Apre(e)ndendo Rossellini

Eu poderia ter feito Roma Cidade Aberta como propaganda,
contra tudo. Eu tentei não faze-lo. Eu tentei explorar
e compreender, porque eu tinha a sensação que nós
éramos todos responsáveis pelo que aconteceu,
todos nós. Então, como resolver este problema?
Roberto Rossellini1

A oportunidade de conferir uma retrospectiva da obra de Roberto Rossellini, em particular uma tão completa como nós paulistanos tivemos a oportunidade de ver, nos coloca diante de uma série de questões e dúvidas, e da necessidade de procurar compreender aquela imensidão toda. Esforço rosselliniano, que foi pouquíssimo exercido de fato. Afinal, fomos todos apresentados a uma série de verdades feitas que supostamente nos poupariam este esforço – sobre seu catolicismo, sobre neo-realismo, etc. –, que mais atrapalham do que nos ajudam. Apenas três filmes do cineasta (O Navio Branco, Roma, Cidade Aberta e De Crápula a Herói – não por acidente todos filmes sobre a guerra) deram qualquer lucro, e não muitos mais foram recebidos positivamente. A maior parte da sua obra ou permaneceu obscura ou passou deste estado para a designação de clássicos, sem que entretanto se tenha realizado o menor esforço em compreendê-la. Não surpreende, observando este estado, que o amontoado de besteiras ditas a respeito destes filmes siga crescendo.

A Segunda Guerra como ponto de virada para a cultura ocidental é uma noção já bastante explorada por diversos teóricos (Serge Daney escreveu muito sobre isso, para não sairmos do cinema), mas em poucos casos a guerra seria tão central quanto em Rossellini. Ela estaria de alguma forma presente em tudo que ele faria depois da libertação italiana. A começar por Roma, Cidade Aberta. Há algo em Roma que dentro do entusiasmo sobre o seu realismo ate hoje passa um tanto batido, que estamos diante de um filme de época, de uma reconstrução histórica, mesmo que de uma Historia contemporânea, que ocorreu cerca de um ano antes. Roma, Cidade Aberta não é um dos melhores filmes do cineasta – em parte devido a uma certa imaturidade, e principalmente, a interferência pesada de seu roterista habitual Sergio Amadei, que aqui pode ser visto como co-autor do filme –, mas foi ele que estabeleceu o mito Rossellini com o qual vivemos até hoje (e não ajuda nada que aquilo que foi mais elogiado e repetido a exaustão seja o lado Amadei do filme).

Mesmo assim vale dizer que Roma, Cidade Aberta tem muito a nos dizer sobre o cineasta a começar por ser trata de um filme histórico. Todo filme de Rossellini é um filme histórico, mesmo Viagem a Itália. Só que Historia para Rossellini é outra, que difere completamente da Historia como nos geralmente a pensamos. Porque para Rossellini não interessa os fatos, os contextos sócio-políticos, etc. A Historia de Roberto Rossellini é impressionista, uma apreensão bastante particular do universo por ele abordado. Pouco interessa a Rossellini se a Berlim de Alemanha Ano Zero seja ou não um espelho preciso da Berlim do pós-guerra que ele teve a oportunidade de conhecer, mas que ela reflita as sensações do diretor quando encontrou esta Berlim. Da mesma forma neo-realismo de Rossellini pouco tem a ver com uma tentativa de documentar a realidade, mas a criação cuidadosa de um mundo ficcional que proporcione uma reflexão sobre a realidade.

A Historia de Rossellini portanto acabara sendo sempre autobiográfica (o que a empatia do cineasta ampliara, já que o levara a se por na posição dos seus heróis mesmo que para critica-los). Para ficarmos em Alemanha Ano Zero, pode-se dizer que o filme é inseparável do fato de que o filho mais velho do diretor falecera cerca de um ano antes do inicio das filmagens, isto porque Rossellini ainda estava abatido com a morte quando reencontrou Berlim.

