Breve e incompleto
panorama da safra 2003

1. A premiação. Comecemos pelo fim, mas este é apenas um dos poucos começos possíveis para quem não acompanhou a seleção de curtas nacionais da Mostra Curta Cinema de 2003 como devia. Mais desculpas além. Após a cerimônia de encerramento, foram exibidos quatro filmes, premiados por júri da ABD. O primeiro, A Mãe e o Filho da Mãe, de Luís Antonio Pilar, mostra um tanto desajeitadamente a relação de um filho já passado dos 30 com sua mãe idosa, com quem mora sob o mesmo teto. Despido de maiores pretensões e quase naïf na composição e na frontalidade dos enquadramentos, a premiação do filme deve ter sido devida mais a um ato político (a louvável série EnQuadros Negros, filmes realizados por e sobre negros) do que aos méritos artísticos ou estilísticos do filme. Em seguida, duas menções honrosas: Transubstancial, de Torquato Joel, e L'Amar, de Sandra Alves. O primeiro, filme-poesia realizado a partir da obra do poeta Augusto dos Anjos, multiplica as possibilidades de apropriação audio-visual do mundo da poesia em imagens incontestavelmente belas, mas carece de uma observação mais íntima e densa acerca da poética do autor escolhido (o lado "sujeira" de Augusto dos Anjos é pouco ou nada abordado, fazendo do filme mais um exercício de estilo). Em L'Amar, a diretora busca elaborar em torno de uma situação-limite, a saber, duas meninas à deriva em uma prancha de windsurf por três dias seguidos, na ausência de vento para levá-las a qualquer parte. A questão do cuidado para com o próximo e da luta contra a morte é tocada, mas não há nada particularmente especial na maneira como a câmera narra a história que faça com que nos sintamos especialmente próximos do que estamos vendo; permanecemos do lado de fora. Em Carregar uma Criança, filme de Bruno Carneiro e grande vencedor da noite, três histórias paralelas se entrelaçam em torno do cuidado com a família e de como o excesso pode conduzir à tragédia. Fábula moralizante, o filme é no máximo engenhoso na forma de construir a tensão dramática, mas cai tanto presa de um esquematismo lógico que perpassa os personagens quanto da implausibilidade de certas situações – os monólogos do caminhoneiro só estão lá para que possamos entender seu drama. No final todos se salvam, mas o perigo persiste graças a uma frustração de expectativa criada pelo filme – uma boneca que cai na lama. Temeroso acreditar que aquele painel de quatro filmes constituía o melhor da produção realizada em 2004.

2. Do julgamento e da confissão. Mesmo que a seleção tenha sido menos interessante do que a dos últimos anos – nos textos dos dois últimos anos, havia cinco filmes a defender incondicionalmente –, o conjunto de filmes exibido pela 13ª Curta Cinema teve belos momentos e alguns filmes bem mais interessantes do que a premiação poderia prever. Contudo, resta um mea culpa a fazer: não consegui assistir a algumas das sessões de filmes, e acabei deixando de ver alguns filmes que poderiam pesar bastante no meu julgamento. Entre esses, Uma Estrela Pra Ioiô de Bruno Safadi, Imensidade de Amilcar Claro, além da sessão Petrobras Digital e dos Programas Especiais Ecos, Raça FIlmes, EnQuadros Negros, Teia e os dois programas Documentários Nacionais. Aqui, ofereço minhas desculpas aos realizadores omitidos.

3. Personagens. Dois personagens primeiro.Dois documentários familiares, ou antes "filmes de família". Dois senhores portadores da tradição e da memória que revelam e transmitem seu legado aos familiares/diretores, Rua da Escadinha 162 e Bolinhos impressionam acima de tudo pela força de seus personagens. O do primeiro filme é Christiano Câmara, pesquisador e historiador de música popular que defende com veemência a cultura popular dos anos 20-30 e ataca com a mesma força e eloqüência certa produção cultural sofisticada ou feita para a classe média e não para o povo – Tom Jobim ou o Cinema Novo, as palavras são dele. Rua da Escadinha 162 se constrói a partir da fascinação do diretor por aquilo que esse senhor fala e pelo carinho que ele tem com sua coleção. Se o filme consegue nos aproximar da luta por manter a memória da cultura popular viva, ao mesmo tempo ele nos distancia por compor através do personagem mais uma bandeira (resgatar a cultura e a memória) do que uma pessoa. Bolinhos vai na intenção contrária: filme a princípio despretensioso em seu simples registro de uma avó passando uma receita de bolo de galinha judeu para sua neta/cineasta, o filme cativa pelo cuidado e pela doçura com que a câmera capta e constrói o carinho familiar e a transmissão dos costumes – intercalados à preparação dos bolinhos, vemos em paralelo uma massagem das costas e um depoimento da avó sobre seu passado. Bolinhos pode ser facilmente descartado como "filme de família" interessante apenas para os próprios familiares, mas há nele tanta preocupação (emocional, temática e narrativa) que saímos da sessão imaginando que diversos curta-metragistas deveriam por um momento desviar sua atenção de temas mais "nobres" e filmar seus familiares. Afinal, quantos filmes "de ficção", "sérios" e ambiciosos são importantes somente a seus realizadores? Bolinhos fala, mesmo de forma estranha, a cada um de nós.

