Teenage Lust

Entre algumas boas reprises e outras tantas requentadas, a mostra "O Jovem no Cinema" trouxe para o público carioca a oportunidade de avaliar o cinema do norte-americano Larry Clark, de quem foram exibidos dois filmes: Kids (1995), sua obra de estréia, e o inédito Bully (2001), já exibido comercialmente em São Paulo no ano passado. Boa chance para colocar em perspectiva o pequeno escândalo de Ken Park, seu filme mais recente, propagandeado na imprensa local, por ocasião de sua exibição no último Festival do Rio, como um "filme de arte com sexo explícito" -- razão pela qual lotou todas as sessões em que foi exibido, tendo sido um dos campeões de público do Festival. Com exceção de seu Kids e os Profissionais (Another Day in Paradise, 1997) e o telefilme Além da Escuridão (Teenage Caveman, 2001), ambos disponíveis em video e DVD, foi possível assistir no cinema, senão à quase totalidade de sua curta obra ao menos a seus filmes indubitavelmente mais importantes, num período de poucos meses.

Esta mini-retrospectiva chega em momento propício: depois do forte impacto provocado pela visão de seu último fime, a obra de Clark clamava por uma revisão afastada das falsas polêmicas que a estréia de seus filmes invariavelmente levantam em qualquer contexto - chegando por vezes a extremos como a proibição de Ken Park na Austrália sob a alegação de "pornografia infantil", um gesto de profunda incompreensão que indica, em certa medida, o grau de confusão e desconforto generalizado que seus filmes provocam. Lembremos da discussão sobre a classificação etária de Kids quando de sua estréia no Brasil: primeiramente censurado para menores de 18 anos, a classificação foi modificada para 14 anos depois de intensa argumentação por parte dos distribuidores, que mobilizaram uma verdadeira cruzada moral (obviamente suscitada por interesses comerciais mais imediatos) em nome da "importância social" do filme, que serviria de alerta aos pais e à juventude sobre os riscos do uso indiscriminado de drogas e do sexo sem proteção.

Como é de praxe com artistas que se arriscam em remexer tabus (e a sexualidade adolescente é um tema a que Larry Clark se dedica com incansável afinco e entrega total), o debate sobre a obra de Clark dificilmente ultrapassa um nível mais superficial e simplista; resta o infeliz e empobrecedor aprisionamento em categorias que não dão conta de explicar, ou sequer conseguem sugerir a complexidade e a riqueza de seu universo e a originalidade do olhar lançado sobre ele. Dizer que Kids é um "alerta aos pais" - frase de Janet Maslin, então crítica do New York Times, que estampava os cartazes do filme - significa fechar os olhos para todo um manancial de respostas que a experiência do filme suscita; pode-se argumentar até mesmo em favor de um caráter libertário, presente na maneira como Clark caracteriza os ritos dos adolescentes e até mesmo as ações extremas de suas personagens, convidando o espectador a participar e compartilhar dos eventos filmados sem o expediente de uma distância confortável ou de enxergá-los por um filtro de julgamento prévio. Não se trata de um olhar frio: a palavra-chave aqui é cumplicidade, nunca apologia ou condenação; por terríveis ou estúpidos que os atos sejam, e por mais gráfica e direta que seja a maneira de filmá-los, Kids não abre espaço para vozes externas que circunscrevam o universo dos adolescentes sob uma outra perspectiva senão a deles mesmos - inexiste o embate geracional, temos somente o completo abandono; e não há outra temporalidade que não o presente imediato.

Por outro lado, seria um erro negligenciar o tom de confronto e as estratégias de agressão presentes no cinema de Clark; o choque é um elemento decididamente presente, embora supervalorizado pelas reações que costuma provocar. Neste sentido, é preciso rever o hiper-realismo de Kids sob a ótica de seus filmes posteriores - e o que se tem no caso é um visível progresso artístico e uma constante redefinição de sua temática que vai culminar na sua obra-prima Ken Park, um filme que lança nova luz sobre toda a obra anterior.

O Fantasma do Paraíso

Todos os filmes de Larry Clark têm como base um foco central de tensão, uma dialética fundadora que aponta diretamente para o princípio moderno que ordena sua obra cinematográfica. A natureza reflexiva da obra de Clark só pode ser inteiramente compreendida no que ela tem de verdadeiramente original se levarmos em conta as relações entre seu cinema e o trabalho acumulado como fotógrafo por quase três décadas (uma obra vasta que inclui os álbuns seminais e cultuadíssimos Tulsa, Teenage Lust e The Perfect Childhood).

