Fim de Verão

Enquanto o patriarca da família Kohayagawa (Ganjiro Nakamura) revive uma antiga paixão, ele tenta casar sua segunda filha, Noriko (Yoko Tsukasa), bem como sua nora, Akiko (Setsuko Hara). Penúltimo filme de Yasujiro Ozu, Fim de Verão (1961), como as demais obras da fase final de seu cinema, concentra-se no que o cineasta Kiju Yoshida, no livro O Anticinema de Yasujiro Ozu, chama de "ironia da morte": a derrocada da família tradicional japonesa e do próprio indivíduo, quando confrontados a uma realidade caótica e em constante transformação, na qual a única certeza – a existência da morte – não passa de um mistério insondável, ao mesmo tempo banal e cósmico.

O cinema de Ozu se funda sobre duas percepções: a primeira, de que o mundo é puro caos, de maneira que os fotogramas que o representam são igualmente caóticos e sem sentidos; a segunda, de que o cinema se constitui em um engodo, uma que, através de recursos dramáticos e narrativos, impõe ordem ao caos que pretende representar. Assim, Ozu, em suas histórias que retratam a vida familiar da classe média japonesa (gênero conhecido como shomin-gueki), rejeita a intriga, a dramatização das emoções, os personagens e acontecimentos extraordinários, a fim de apresentar a vida pelo que ela tem de ordinário, banal, cotidiano e repetitivo.

De fato, repetições e remakes incessantes estão no cerne da obra de Ozu. Em Fim de Verão, por exemplo, a situação do pai que deseja que a filha e a nora se casem retoma tema já visto em Pai e Filha (1949), Também Fomos Felizes (1951), Era Uma Vez em Tóquio (1953) – não por acaso, Setsuko Hara interpreta em todos o mesmo papel – e que reaparecerá no último filme do cineasta, A Rotina Tem Seu Encanto (1962). Ozu, por acreditar que o homem é incapaz de compreender o presente, já que nele vive, só pode entende-lo quando este se torna passado, ou seja, através da dessincronia. De sorte que as repetições, na verdade, representam a possibilidade de se viver com as incertezas da realidade, de resistir ao caos do mundo.

No entanto, se as repetições significam o estabelecimento de um mínimo de ordem para a sobrevivência da família, paradoxalmente também apontam para sua dissolução, visto que permite a cada um de seus integrantes assumir o papel que lhe cabe. Para Ozu, a verdadeira família não possui consciência de si, ou seja, o cotidiano em que existe é tão repetitivo e banal que passa despercebido. Mas, ao mesmo tempo, em virtude desta repetição, os membros da família se conscientizam dos papéis a que precisam se adequar: o pai deve se comportar como pai, o filho como filho, gerando tensão que inexistia e que, como conseqüência, leva à destruição do ambiente familiar. Em Fim de Verão, as constantes "escapadas" do patriarca em direção à casa da amante (e, neste ponto, Ozu cria um personagem incomum ao seu cinema, por não agir de forma ordinária e banal), bem como as reuniões familiares para relembrar a morte da mãe, fazem Fumiko (Michiyo Aratama) cobrar o comportamento adequado ao pai, o que se relaciona aos infartos que matam o patriarca.

Ocorre que, em Ozu, as repetições são indissociáveis das defasagens. Uma repetição, por mais que se tente, jamais é idêntica a outra: há sempre falhas e variações imperceptíveis pois, entre as repetições, interpõe-se o Tempo. Assim, no cinema de Ozu, o tempo existe ou enquanto pura forma, isto é, enquanto passado ontológico que representa a coexistência de todos os níveis de duração, ou como pura ação, ou seja, como presente que se transforma sem cessar, inevitavelmente. De modo que, quando Ozu intercala a ação com seus característicos planos contemplativos – pillow-shots (Burch), naturezas-mortas (Deleuze) ou stases (Schrader) –, não há descrição de ambiente, mas sim uma imagem direta do Tempo: na duração de tais planos, mostra-se aquilo que permanece, através da sucessão dos estados mutáveis que preenchem o Tempo. Planos objetivos e impessoais (pois não se conectam aos olhares nem dos personagens, nem dos espectadores), eles observam a efemeridade da vida humana que caminha para a morte: em Fim de Verão, as misteriosas tampas dos tonéis de saquê presenciam com seus olhos de objeto tanto a transformação do Japão tradicional para o moderno – a pequena destilaria do patriarca que se funde às grandes empresas, a presença da cultura e dos produtos americanos no país – quanto o fim da vida familiar tradicional (o patriarca que possui duas famílias, a filha e a nora que recusam o casamento).

Ao final de Fim de Verão, a imensa chaminé – que repete a cena do pequeno incenso que queima ao pé o patriarca morto – é mais uma imagem impessoal com a qual Ozu mostra o Tempo, que acompanha silenciosamente a passagem humana sobre a Terra, bem como o ciclo da vida que a caracteriza, através do nascimento, da morte e do renascimento perpétuo. A vida em si como uma série de repetições, que conduzem à última defasagem: a morte, que, no entanto, não se repete. Dessa forma, Ozu ressalta a banalidade da morte (e da vida), pois ela faz parte do processo contínuo da natureza, mas, ao mesmo tempo, indica seu intenso mistério, uma vez que permanece incognoscível para o homem.

Mergulhados no caos, os personagens de Fim de Verão, com suas vidas ínfimas frente a eternidade do Tempo, rumam para o destino final indecifrável. É a ironia da morte que, se mostra a natureza efêmera do homem, também afirma a crença de Ozu na incomensurável beleza dos momentos breves e banais que, plenos de novas possibilidades, são capazes de transformar o sentido da vida. Assim, enquanto os urubus (a morte) espreitam, a família atravessa, no cortejo fúnebre do patriarca, a ponte sobre o rio (a realidade caótica) na qual Akiko e Noriko decidem não se casar: ambíguo, o futuro de ambas é pura potencialidade.

Paulo Ricardo de Almeida