4. O que é encenar? Uma das principais características que fazem do cinema uma arte é a aproximação da câmera com aquilo que é filmado, ou seja, o ponto-de-vista. Filmes impessoais são aqueles que apresentam não distanciamento do que filmam, mas aqueles para os quais a relação entre câmera e objeto filmado é indiferente. Não haverá na seleção filme mais impessoal do que Rua da Amargura, de Rafael Conde. Tomando como ponto de partida um instigante relato do escritor Luís Villela, o filme não consegue aprofundar dramática ou visualmente nada além do que está nas falas dos personagens. Acrescente a isso um péssimo transfer que deixa a imagem bastante desagradável e uma atuação pouco convincente do ator principal (Yara de Novaes, no entanto, está excelente), e esse história sobre ambição acima do respeito com os familiares mortos se transforma somente num rascunho do que poderia ser um bom filme. Jonas, de Allan Sieber, também apresenta um problema de ponto de vista. Primeiro projeto com atores de um diretor de filmes de animação, o filme convence bastante quando nos deixa a sós com o personagem principal e sua fascinação sexual pela foto de maiô de uma avó morta, mas cai presa de uma impessoalidade profunda (e um tanto de preguiça narrativa) quando filma a invasão da casa por um homem que ameaça e agride o menino. Bala Perdida, de Victor Lopes, é incrivelmente bem amarrado em suas muitas narrativas paralelas, mas a virtuosidade da montagem e da realização de certa forma obscurecem a veemência do tema do filme – a violência aleatória da cidade grande e o eterno risco de não estar vivo no minuto seguinte. Super-encenar no que diz respeito à realização às vezes pode transformar-se em sub-encenar no que diz respeito à dramaticidade. Super-encenar também é o pecado de A Lata, de Leopoldo Nunes. Honesto filme sobre a vida de um catador de latas – forte apenas na seqüência final no parque –, o A Lata apela para a poesia fácil (latas de cerveja e refrigerante trocadas por latas de leite em pó para alimentar os filhos) e para uma fotografia em preto e branco que mais nos distancia (porque "embeleza") do que aproxima do personagem do catador. Parece que a imagem em p&b quer dignificar aquilo que por si só já deveria ser considerado digno (ter subemprego com o lixo). Poesia de menos às vezes pode se mostrar como sendo a mais verdadeira poesia.

5. Outros Retratos. O Programa Personalidades exibiu três filmes sobre pessoas de cinema. Três filmes bastantes distintos, tanto no percurso de seus realizadores quanto na aproximação com seus retratados. Cinema Pagador, de Isabel Ribeiro e Henrique Pires, é um documentário de linguagem oficial sobre Anselmo Duarte, e embora não tenha nenhuma característica formal que possa diferenciá-lo como cinema, o filme faz um registro audio-visual importante da figura um tanto esquecida de Duarte, assim como de um bocado de suas idéias acerca do mundo do cinema (idéias pra lá de repisadas para quem acompanhou sua trajetória ou leu seu livro Adeus, Cinema, mas ainda assim importantes de serem capturadas em cinema). Mojica, de Ricardo Miranda, é um instigante experimento em torno da figura de José Mojica Marins e em torno da construção cênica com espelhos e materiais encontráveis em qualquer sala de estar. A um grande momento em que Mojica fala excitadamente e de improviso (sobre sua filosofia, sobre cinema), segue-se um não tão interessante momento em que o retratado lê, um tanto para dentro e desprovido de emoção, um relato de terror acompanhado de uma cítara. Abry, de Joel Pizzini, constrói-se a partir de fragmentos da vida de Lúcia Rocha, mãe de Glauber e Anecy, e mulher por trás da manutenção da memória do filho cineasta com o Tempo Glauber. A propósito de uma operação delicada, o filme faz uma espécie de acompanhamento da convalescença de Dona Lúcia ao mesmo tempo que aborda sentimentalmente o mundo ficcional de sua retratada, amalgamando a convivência com seus netos, os poemas que fazia quando menina, sua vida à frente do Tempo Glauber e suas memórias num fluxo visual e narrativo ao mesmo tempo delirante (por fundir sujeito e objeto, ficção e documento) e belo (pelo incrível talento do cineasta). Um dos momentos mais fortes do cinema brasileiro em 2003.

