Por dentro e por fora de uma gota d'água

Confundir o local das coisas: reside aí uma postura artística das mais interessantes. O fazê-lo envolve métodos distintos, como o comprovam os filmes Por Dentro de uma Gota d’Água, de Felipe Bragança e Marina Meliande, e Nada a Declarar, de Gustavo Acioli. Filmes distintos não somente pelo que tematizam, mas principalmente pelas suas concepções de base. O primeiro se fixa numa imagem construída e elaborada, imagem cuidadosa nos seus procedimentos fotográficos e de cena, enquanto o segundo se fixa numa imagem "acidental" e despreocupada, imagem desencenada e desenquadrada, anti-imagem por excelência.

Por Dentro de uma Gota d’Água responde a um princípio de visualidade e opacidade. O filme nasce de um "desejo de visualizar" evidente, de uma vontade de formas que não se pauta num compromisso com a realidade pré-dada. Não é, a princípio, a captura de uma imagem, mas sua criação – ou o acréscimo que a representação pode levar à coisa representada. Mas há um plano de Por Dentro de uma Gota d’Água em que um confronto se estabelece. No canto esquerdo do quadro, uma TV, única janela aberta da casa, mostra cenas de violência, situação extrema no que se pode reconhecer como exemplo extremo de reportagem televisiva, ou seja, daquilo que se diz estreitamente compromissado com a realidade (deixemos entrementes as reflexões que tendem a concluir que, mesmo numa transmissão ao vivo e a cores, a simples mediação pela câmera efetua uma transferência do real ao imaginário). O restante do enquadramento é preenchido por baldes espalhados no chão e situados estrategicamente embaixo de goteiras ininterruptas. Dois fluxos, portanto, dividem a tela. Ou melhor, se fundem na tela. Dentro da imagem-filme, construída para a câmera e projetada numa superfície, está a imagem da TV, construída com a câmera, imagem-registro acondicionada a uma interface. (Pensar que as imagens de violência passadas na televisão representam um gesto político do filme de Bragança/Meliande seria cometer o mesmo erro cometido por aqueles que encararam a inclusão da TV ligada que mostra um vietnamita se queimando em Persona como o manifesto anti-guerra de Bergman – isso equivaleria a negligenciar sua utilização como componente primordialmente estrutural.)

Antes de escolher um dos caminhos apontados por Bazin num texto, do início dos anos 50, no qual dividiu os cineastas entre os que crêem na imagem e os que crêem na realidade (o texto é pós-Rossellini, mas pré-Godard), Por Dentro de uma Gota d’Água repousa sobre a problematização dessa dicotomia. O trabalho de som, excelente, incrementa a confusão: além da sonorização (por si só criativa) do conteúdo da imagem, há todo o barulho que vem de fora e que nos devolve ao mundo (não só um extra-campo, mas um extra-cosmo). Seu único personagem, alojado num aquário de signos onde tudo é exterioridade, habita a imagem na justa medida em que é habitado por ela. Imperscrutável no seu estado de pura aparência – suas pequenas ações derivam exatamente do quê? seu contato com o mundo externo se dá sempre através de um mediador (a TV, o cartão de crédito) por quê? –, o personagem de Emanuel Cavalcanti atravessa o filme sem revelar um antes e um depois. Ele é formado em simultaneidade à imagem; só existe na e pela imagem – imagem pensada, modulada (e não apenas moldada) –, existência circular que remete a um imaginário com poderes fundadores inauditos (dimensão borgesiana do filme). As cartelas com trechos poéticos (a palavra, elemento intruso nesse reduto de visualidade), muito antes de elucidarem um estado de alma, reforçam a idéia de opacidade (ou impossibilidade de transparência que seja). À existência estática de seu personagem, o filme opõe um gotejar permanente, uma dinâmica operada por imagens reiterativas, semi-isomorfas – aliterações visuais.

Nada a Declarar, por seu turno, é um filme que traça o itinerário oposto. O princípio a que atende não é mais de visualidade, tampouco de opacidade, mas sim de oralidade e transparência (talvez escancaramento caiba melhor). Um "filme de militância", como afirmou Acioli na sessão de estréia. Nada a Declarar, como já indica o título, nasce de uma recusa – dos rumos recentemente tomados pelo meio artístico brasileiro, dos clichês da intelectualidade, das temáticas pseudo-engajadas que se acavalam no cinema pós-retomada, da bela imagem, da fotografia "correta", do roteiro engenhoso, do diálogo (dentro e fora do filme). A recusa é de tal maneira incorporada à estrutura do filme que acaba se traduzindo como recusa à própria mise-en-scène: o filme, que faz opções estéticas tão radicais quanto coerentes, é composto de basicamente um só enquadramento, plano duro em cima do ator. Sua primeira imagem é um close de Bruce Gomlevsky, que tão logo aparece já começa a desferir, histriônico e cínico, seu discurso de recusa. Os contra-planos da entrevistadora – pois se trata de uma entrevista – são menos a adesão a uma forma convencional (o campo/contra-campo) do que uma espécie de hesitação narrativa, de vacilo frente ao que seria um ato de mise-en-scène extremista (um monólogo/manifesto em close-up).

Provocação mor do filme, a cena do menininho pobre que o personagem de Bruce diz ter botado na lei de incentivo é certamente uma das tiradas do ano no cinema brasileiro. O filme tem mesmo um tom provocador, não raro debochado – e idiossincrático porque assim deve ser. Nada a Declarar, terceiro curta-metragem de Acioli, salienta o valor expressivo da fala. A oralidade se antepõe ao elemento visual. A constante auto-narração do personagem de Bruce parece querer eliminar da sua frente qualquer material opaco e instaurar um vaso comunicante direto com o espectador (ou seria o contrário, e quanto mais ele se apresenta, quanto mais fala de si e do mundo mais se torna distante e indefinível?).

Apuradas as diferenças, resta sublinhar o que os dois filmes têm em comum: uma unidade de pensamento que atravessa o conceito e a plástica e uma vontade de cinema que é absolutamente irredutível – seja à metáfora, no caso de Por Dentro de uma Gota d’Água, seja ao silêncio, no caso de Nada a Declarar.

Luiz Carlos Oliveira Jr.