantes, construção dramática por simples olhares e gestuais, em suma, antes de ser um excelente ator de comédia, Murray é um excelente ator e ponto. Sua presença em Encontros e Desencontros só causou surpresa aos que não lhe haviam dado a atenção devida anteriormente. Aos demais, Bob Harris não era senão, do começo ao fim, um personagem feito sob encomenda para Bill Murray.

O facilitador de sonhos

Como as grandes figuras da comédia (Hulot que o diga), um personagem de Bill Murray pode ser encantador, e pode mudar o rumo das coisas justamente a partir do "humor" (entendido não só no sentido de comicidade, mas como toda uma disposição de espírito). "The expediter of your dreams": é assim que se auto-denomina Frank Milo, o personagem dele em Uma Mulher para Dois, de John McNaughton. Ele diz isso a Wayne (Robert De Niro), apresentando-se como aquele capaz de expedir os seus sonhos, facilitá-los, torná-los realidade. Embora seja o "vilão" do filme, é Frank quem põe Glory (Uma Thurman) nos braços de Wayne, às expensas do romance ter estado ou não nos seus planos originais. O personagem de Murray nesse filme tem algo em comum com boa parte dos seus principais papéis: acima das intenções e capacidades, desponta uma função de regulador de universos (estejam estes em harmonia ou não no momento de sua chegada). O coadjuvante que ele interpreta em Ed Wood, de Tim Burton, não apenas condensa em poucas cenas a sua expressividade tão característica e marcante, indo da ironia à ternura em pouquíssimos segundos, como também o mostra fazendo um curioso personagem de Plan 9 from Outer Space: "o grande regulador da galáxia".

Bill Murray coordenando a galáxia... E por que não? Seu caráter de regulador é menos num sentido de quem manipula, planeja, do que de alguém que simplesmente intervém, transforma. Um transformador de microcosmos, seja na casa de férias do seu psiquiatra em Nosso Querido Bob (de Frank Oz), no restrito universo de vida do tímido personagem de De Niro em Uma Mulher para Dois, na minúscula cidade de Punxsutawney em Feitiço do Tempo ou nos espaços preenchidos por ele e Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros. Por onde passa, Murray causa uma mudança, empresta um tom de fábula.

Don't hassle me. I'm local

O longa-metragem de Garfield está na fase de pré-produção. Para o papel do gato mais indolente e preguiçoso do mundo, ninguém melhor do que o já selecionado Bill Murray. Sua carreira é toda ela perpassada por uma pachorra, um descaso absoluto, um olhar esnobe, frases irônicas – sem falar no físico indiscutivelmente apropriado. Em muitos momentos, Murray já foi o próprio Garfiled. Há uma cena de Três É Demais (ou Rushmore, no original) em que ele se dirige ao trampolim da piscina de um clube, bermuda da Budweiser mais larga do que o suficiente, copo de uísque numa mão e cigarro na outra, para saltar lá de cima e espalhar a água da piscina sob os aplausos de muitos. Herman Blume é o personagem de Murray nesse maravilhoso filme de Wes Anderson, curiosamente o diretor que, no cinema americano contemporâneo, mais se assemelha a Sofia Coppola com relação ao uso da trilha sonora. A cena da psicina é genial, entre outros motivos, porque Herman interpreta aquele ato que poderia ser pura excentricidade, pura vontade de aparecer, como algo absolutamente banal; todo o trajeto até a piscina, e mesmo o salto, ele realiza como um autômato, totalmente indiferente ao espaço à sua volta. "Não me chateiem": é tudo que parece exigir através tão-somente do semblante.