6. Em História da Eternidade, de Camilo Cavalcante, também há momentos fortes. Construído a partir de ícones de violenta força visual que se sucedem e/ou aparecem simultaneamente na tela, entrando numa sala de cinema e depois saindo dela, o filme é uma tentativa de totalização da vida e da história através de 15 minutos. Naturalmente, essa definição mostra o vigor e a fraqueza do projeto. Mesmo impactante do ponto de vista visual e da "montagem" dos ícones, o virtuosismo parece aqui assumir um valor mais ostentatório do que narrativo, ao contrário de seus outros filmes (Ocaso, O Velho, o Mar e o Lago), o fluxo da história parecendo servir mais como desculpa do que como argumento. Outro filme também bastante ambicioso formalmente, mas dessa vez bastante simples na realização, é Brasiliapé, realização coletiva da companhia brasiliense RC Ballerini. Tomando como princípio estruturante três personagens caminhando a esmo pelas vias largas da cidade de Brasília, o filme é um experimento sobre a arquitetura da cidade e uma observação sobre como o planejamento urbano convive com a experiência de andar a pé numa cidade em que a locomoção é privilégio dos veículos automotivos. Absurdamente simples nos meios de produção – a montagem foi feita na própria câmera, ligando e desligando – e bastante construído conceitualmente, Brasiliapé mais do que comprova a força da criatividade sobre o "bem encenado e caro" da uma parte da produção de curta-metragens nacionais.

7. Sobre poesia e enunciação. Os filmes mais felizes em transpor universos de enunciação poética para a tela construindo uma linguagem própria a partir dos textos de base foram Sonetos, de Eduardo Baggio e Carlos Rocha, Dá-Dos, de Pedro Palhares Fernandes, e Procurando Falatório, de Luciana Tanure. Curiosamente, os três são apropriações de experiências poéticas do século XX que questionam o estatuto da palavra consciente escrita e expandem o sentido de poesia e construção estética para além de suas fronteiras costumeiras. Sonetos constrói um filme pequeno e coeso em torno de alguns sonetos visuais do poeta Avelino de Araújo. Aproveitando-se da ordem 4/4/3/3 dos versos do soneto, o poeta compunha sonetos apenas com linhas de arame farpado ou dentes de garfo. A estrutura da encenação do filme é tão sucinta quanto: plano geral nas catorze linhas, depois planos fechados em cada estrofe. Tempo de plano e relação geral/particular constróem um tecido semântico tão forte quanto os dos poemas visualizados. Dá-Dos é uma aproximação dos universos poéticos de artistas dadaístas como Kurt Schwitters e Tristan Tzara através de montagens bruscas, da idéia mallarmeana de acaso ("um lance de dados jamais abolirá...") e da utilização de found footage. Consegue um resultado dissociativo com uma violência formal impressionante dentro de suas propostas. Procurando Falatório se inscreve num universo menos "culto" do que esses dois outros registros: a partir da "fala poética" da esquizofrênica Stela do Patrocínio (coligida pela poetisa Viviane Mosé), o filme organiza-se em torno de internos da Casa Juliano Moreira e do contato deles com o discurso poético da artista. Fragmentado e íntimo, doce e evocativo, Procurando Falatório é um filme intencionalmente "solto" como o discurso da artista que tem por base, e uma experiência para lá de rica de composição coletiva (é fruto do Prêmio Sal Grosso, projeto de filme cuja equipe técnica é escolhida a partir de prêmios dados aos melhores trabalhos do Festival Brasileiro de Cinema Universitário).

8. Terror. Amor Só de Mãe, de Dennison Ramalho, é uma adaptação livre da letra da canção "Coração Materno", de Vicente Celestino. Nela, um campônio mata sua mãe e retira-lhe o coração para satisfazer um gracejo da amada. Aqui, Ramalho adapta a história inserindo nela toques de quimbanda. Apesar das excelentes atuações e do nível impecável da produção, o filme entrega tudo muito fácil em sua ânsia de tudo mostrar e de criar imagens de impacto. Até cria, mas sob uma aura mais provocativa do que envenenadamente estética. Pensamos por vezes ou na sujeira (aqui ausente) do gore ou na evocativa candura do não-mostrar típica de Jacques Tourneur. Em contrapartida, tourneuriano até a medula é o excelente A Menina do Algodão, de Kléber Mendonça Filho e Daniel Bandeira. Tomando como ponto de partida a lenda urbana da menina do algodão (ou loira do banheiro, no Rio de Janeiro), um fantasma que aparece nos banheiros de locais públicos, o filme é ao mesmo tempo um metadocumentário e um filme de terror, conseguindo ser feliz nos dois registros. Explorando a geografia deserta de uma escola pública à noite e, em particular, o espaço do banheiro dessa instituição, o filme faz do espaço vazio o possível local em que o medo pode aparecer. E aparece: o recurso da câmera lenta e uma simples perna de criança aparecendo no canto da tela é suficiente para provocar pulos na cadeira. A cena final do filme, do personagem abaixando a sendo engolido pelo fundo preto e pelo som, fica como a imagem mais pregnante e bem realizada de toda a seleção nacional.

(filmes importantes, como Por Dentro de uma Gota d'Agua e Nada a Declarar, não foram comentados porque há um texto específico sobre os dois na mesma edição)

E até 2004.

Ruy Gardnier