O adolescente, este desconhecido

O cinema, de uma forma geral, está acostumado a buscar a estaticidade de um resultado, e não a dinamicidade de um processo (Eisenstein chegou a dizê-lo já em 1929). O cerne da estrutura narrativa fílmica se ancora quase que invariavelmente a uma situação, ou re-situação que seja. Tal construção se aplica bem a narrativas que envolvem personagens adultos, ou mesmo crianças, onde é possível reconhecer estados psicológicos estáveis. Adolescentes, contudo, são corpos e mentes em franco processo de transformação. Reside aí uma das grandes dificuldades de se filmar o adolescente: como respeitar sua opacidade e como lidar com tamanha transitoriedade? No caso do cinema americano, classicamente pautado num universo dramatúrgico fechado e esquematizado, a questão se complica: torna-se difícil manter a dramaturgia clássica em se tratando da adolescência – o risco de representá-la de maneira equivocada (desonesta, até) é enorme. Mas o enredo do filme jovem à moda antiga (rito de passagem, relação entre mestre e discípulo, rebeldia, descoberta de um novo mundo, auto-superação) ainda sobrevive e rende bons frutos – como comprovam, principalmente, duas grandes obras de Gus Van Sant: Gênio Indomável e Encontrando Forrester. O "à moda antiga" da frase anterior se deve ao fato de que a última década assistiu à dissolução da mola mestra dos filmes que marcaram toda uma geração que viveu os anos 80, como será explicado mais adiante.

Um mapeamento de todas as visões do jovem no cinema americano de hoje seria praticamente impossível, além de infrutífero no espaço de um simples artigo. Perfeitamente plausível, no entanto, é a observação de alguns pontos de mutação ou de clivagem, tendo como parâmetro a matriz "clássica" (consideremos que Curtindo a Vida Adoidado é já um clássico). Também não entrará em questão a genealogia do olhar lançado ao jovem pelo cinema americano, embora a empreitada seja bastante atraente – mas obrigaria um retorno a obras como O Selvagem da Motocicleta (1983, dir. Francis Ford Coppola), American Graffiti (1973, dir. George Lucas), Juventude Transviada (1955, dir. Nicholas Ray) e assim vai. Sem falar no reload do besteirol à Porky’s – do que a série American Pie seria o grande representante atual –, outro elemento ausente neste artigo. Assumida a limitação do escopo, resta partir para a análise de três olhares (não necessariamente três cineastas) bastante peculiares e inquestionavelmente imprescindíveis quando o assunto é o adolescente no cinema americano contemporâneo.

Um olhar corrosivo

Profundamente marcado nos anos 80 pelos ritos de passagem, o filme americano sobre adolescência sofreu na década seguinte uma mudança nada discreta ao incorporar pontos de vista até então inéditos enquanto instâncias narrativas. O "esquisitão" da escola, aquele de que todos debocham, até humilham, praticamente não possuía voz narrativa (A Vingança dos Nerds e afins continuavam sendo uma representação "de fora", com o centro narrativo permanecendo exterior). Não havia filme que se desenvolvesse do seu ponto de vista – sua representação era incluída no processo significante global como uma peça sem poderes de transformação, incapaz de emprestar sua subjetividade ao mundo circundante, uma peça abandonada à mera possibilidade de adaptação. Eram personagens geralmente secundários, amigos do protagonista (se o herói de um filme de John Hughes não era, por um lado, o capitão do time de futebol americano, por outro estava longe de ser um cdf atabalhoado). O primeiro filme notadamente irradiado desse ponto de vista até então "reprimido" foi Bem-vindo à Casa de Bonecas, de Todd Solondz. Ali se consagrou a visão de mundo de quem durante toda a infância e pré-adolescência desejou que as pessoas à sua volta explodissem. Num universo onde predominava o enredo romântico do jovem em busca de reconhecimento, de um lugar seguro em meio à turbulência que é a juventude, de confiança, de paixões, em suma, justamente nesse universo em que se poria em jogo uma aventura de transformação entranhou-se o elemento avesso. Fez-se a pergunta: e se o adolescente simplesmente não quiser aceitar esse processo, não se sentir apto a embarcar na jornada transformadora? Afinal de contas, nem todo mundo tira boas notas, tem boa aparência, pratica um esporte com destreza, consegue namorar (ações que mal ou bem terminavam por se encaixar nos tais "filmes de passagem"). Mais do que inverter a lógica de vencedores e vencidos desse universo, Bem-vindo à Casa de Bonecas pressagiou uma série de filmes com tom ácido, ora como se o objetivo fosse simplesmente revelar uma realidade mais cruel e menos romantizada do que os antigos filmes de high-school pressupunham (Eleição, de Alexander Payne, segue esse caminho), ora como se os humilhados da escola finalmente levantassem a voz e mostrassem um mundo filtrado por suas mentes atormentadas (o recalque da impotência se transfigurando no local de onde emana o discurso).