Esta Historia será sempre assombrada pela guerra; o momento de transformação/afirmação, após o qual a relação do cineasta com o mundo, o método pelo qual chegar a ele não poderá mais ser o mesmo. É preciso buscar uma nova linguagem, um novo meio para explorar e compreender, tirar sentido daquilo. Daí Rossellini muito antes dos seus filmes para TV já ter assumido a posição de pedagogo, o professor disposto a buscar sentido na Historia. Há uma grande humildade na forma como o cineasta desenvolve sua pedagogia particular. Serge Daney é preciso quando afirma, ao discutir as diferenças entre cinema clássico e moderno, que se antes tínhamos as certezas da enciclopédia Eisenstein, teríamos agora que nos virar agora com as duvidas de Rossellini. Ou seja, o cinema onde o que importa é a verdade por trás da imagem da lugar aquele onde o central é a verdade que se revela na imagem. Daí o porque de muitos acreditarem que o realismo de Rossellini seja documental, porque a Historia que ele aborda será sempre uma Historia concreta e sólida, os mundos que ele desenvolvera (especialmente na primeira metade da sua carreira) pedem por uma palpabilidade que acaba gerando esta falsa sensação de documentário – vale dizer aqui que os filmes finais irão se afundar cada vez mais na impressão do mundo culminando em Descartes, onde Holanda ou Franca se apresentaram a nos como os mesmos interiores intercambiáveis.

Daí a humildade de Rossellini. A sua pedagogia (como a dos filmes-aula de Godard) começa pela afirmação da sua própria ignorância. Ele também precisa apre(e)nder. Seus mergulhos nas transformações da Historia seja contemporânea, seja a dos tempos de Cristo ou formação da Itália será dado junto com nos. Rossellini é um curioso, seco por conhecimento, um antropólogo que se interessa por tudo. Não é à toa que será um cinema sempre da duvida e nunca das respostas. A Historia será sempre a da alternância entre escravidão e liberdade e o movimento como isto se da, a grande questão a ser apreendida. Nos seus finais, o herói encontrara freqüentemente a iluminação que lhe permite tomar uma atitude, mas ao diretor não interessa apontar o caminho e a resposta para seus problemas. Interessa-lhe o processo de auto-indagação, de reavaliação da sua relação com o mundo, do questionamento da realidade a sua volta, mas o que fazer com estas conclusões, isto Rossellini deixara sempre para o espectador.

Daí muita da resistência que estes filmes enfrentaram na época (e continuam enfrentando hoje apesar da ossificação dos filmes silenciar as reclamações), "ele não aponta soluções" ou "as atitudes das personagens seguem inexplicáveis" eram reclamações tão freqüentes quanto o mais tradicional "ele não sabe contar uma historia". Agora, se realmente partirmos para um dialogo com estes filmes, perceberemos que os milagres no final de Stromboli e Viagem à Itália, por exemplo, só acrescentam novos problemas aos filmes, ou seguindo com os filmes protagonizados por Ingrid Bergman, que a santificação da protagonista de Europa 51’ a explica tão pouco quanto o diagnostico de louca.

Será preciso por tanto construir uma forma para expressar concretamente estas duvidas. Uma que foi absorvida por muita gente (Kiarostami para ficarmos num herdeiro direto), mas que permanece freqüentemente surpreendendo o espectador justamente porque ainda estamos longe de apreende-la de todo. Retornando a Historia, é importante perceber que para Rossellini, ela sempre se resolvera pelo melodrama e pela representação.

O Cosmo de Médici de Rossellini chega ao poder em A Era dos Médici porque compreende muito bem isso. Os jogos políticos da Florença da Renascença segundo o cineasta são pura encenação, uma representação por onde Cosmo se guia brilhantemente entre a igreja, a burguesia que se forma ou o populacho. Ele sequer se incomoda em ser exilado, pelo contrario transforma a aparente derrota num bem urdido drama do qual sabe que ao final será aclamado popularmente como o príncipe da cidade. A Era dos Médici nos é detalhada com grande cuidado, uma quantidade enorme de informação visual nos é lançada a todo o momento, ao mesmo tempo o filme falha amplamente dentro da cartilha didática habitual, já que a maior parte das informações que ele lança só tem como ser capitadas com atenção por um espectador que já tem um conhecimento mínimo sobre a Florença do período. Isto não importa porque a ascensão de Cosmo de Médici narrada na primeira metade do filme (e razão maior do interesse do diretor nesta parte) é plenamente expressada.

Cosmo transforma a sua própria ascensão numa trama melodramática. Rossellini sempre acreditou no melodrama como forma de chegar na Historia. Para ele quanto mais melodramático se tornassem as situações, maior seriam as chances de se extrair delas algo de honesto. Curioso perceber quer apesar disso A Era dos Médici, Descartes, Viagem a Itália e tantos outros filmes possam ser acusados facilmente (e com certa razão) de serem filmes frios. Porque se os melodramas de Rossellini tocam, eles só o fazem depois que o espectador tomou a decisão de se relacionar com ele (neste sentido o cineasta se aproxima de Brecht, apesar de se distanciar dele em outros pontos).

