Hércules no Centro da Terra, de Mario Bava
Ercole al Centro della Terra, Itália, 1961

Hercules no Centro da Terra é o segundo filme de Mario Bava, mas já demonstra que A Máscara do Demônio não foi um acidente de percurso. Já com estrada no gênero (havia fotografado os dois primeiros filmes do ciclo, Hercules [1957] e Hercules Unchained [1958], e foi o responsável pelos efeitos especiais em inúmeros outros dirigidos por amigos), o diretor demonstra maturidade e força transformando o que podia vir a ser um conto da Carochinha numa assustadora viagem ao Inferno, com todos os tipos de belzebus possíveis e imagináveis.

Algo que aumenta imensamente a apreciação do filme é saber as circunstâncias em que ele foi feito. Ao contrário do que normalmente acontecia nos "pepluns" (filme com heróis mitológicos musculosos), Hercules no Centro da Terra foi rodado em sua grande maioria em estúdio: com exceção da abertura, filmada na cascata de Montegelato (aonde já haviam sido rodadas cenas importantes de Hercules e Hercules Unchained) e de algumas cenas rodadas nas catacumbas de Castellana (que voltariam a ser usadas por Bava em Perigo: Diabolik) e na praia de Tor Caldara, em Anzio (aonde o próprio Lee espancaria Dalila di Lazzari em La Frusta i il Cuorpo sob o comando de Bava, três anos depois), todo o resto foi rodado em um palco vazio de Cinecittá. Todos os elementos do cenário e do figurino foram reaproveitados de outros filmes: a máscara utilizada por Medea já havia sido vista em A Doce Vida, o trono da rainha dos Hespérides é de Jornada Abaixo do Deserto, de Edgar Ulmer, e as colunas são reaproveitadas de O Gigante de Tessália, de Riccardo Fredda. No mais, a técnica impecável de Bava na iluminação consegue criar climas diferentes, disfarçando que quase 80% do filme foi rodado sob o mesmo cenário, apenas mudando as peças de posição e utilizando truqes de iluminação. Uma verdadeira aula de economia e imaginação para cineastas iniciantes.

Um dos motivos por que o filme dá certo é a presença de Reg Park. Um legítimo mastodonte, três vezes (1951, 1958 e 1965) Mr. Universo (e que alguns anos depois entregaria o cetro para um certo Arnold Schwarzenegger), ele é carismático o suficiente para, por exemplo, não ser engolido por atores mais talentosos e experientes em cena, como Christopher Lee. E, claro, tem um "phisique du role" perfeito. Vendo um homem com aquela envergadura, você quase acredita que ele pode entrar inferno adentro e tirar a sua amada de lá no tapa.

O já mencionado Christopher Lee dá uma performance sincera e emocionada como Lyco, o rei que faz um pacto com o Inferno, oferecendo o sangue de Dejanira, mulher de Hércules, em troca de vida eterna (algo que, se consumado, criaria uma origem pré-cristã ao vampirismo). Seria fácil partir para a caricatura e transformar um personagem destes em um vilão de desenho animado, com caras e bocas, mas Lee, o eterno conde Drácula, consegue entregar um personagem mais complexo e variado do que o próprio roteiro pedia.

O roteiro de Alessando Continenza tinha limitações óbvias, mas pelo menos serviu de desafio para Bava criar cenas fantasmagóricas. O peplum como gênero já havia tentado misturar horror ao gênero fantástico, mas nunca com tanta ênfase e força como aqui. Logo no início, há uma citação visual a Nosferatu e A Máscara do Demônio, quando uma pitonisa levanta do túmulo para uma consulta a Lee. Alguns efeitos envelheceram, claro (como a cena clássica do gênero, em que Hércules levanta uma pedra de isopor para jogar em seus desafetos), mas eles sempre são imaginativos e divertidos. E criados mais de uma geração antes da invenção do CGI. Logo, bem "orgânicos", vivos.

Mas o que chama atenção mesmo é o belíssimo trabalho de direção de fotografia, do próprio Bava. Através de A Máscara do Demônio já se sabia que ele era um mestre da fotografia em preto e branco, mas nada havia preparado o mundo para o que ele faz aqui. Trata-se de uma festa de cores saturadas, tons de verde e azul estourados, composições que parecem ter sido pensadas como quadros. Isso não era tão evidente nas fitas de vídeo que circularam desde os anos 80, tiradas da versão americana, derivada de cópias em 16mm (que conseguia a façanha de transformar um roteiro já meio desconjuntado num legítimo samba do crioulo doido, com um prólogo inintelegível e cortes em algumas cenas importantes de diálogo). O DVD americano da Fantoma (de cujo master provavelmente se origina o disquinho brasileiro) resgata as pigmentações do "3-stripe Technicolor" pensadas por Bava. Este tipo de película foi descartado com o tempo, por não ser muito realista, mas é perfeito para a criação de imagens surreais e oníricas, como as presentes neste filme. Tim Lucas (que finalmente vai lançar sua biografia de Mario Bava, que está sendo escrita há 25 anos) destaca que quando estas composições serviram de inspiração para os filmes da AIP, feitos na segunda metade dos anos 60, dirigidos por Daniel Haller e inspirados por Lovecraft (Morte para um Monstro e Horror de Dunwich), eles foram chamados de "psicodélicos". Bom, aparentemente Bava já havia feito a pesquisa com substâncias alucinógenas quase uma década antes.

Um pequeno adendo sobre o disquinho brasileiro: ele utiliza os mesmos elementos do já referido DVD americano da Fantoma, com um pequeno "detalhe" que atrapalha – ele só manteve a trilha em inglês, deixando de lado a em italiano. Isso deixa o filme menor, pois a dublagem reduz a complexidade da história. E como não é Christopher Lee que dubla sua voz (outro "voice actor" faz o trabalho), não há ganho significativo. Uma pena que a distribuidora nacional resolveu economizar justo num "detalhe" tão importante.

Resumo da ópera: quem quiser saber o porquê do crescimento da reputação de Mario Bava com o DVD deve ir atrás desta pequena obra-prima. Talvez ache o filme bobo, talvez ache tudo meio ingênuo, mas vai ter uma idéia do que o diretor era capaz, e ver várias cenas notáveis. Não será dinheiro perdido.

Carlos Thomaz Albornoz