O eixo do filme adolescente, portanto, sofreu um deslocamento. Ou melhor, assimilou uma nova coordenada. Para citar um exemplo recente, dentre tantos outros possíveis, a estética "dogmática" de Aos Treze, dirigido por Catherine Hardwicke, comprova o prosseguimento dessa coordenada pós-90: película granulada, câmera tremida, enquadramento sujo, trabalho de fisionômica acentuado, ações violentas, visão de mundo distorcida – e repleta, do primeiro até o último fotograma, de julgamentos. Toda imagem de Aos Treze é predicativa – existe uma sobrecarga de juízo de valor (moral e estético) no filme, o que gera incômodo à mesma proporção que torna insuficiente o discurso acerca do universo da adolescente em questão (a menina certinha e apagada que decide se tornar popular). Tudo que nos melhores filmes adolescentes dos anos 80 (Picardias Estudantis, Conta Comigo e Curtindo a Vida Adoidado merecendo destaque, por serem obras-primas) fazia parte de uma boa vivência ou de uma boa descoberta (a amizade, o sexo, o enfrentamento dos medos, a exploração de criatividades e aptidões) aparece com uma carga extremamente negativa em Aos Treze. Seu desfecho ultradramático é também ultramoralista; restabelece, para a protagonista, a ordem pré-liberação. Tudo por que ela passou após decidir mudar de estilo foi ruim, e a lição de moral a que foi submetida a fez enxergar essa ruindade. Não é mais o agenciamento do ritual de passagem, mas antes sua impossibilidade. O que o próprio Bem-vindo à Casa de Bonecas havia feito, em última análise, consistira em congelar aquela situação avessa à protagonista do filme, aquele universo sempre hostil e sempre detestável, e sentenciar a não-escapatória a seu modo de funcionamento. Para esta personagem, sempre vista de soslaio pelos filmes de high-school, não existe a tal transformação, a tal auto-superação. No plano final ela olha pela janela do ônibus que a está levando para a Disney – viagem a que acaba aquiescendo, após muito relutar –, cantando a música que todas as outras crianças cantam. Mas ela não endossa o coro, seu canto é melancólico e retraído. O mundo (tanto o adulto quanto o jovem) não passaria a acolhê-la dali em diante – ela que teria de se conformar.

Um olhar frontal

A opção pelas estratégias de choque pode ou não vir amparada por uma intenção de alerta. Filmes como Aos Treze e Kids (Larry Clark), ou mesmo o já antigo Christiane F., claramente apelam para situações extremas como afirmação de que esta é a única forma de chamar a atenção dos adultos para o abandono de seus filhos. O que Aos Treze almeja fazer não é menos do que injetar má consciência nas novas gerações e em seus pais (o que, convenhamos, não é a melhor maneira de iniciar um diálogo, e tampouco leva o poder de reflexão muito longe). Em Kids há uma geração tão inconseqüente quanto – ou, mais ainda, suicida (seu final apocalíptico gira em torno de um ato de suicídio semi-inconsciente – a cena de sexo entre Casper, um "fantasma", e a personagem adormecida de Chlöe Sevigny, que acaba de se descobrir portadora do HIV). À diferença de Aos Treze, entretanto, Kids não mostra o sexo e as drogas sob tamanho peso moral. Os adolescentes de Kids, assim como os de Bully, fazem sexo e usam drogas com total indiferença – a indiferença do pós-orgia, das ações integradas a uma correnteza que as carrega sem destino certo. A época da liberação foi anterior ao próprio nascimento desses jovens, e o curioso é que Larry Clark, que a viveu, agora se resigna com as conseqüências. Para os personagens de Kids não há absolutamente nada além de puro hedonismo 24 horas por dia, mas eles têm de agir como se seus atos fossem libertários. O que Larry Clark tenta mostrar, contudo, é que no máximo eles lutam para não virar estátua, para não frear um fluxo que lhes é, no fundo, extrínseco – por isso seu exame não ultrapassa a epiderme, e seu filme é uma anatomia de superfície. O fato de alguns personagens contraírem aids de maneira tão banal evidencia como Clark vê o desligamento total, por parte dessa geração, com relação aos riscos e às potencialidades do corpo: é a carência de uma ética contemporânea o que ele parece lamentar.