Da mesma forma que Encontros e Desencontros mostra Bob Harris deslocado numa cultura que lhe é inteiramente estranha, Feitiço do Tempo e Três É Demais trazem um personagem de Murray que não se adapta, respectivamente, a uma cidade pequena com seu estilo de vida particular e à própria sociedade como um todo. A frase estampada na camisa que ele usa em Nosso Querido Bob, se aplicada a seus outros papéis de peso, poderia perfeitamente sofrer uma significativa alteração: "Don't hassle me. I'm not local". Seus personagens nos filmes de Sofia Coppola, Wes Anderson e Harold Ramis sofrem de um imenso deslocamento que, pelo menos a princípio, não lutam para superar; enquanto em Nosso Querido Bob ele era o hóspede não convidado que, pouco a pouco (e para desespero do dono da casa, o psiquiatra interpretado por Richard Dreyfuss), conquistava a família, ajeitava algumas coisas de forma acidental, intrometia-se em outras com total falta de noção de espaço e acabava por deixá-las no lugar, enfim, tentava passar por alguém "de casa", alguém local. Bob é mesmo o "espaçoso", o que chega sem ser convidado e quer participar de tudo, sempre bem-intencionado, é verdade, porém sempre frustrando as férias de Dreyfuss. Já em Feitiço do Tempo, por exemplo, sua vontade inicial não é de se integrar, mas sim de manter a distância, o que o desenrolar do filme vai tratar de reverter.

Feitiços do tempo

Não é preciso muito para que Encontros e Desencontros rapidamente traga à memória Feitiço do Tempo. Nos primeiros momentos de Encontros e Desencontros, Bob Harris lembra bastante o Phil Connors do filme de Harold Ramis, de 1993. Tanto um quanto outro são personalidades famosas que estão viajando a trabalho. Por mais que Phil traga toda uma antipatia e um desprezo pela cultura do local que visita, ao passo que Bob Harris oscila entre o irônico e o desajeitado sem jamais descambar para a antipatia e sem desprezar a cultura japonesa, da qual ele não debocha, mas simplesmente acha "muito, muito diferente", há semelhanças entre os dois que não se resumem às piadas inteligentes. Embora isso se dê de maneiras integralmente distintas, no cerne da construção de ambos os personagens está a transformação de um ponto de vista sobre um lugar e seus habitantes e, por que não dizer, sobre o próprio mundo. É toda uma concepção de vida o que os personagens de Murray reavaliam nesses dois filmes (e também em Os Fantasmas Contra-atacam, cujo diretor é Richard Donner). Os filmes chegam a ter pelo menos uma cena praticamente em comum: Bill Murray se desentendendo com o chuveiro, em Feitiço do Tempo pelo fato da água estar fria, e em Encontros e Desencontros porque a ducha é baixa demais para ele. Precisamente dez anos separam um e outro filme. E precisamente o tempo está na base dos dois: são filmes em que, como até sugere Jean-Marc Lalanne em seu texto sobre História de Marie e Julien (última pérola de Jacques Rivette, cf. Cahiers du Cinéma nş 584), uma relação amorosa é assunto para relojoeiros, é uma questão de tempo, ou do Tempo.

Phil Connors é o "homem do tempo", aquele que anuncia as previsões metereológicas no noticiário televisivo de um canal popular. Na pequenina e fria cidade de Punxsutawney, todo dia 2 de fevereiro é comemorado com festa, o Dia da Marmota (Groundhog Day, título original do filme). Encarregado de cobrir o momento clímax da festa, quando uma marmota "especialista" em metereologia é tirada de dentro de uma caixa de madeira para dizer quanto o inverno ainda vai durar, Phil menospreza o evento e seus participantes, dirige-se com sarcasmo a todos os habitantes da cidade, debocha de suas tradições, do seu provincianismo. Como que castigado pelo Universo, Phil fica preso naquele fatídico dia em que tudo havia dado errado para ele. Embora num primeiro momento ele vá acentuar sua postura mal-humorada e arrogante, para depois enveredar pela irreverência radical de quem nada tem a perder (ele entrando num cinema fantasiado do personagem de faroeste de Clint Eastwood, com direito a excelente imitação de voz, é sensacional), aos poucos Phil começa a tomar gosto pela cidade e resolve aproveitar seu eterno dia 2 de fevereiro da melhor forma posível. Ele passa a saber tudo que ocorre(u) naquele dia, assim como todos os habitantes da cidade se tornam seus conhecidos de longa data. A genialidade do filme está no fato de que as pessoas se encantam com a capacidade dele ser um recém chegado mas conhecer exatamente tudo e todos, saber exatamente o que fazer e na hora certa. Phil Connors salva a vida de alguns, resolve os problemas de outros, ajeita a vida afetiva de um casal, aprende a tocar piano em "um dia", anima a maior festa da cidade – torna-se o grande movimentador daquela microgaláxia. A espessura daquele dia só existe para ele; para os demais, tudo se dá como num passe de mágica.

