O Homem com Olhos de Raio-X
(Sobre Rogério Sganzerla)


"Meu filme é um far-west sobre o III Mundo"
"Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime"
"Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço"
"em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais"
"Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais"
(Rogério Sganzerla, Manifesto escrito durante as filmagens de"O Bandido da Luz Vermelha)

Em 1964, na revista "Cavalo Azul", dirigida por Dora e Vicente Ferreira da Silva, aparecia curioso e instigante artigo sobre o último trash-movie de Roger Corman, The Man with X-Rays Eyes, com o genial Ray Milland. A ambição da visão total move o personagem e conduz a narrativa do filme, puro desejo de transgressão que termina desembocando num vazio absoluto - em outras palavras, num êxtase de luz - dualidade que só alguém com excepcional controle facial como Milland é capaz de expressar. Um limite que é também o limite do suporte, do celulóide da película, da representação.

Assinava o artigo, mescla de cinema boca-do-lixo com alta metafísica, Rogério Sganzerla. A revista era editada, aliás, por um pessoal que passava o tempo lendo Heidegger e Novalis. Rogério não devia ser muito ligado ao grupo, mas sua intuição de tratar um sintoma da cultura pop com um olhar fenomenológico era sedutora. Tinha uns 20 anos, e logo depois, faria seu primeiro curta, Documentário, em parceria com Andrea Tonacci - o título mesmo indica a obsessão com a metalinguagem. Em 1968, com 23 anos, realiza um dos três ou quatro fimes mais decisivos do cinema brasileiro, Bandido da Luz Vermelha, estrela da fase cultural brasileira conhecida como Tropicalismo.

Egresso profícuo da crítica de cinema, Rogério Sganzerla, desaparecido no início de janeiro de 2004, viria a ser um dos maiores talentos cinematográficos brasileiros. Seu cinema foi marcado, do princípio ao fim, por uma radicalidade de linguagem em permanente rota de colisão com o sistema de produção, mas que gerou um dos percursos mais viscerais de pesquisa da cultura brasileira.

Estamos em na São Paulo, à época "a cidade que mais cresce no mundo", em plena ditadura militar. O Cinema Novo já era um slogan internacional, filme de autor no Brasil só tinha sentido se ligado a um projeto de transformação da sociedade. Bandido... não era nada disso - era uma mise en scène escrachada, com toques de Godard e trilha sonora radiofônica à la Orson Welles. "Luz" era um bandido real, mas no filme de Sganzerla era "pura aparência, esvaziado de história, psicologia, sociologia ... um fenômeno-objeto que se apresenta à nossa visão", como disse Sganzerla em um de seus textos sobre cinema moderno, reunidos recentemente no livro "Por um cinema sem limites". Mesmo na cena do suicídio final de "Luz", homenagem evidente a Pierrot le Fou, o encanto é quebrado com a chegada do personagem-delegado de polícia, que termina também morrendo ridícula e estupidamente nos mesmos fios elétricos que mataram "Luz".

Bandido ... foi produzido na Boca-do-Lixo, com capital privado de empresários que se beneficiavam da reserva de mercado de exibição cinematográfica para fazer pornochanchadas. Uma circunstância que se repetiu no ano seguinte, com A Mulher de Todos, outro filme de ressonância godardiana, mas do qual o produtor Alfredo Palácios só gostava mesmo era do nome, "que podia atrair boa bilheteria". Depois desse veio a ruptura e uma série de produções independentes, de circulação obviamente mais restrita, mas com a contundência radical que marcaria a fertilidade daquele momento cinematográfico. Primeiro, dois curtas sobre histórias-em-quadrinho, em 1969, e a seguir, Copacabana, mon amour e Sem essa, Aranha, ambos de 1970, feitos junto com Julio Bressane na produtora "Bel-Air".