Por mais controversas que sejam suas premissas, o que não se pode negar é que o olhar de Clark é frontal. A câmera escolhe não o local de onde se vê o melhor ângulo do objeto, mas o local de onde se vê o detalhe incomum, a intimidade dos corpos (o suor, os poros, os piercings, os hematomas, os pêlos). Bully deflagra a animalidade de seus personagens, assim como a volubilidade e a não-transparência. Corpos desejáveis e desejantes a todo momento, porém insondáveis enquanto reflexo de um ânimo oscilante. Em Bully é dada uma maior dimensão psicológica aos personagens, a construção não é tão "imediatista" e atmosférica como em Kids. Mas permanece uma indiferença generalizada, uma (des)motivação dúbia, mesmo quando planejam a morte de um dos jovens – ação que, numa narrativa clássica (ou simplesmente anti-camusiana), só poderia derivar de situações motivadas (a luta contra ou a favor do mal). Abordagem anti-maniqueísta da violência, e sem sociologia nem psicologia, tampouco glamour (a cena é demasiadamente cruenta). Antes de formular um enunciado e o inscrever nos corpos dos jovens que filma, Clark quer preservar a vacuidade que lhes é própria. E sua ambição não é pouca: basta ver como o grupo enfocado varia de filme para filme (em Kids, adolescentes de classe média de Nova York; em Bully, jovens ricos ou de classe média alta da Flórida; em Ken Park, skatistas californianos) para constatar que o recorte de Larry Clark não é social, racial, cultural ou geográfico. Seu recorte é "geracional"; seu intuito é fazer o retrato (em formato Polaroid, instantâneo) de uma geração entregue à própria sorte, desorientada.

Um olhar-tato

Desde Garotos de Programa que está claro como Gus Van Sant alimenta um desejo de ultrapassar o limite óptico do dispositivo cinematográfico e instaurar uma câmera-tato, um registro pelo olhar e pelo toque (carinhoso e acolhedor, mas sem ignorar uma dose de fetichismo). Se a conquista dessa nova forma de olhar soa impossível, o alcance sensorial da construção de ambiência em Elefante, contudo, desvela um efeito muito próximo.

Recordemos a parábola budista que inspira o filme: um grupo de cegos, cada um toca uma parte de um elefante e diz saber exatamente como aquele objeto se parece na sua totalidade. As respostas saem equivocadas, nenhum dos pedaços é suficiente para a apreensão global do objeto. Pois bem: Elefante tem como tema exatamente um fenômeno que, apesar de inesgotável na sua variedade de peças, costuma dar margem às mais simplórias tentativas de explicação. E Van Sant foge do erro comum justamente se fingindo de cego, mas sem se julgar apto a obter uma conclusão. A câmera de Elefante penetra nos corredores de uma típica high-school americana sem a mínima profundidade de campo, somente focando o que está a alguns centímetros dela, precisando quase tocar os objetos que quer mostrar, como se estes precisassem ganhar relevo para virar imagem. Uma leitura em braile. A configuração do espaço é topológica, estrutura-se a partir de tecidos de contigüidade (morfológica, volumétrica, iconológica). Alcance mínimo do olhar e máximo do ouvido: o som de Elefante é expansivo, traz para um mesmo lugar ruídos e vozes de toda parte. Entra em jogo um princípio de ambiência, de captação do ritmo daquele espaço, com sua dinâmica de cores, formas, texturas, signos. A escola é apresentada como um organismo vivo em cujos vasos/corredores não cessa uma circulação de corpos, sendo impossível distinguir, a olho nu, vitaminas de toxinas (o filme identifica a impossibilidade de qualquer certeza através dos signos exteriores). Da mesma forma, a não fixação do ponto de vista (entendido aqui tanto como posição de onde se vê quanto como local onde se produz o discurso) exprime não só a recusa a uma perspectiva (o que implicaria distanciamento), mas também a afirmação da inviabilidade de uma reconstituição definitiva do episódio (o que alguns erros de continuidade, discretos porém propositais, insistem em nos lembrar quando da repetição de uma cena a partir de um novo ponto de vista). O desdobramento ético do conceito aplicado por Gus Van Sant à narrativa e à plástica de sua obra-prima é absolutamente exemplar.