É a transformação decorrida da repetição daquele dia o que permitirá a Phil conquistar a produtora de sua emissora, a personagem de Andie MacDowell, que o está acompanhando durante o evento em Punxsutawney. A princípio ela não aprecia nem um pouco a arrogância de Phil, que também não demonstra interesse por ela. Mas conforme ele vai conhecendo-a melhor, por ela se apaixona. O problema é que tem de conquistá-la em 24 horas, pois no dia seguinte, que não é senão o dia anterior, tudo volta à estaca zero. É como se Phil precisasse construir um dia perfeito, em todos os seus detalhes, para só então se libertar daquela estagnação e seguir em frente. Numa importante cena do filme, ele lamenta, numa conversa com "estranhos", não estar vivendo um dia que traz na memória como tendo sido perfeito, ao invés daquela jornada que preferia esquecer. O filme cuidará de modificar sua pergunta: sai o "por que não reviver o dia bom?" e entra o "por que não construir o dia bom?". O final feliz como construção.

As coisas começam a dar certo para Phil na justa medida em que podem ser previstas, e nesse sentido Feitiço do Tempo é o oposto extremo de Encontros e Desencontros, onde a lógica é de não-previsibilidade e transitoriedade. O filme de Sofia Coppola mostra personagens à deriva, à mercê da circunstância, e Feitiço do Tempo os circunscreve a um universo fechado no qual o conhecimento das partes se faz crucial para a sua resolução. Enquanto num filme os fatos ordenados no tempo cabem numa espécie de roteiro conhecido de cabo a rabo pelo personagem de Murray, no outro prevalece o não-roteiro, o casual, e os acontecimentos escapam ao tempo. Uma relação só pôde dar certo porque o tempo parou. A outra só existiu porquanto aceitou sua efemeridade. Para que Bob Harris levasse adiante a relação com Charlotte, o tempo precisaria parar (e o caráter transitório daquele encontro é o que concentra, simultaneamente, sua beleza e sua melancolia).

Mas, ao contrário do que se pode imaginar, Feitiço do Tempo se reconecta a Encontros e Desencontros na parte final. A diferença entre os filmes está na relação com o tempo, sim, mas de uma forma dúbia. Quando Phil Connors parece ter vivido o dia perfeito, ele vira para Andie MacDowell e diz: "Não importa o que aconteça amanhã, ou pelo resto da minha vida, estou feliz agora". O que o filme confirma é o valor do momentâneo, do que não tem a mínima obrigação de durar, mas que é belo mesmo assim. O "grande dia" (da libertação, da conquista definitiva do par romântico) só ocorre quando Phil desiste de controlar as coisas, de tentar dobrá-las a seu favor, e simplesmente vive sem se preocupar com o amanhã. Uma vez que o agora passa a ser tudo, a vida de Phil se enche de uma espontaneidade suprema, sua relação com as pessoas da cidade passa a valer tão-somente pelo que está sendo ali. Assim como em Encontros e Desencontros, a afirmação radical do tempo presente.

O fato é que Bill Murray possui o tempo (da piada, do romance, da narrativa) sempre a seu lado. E é de Feitiço do Tempo que pode ser extraída uma imagem de Bill Murray, dentre muitas possíveis, para ficar na lembrança: ao final do dia em que conquistou toda a cidade, Phil Connors é escolhido para "ir a leilão" na grande festa da marmota. A tradicional brincadeira do leilão, realizada anualmente durante as comemorações em torno do Dia da Marmota, oferece uma pista com relação à forma com que Bill Murray cativa seus espectadores: todos querem garantir posse sobre ele, para inclui-lo no elenco de mais e mais filmes, deixá-lo controlar quantas galáxias quiser. Facilitador de sonhos, catalizador de fábulas. Nosso querido Bill.

Luiz Carlos Oliveira Jr.