A adolescência é por excelência um estado transitório, um lugar definido como a passagem de uma etapa da vida rigidamente codificada nas ficções (a infância) para outra igualmente determinada e "superior" (a vida adulta). A matéria bruta da arte de Larry Clark, como se sabe, sempre foram os adolescentes; seu modo particular de capturar o movimento ininterrupto e fixá-lo num instante equivale de certo modo a construir uma mitologia - ou ainda, a condenar suas personagens a uma condição de juventude eterna, congelada entre o alheiamento à rígida moralidade (ou, mais especificamente, à hipocrisia) que rege o mundo adulto e mais próxima da total falta de responsabilidade que caracteriza a infância.

Em Bully, o destino das personagens de Clark são imagens congeladas, fotografias sobre as quais as sentenças determinadas pela justiça são inscritas rigorosa e severamente (proclamadas pelo olhar duro e impassível do próprio Clark numa ponta); é uma condenação de ordem existencial, o caráter circunstancial do crime não é levado em conta. No desfecho ambíguo de Além da Escuridão, não resta alternativa entre a abusiva e vampiresca ordem patriarcal que governa a vila dos adolescentes-das-cavernas e a nova ordem monstruosa inaugurada por grotescas mutações. No apocalipse figurado de Kids, resta uma única esperança: Casper, o fantasminha camarada que caminha sobre uma legião de mortos para declarar inconscientemente sua própria sentença.

Ken Park começa por um suicídio - um gesto a princípio absurdo da personagem-título que assombra e motiva toda a narrativa. O diferencial aqui é que o gesto de Ken Park é totalmente consciente: não se trata apenas da negação do devir, mas de afirmar, registrar em imagens a recusa absoluta da herança paterna. O suicído de Ken Park é paradoxalmente positivo, um modo radical de apropriar-se de sua imagem e possibilitar aos sobreviventes um mito fundador, negativo e regressivo, oposto mas complementar à utopia da edênica "ilha dos prazeres" evocada na penúltima sequência (uma das mais belas e libertárias cenas de sexo da história do cinema).

Ken Park é um filme que segue a linha de Pasolini, opondo o desejo destrutivo à sexualidade libertária como foco privilegiado de um debate ideológico entre gerações.

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É um erro comum e fartamente disseminado mesmo entre os apreciadores dizer que Clark é um cineasta que martela sempre a mesma tecla, com pequenas variações sobre o mesmo tema. Cada um de seus filmes tem uma identidade própria, englobando no todo um amplo espectro de diferentes registros visuais e narrativos. Assim, já a partir de seu segundo filme Kids e os Profissionais, Clark parece afastar-se gradativamente da estética de reportagem, de cinema-direto de Kids (a emblemática câmera na mão) para uma cada vez mais refinada composição dos quadros, uma mobilidade de câmera mais elegante, empenhada em reconfigurar os espaços.

Neste sentido, impressiona a semelhança entre o cinema de Clark e o de John Cassavetes, de quem o primeiro é um herdeiro direto (sua companhia produtora não foi batizada de Chinese Bookie Pictures por acaso). Cassavetes, além de ser igualmente um independente radical, foi outro cineasta que buscava capturar fluxos e construir detidamente suas ambiências, além de ser também, a seu modo, um poeta do movimento. Em ambos há uma mesma investigação epidérmica, de exame da superfície (o corpo é a instância máxima e o emblema do cinema dos dois) e uma recusa de revestimento psicológico de suas personagens, capturadas invariavelmente em estados diversos de intoxicação. Há até mesmo a coincidência do deslocamento geográfico, que curiosamente reflete o grau de influência que o cinema de Cassavetes exerce sobre Clark (da Nova York de Kids e Shadows à California, cenário de Ken Park e Amantes).

Como Cassavetes, Clark parece estruturar seus filmes sobre um diálogo ambivalente com os gêneros tradicionais e com os códigos particulares do cinema americano: Kids e os Profissionais, Bully e Além da Escuridão são filmes que subvertem, consecutivamente, as regras do filme policial, do relato "baseado em fatos reais" dos telefilmes e dos "cautionary tales" de horror das décadas de 50 e 60.

Ken Park, por sua vez, inaugura uma outra fase, menos derivativa mas muito mais madura, no cinema de Larry Clark. Retornaremos a ele, por ocasião de sua estréia, muito em breve (esperamos).

Fernando Verissimo