Mas seu olhar-tato não precisou, como já foi dito, esperar até Elefante para entrar em ação. Garotos de Programa, Gênio Indomável, Encontrando Forrester: mesmo que a mise-en-scène desses filmes não explicite a expansão do dispositivo contida em Elefante, o simples fato do diretor nitidamente jogar a favor dos seus personagens já traduz uma postura acolhedora e carinhosa – e a forma convencional de se demonstrar carinho não envolve só um olhar enternecido, mas também o toque. Não é que Van Sant passe a mão pela cabeça de seus personagens independentemente da situação (basta assistir a Drugstore Cowboy, seu segundo filme, para já se convencer disso). Ele busca compreendê-los a todo momento, o que é bem diferente. E do processo de compreensão desponta o envolvimento afetivo, conferindo aquele tom de proximidade (no caso de Elefante, fisicamente expressa). Essa vontade de compreensão que se encaminha pelo não-distanciamento talvez seja o grande motor do cinema de Van Sant: dela resultou a magnífica composição de seu último filme.

Não causa espanto que o assunto "conhecimento" norteie os quatro filmes recentes de Van Sant sobre juventude. Bastante claro em Gênio Indomável e Encontrando Forrester, filmes sobre jovens ultratalentosos recebendo a orientação de um adulto – a velha relação mestre/discípulo, aqui incrementada pelo fato de espelhar também a relação cineasta/personagem –, o conhecimento se insinua ainda na estrutura de Gerry e Elefante. É sobre a tensão entre o que se conhece e o que se desconhece que a narrativa destes dois últimos filmes evolui. O mapa de um lugar, o caminho para casa, o norte geográfico, o gosto de um beijo, o estudante que estará na próxima curva do corredor, o dia seguinte: são todos objetos de (des)conhecimento. A geração que Van Sant retrata é tão desorientada quanto a retratada por Larry Clark, a diferença está na dinâmica que ele cria através do olhar, que não é necessariamente frontal, não afronta – pede, pelo contrário, cumplicidade rítmica, solicita a dinâmica dos corpos que filma para poder assimilá-la na própria composição do filme.

Algo que é interessante notar é que em Gênio Indomável e Encontrando Forrester o estabelecimento de diálogo está no centro da narrativa, as gerações se comunicam e ocorre a transformação, enquanto em Elefante este diálogo está em falta. Os adultos de Elefante mal aparecem, e quando o fazem é para reforçar o curto-circuito implantado na sua relação com os jovens, seja como falta de compreensão (o intransigente diretor da escola), seja como incapacidade de acolhimento (John é que precisa cuidar de seu pai alcoólatra). Acontece que o tema de Elefante realmente exige tal fratura, só faz sentido se a inclui (o que reaproxima Van Sant do abandono de Kids, filme do qual foi produtor). Em Elefante não entra em cena um rito de passagem, mas simplesmente uma passagem – de corpos, de estereótipos, de forças, de fumaça, de nuvens. Tudo passa: principalmente enquanto se é adolescente. E captar esse fluxo, ao invés de escolher um local de fixação do ponto de vista, pelo menos em se tratando de um episódio extremo como o do massacre em Columbine, até agora é o que se apresenta como a forma mais vigorosa de apreensão do jovem no cinema.

Luiz Carlos Oliveira Jr.