Sem essa, Aranha é talvez a obra-prima do cinema "udigrudi" brasileiro. São 17 planos-seqüência com som direto, onde o biliardário-cafajeste Aranha - interpretado pelo hilariante personagem de tv, Zé Bonitinho (Jorge Loredo) - trafega pela "instabilidade do nosso cinema, que é também a da nossa sociedade, dos nossos amores, do nosso sono", esbarrando na profundidade do campo com o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, nosso ícone popular. De Copacabana ..., musicado por Gilberto Gil, filmado em cinemascope com a câmara na mão, Rogério disse que era "uma montagem de êxtases", desfile de prostitutas em procissões demoníacas sob o sol escaldante da Avenida Atlântica.

A instabilidade gera uma sensibilidade frágil, tremida, repetitiva, quase fora de foco. A imagem suporta-se pelo som. Antes de introjetar a persona de Orson Welles em sua obra - realizaria seus três últimos longas e alguns curtas "em parceria explícita" com o americano "expulso" de Hollywood - Sganzerla incorporou obsessivamente duas poderosas metáforas musicais, Jimi Hendrix e Noel Rosa. Sobre o primeiro montou um magistral filme-pirata, clips e documentos da tv americana deglutidos e sabotados sem a menor cerimônia - imagine-se o pai de Hendrix, sentado numa "rocky-chair", falando em português estilo Pai Tomás "aí eu disse, Jimi vai fundo e mantenha o nariz limpo". Sobre Noel, que seria vivido por Joel Barcelos, as dificuldades de produção falaram mais alto, e o projeto do longa-metragem frustou-se, resultando apenas num curta.

Entre o fim de 70 e começo de 80 Sganzerla realizou também um média sobre Villegagnon e a França Antártica; o longa O Abismo, definido pelo crítico Jairo Ferreira como uma "chanchada psicodélica", com Zé do Caixão e Norma Benguell; e o clip Brasil - histórica gravação da canção de Ari Barroso com João Gilberto, Caetano, Gil, Betânia e Gal, a única vez que alguém filmou João Gilberto sambando. A partir daí seu olhar iria privilegiar o "caos de cacos" da descoberta dos restos de It's all true, o famoso filme-inacabado de Orson Welles no Brasil de 1942, no contexto da "good-neighborhood policy". Em 1986 dirige Nem tudo é verdade, com Arrigo Barnabé no papel de Welles, quando a maior parte do negativo original não havia ainda sido descoberto nos porões da Paramount.

E, em 1998, Rogério dirige, monta e produz o extraordinário Tudo é Brasil, utilizando não apenas as imagens de Welles do Rio e Ceará, mas sobretudo a voz xamânica de Orson, tirada das inúmeras transmissões radiofônicas feitas do Brasil, do aniversário de Getúlio Vargas direto do cassino da Urca à descrição prazeirosa dos instrumentos da bateria do samba, em parceria com Carmen Miranda. Tudo ... é uma espécie de antropofagia cultural na contra-mão, é o desejo devorador de Orson Welles que se apropria de umbanda e jangadeiros, samba e acarajé, e que termina derrotado pelos "burocratas de Hollywood" e DIP getulista, o temível Departamento de Imprensa e Propaganda.

O último filme de Rogério Sganzerla, O Signo do Caos, finalizado em 2003, também se refere à épica wellesiana no Brasil, agora já adaptada a uma metáfora contemporânea da crise da produção cinematográfica brasileira. Um filme raivoso, que acidentalmente fecha uma carreira cinematográfica "dissolvida numa cadeia circular complexa e que desafia o espectador a encontrar um significado", como escreveu uma crítica americana no "Variety" a propósito da montagem de Tudo é Brasil. No final do filme de Roger Corman, o "homem com olhos de raio-x" rompe a circularidade da percepção fenomenológica e desvela o significado para o espectador - o vazio é a luz.

João Lanari
(agradeço a Hugo Franco a referência do artigo de Sganzerla na revista "Cavalo Azul")