Este melodrama é visto pelo diretor como forma de buscar a expressão mais honesta dos seus sentimentos em relação ao que estiver sendo encenado. Daí uma certa busca pela intensidade que marcam muitos dos filmes (em especial os realizados na época do seu casamento com Ingrid Bergman), que era alcançado a partir de uma serie de opções. Por exemplo numa crença no conceito por trás do filme (para ele a partir do ponto que se tem uma idéia forte sobre o material, a realização em si se torna só uma decorrência menos importante) e uma desvalorização do roteiro (segundo o seu biografo Tag Gallagher é possível identificar o grau de interesse dele pelos filmes pelo quão infiel eles são aos roteiros). Estas duas posições um tanto opostas dão uma noção da complexidade dos métodos do diretor.

E há toda a questão da atuação em Rossellini. Assim como nos filmes de Cassavetes, não é possível nestes filmes nunca se falar em boa ou ma atuação, porque a rigor não existe distinção entre o trabalho de atuação de ator e a personagem. Para ilustrar isso peguemos uma atuação especifica, a de George Sanders em Viagem a Itália. Para começo de conversa o diretor sabia que Sanders estava em seu filme a contragosto, o colocou num hotel à parte do resto da equipe, se recusou a lhe enviar o roteiro, passava lhe os diálogos na hora das cenas sem nunca lhe dar o contexto da situação, freqüentemente o deixava horas esperando, outras vezes ao vê-lo informava que estava vestido de forma errada (sendo que não lhe tinha dito antes, nem lhe diria na hora, qual seria a forma certa) e o mandava fazer a viagem (cerca de hora) de volta para o hotel. Se Sanders no filme parece a todo o momento incomodado, irritado, sem conseguir se relacionar com a mulher, os coadjuvantes ou os cenários (ou seja os elementos que mais nos lembramos na sua atuação) é porque para ele as filmagens daquele filme foram um inferno onde ele se sentia constantemente perdido. Trata-se de uma atuação toda construída pelo diretor que paradoxalmente é tão honesta quanto possível da parte de Sanders (podemos até dizer que as cenas que envolvem o ator formam um documentário sobre a sua participação nas filmagens do filme Viagem a Itália). Retornando ao que já foi dito, neorealismo segundo Rossellini é o cuidadoso trabalho de construção de um mundo para através dele refletir sobre o nosso.

Parte da força de Roma, Cidade Aberta ou Paisá se dá devido às locações onde a Historia havia ocorrido a um ou dois anos antes. Isto é parte integral do projeto histórico do cineasta, da mesma forma como mais tarde num Ato dos Apóstolos será ignorar que ninguém vive naquelas locações há séculos (o filme foi quase todo rodado buscando os cenários originais). Paisá é uma indagação sobre o que a guerra significou para os italianos, Ato dos Apóstolos sobre o papel da fé na fundação da civilização ocidental e tudo isto passa por aquelas locações no calor do momento ou exatamente opostas a isso (da mesma forma como os cenários teatrais de Joana D’Arc são parte integral do questionamento sobre o que quer dizer filmar Joana D’Arc naquele momento). Daí os espaços de Rossellini serem sempre autênticos mesmo quando teatrais, já que eles sempre expressam o sentimento do cineasta em relação ao que resolveu filmar. Para o cineasta René Descartes era um pensador excessivamente abstrato, daí teremos em Descartes uma sucessão de locações supostamente espalhadas pelo mundo mas que se equivalem, já que a personagem (com a qual o cineasta simpatiza em diversos pontos mas critica radicalmente nisso) nada vê.

Daí também este ser um cinema em constante transformação (mesmo que sempre se mantenha fiel a certos princípios). Haverão, afinal, sempre novos problemas. Daí também ele ter sempre filmado tanto e tão rápido, haviam novas idéias, novas duvidas que precisavam ser representadas. Da mesma forma, ele nunca cansava de encomendar novos tratamentos de roteiro para projetos ainda não realizados, já que o mundo estava em constante transformação, portanto antes de O Messias ser finalmente filmado em 75, haveria um Messias de 48, outro de 51, de 55, assim por diante, todos diferentes já que reflexos de uma percepção de mundo diferentes. Surgia daí também a necessidade de mergulhar em um filme tão anti-rosselliniano como Alma Negra – seu único trabalho lidando diretamente com a Itália dos anos 60 – verdadeiro filme de horror cujo misto de asco e empatia da parte do cineasta é exemplar. Ultima lição da pedagogia rosselliniana: sempre buscar novas formas de apreender o mundo.

Filipe Furtado


1. Tag Gallagher, The Adventures of Roberto Rossellini,
p. 138