As obsessões de Kiju Yoshida



Eros + Massacre de Kiju Yoshida

Um prazer especial para qualquer amante do cinema foi acompanhar a retrospectiva (parcial) dos filmes de Kiju Yoshida durante a 27ª Mostra de São Paulo. Faltaram obras de importância inegável, como Purgatório Eróica ou A Mulher do Lago, mas pudemos (re)ver filmes importantes como Eros + Massacre ou As Termas de Akitsu. Importantes para quem quiser entender o que foi a Nouvelle Vague japonesa (Nuberu Bagu, para os íntimos). Além de Yoshida, podemos destacar Seijun Suzuki, Shohei Imamura e Nagisa Oshima como os principais nomes do período. As linhas que se seguem pretendem dar uma pequena noção do impacto de sua descoberta tardia por este que vos escreve, lembrando que não tive oportunidade de rever os filmes, tampouco de conhecer algo mais de sua obra. É uma análise apressada, concedo, mas não inútil, dada a raridade com que se encontra material escrito sobre o diretor.

Se o cinema do Japão, e o oriental como um todo, já revela uma preocupação incomum com a composição do quadro e com todo o aspecto formal de um filme, é natural que, em um período de profundas experiências formais como os anos 60, essa preocupação seja ainda maior. Os diretores buscavam novos enquadramentos, mais notadamente Suzuki, cujo filme mais comentado, A Marca do Assassino, radicaliza a concepção de que um quadro deve ser aproveitado completamente, tornando clara a limitação de uma tela de cinema - ao mesmo tempo que admitia que essa limitação podia ser ludibriada. Quando vemos um enquadramento "bizarro", com apenas a cabeça do ator em quadro num plano aberto, admite-se que o resto de seu corpo está fora de quadro, mas está lá, como se aparecesse além da tela do cinema. Não se trata de expor uma deficiência da arte, mas antes de sublinhar, assumir uma limitação que não é conceitual, mas puramente física. Yoshida foi o que melhor assimilou a influência do filme de Suzuki, que ficou anos sem poder filmar por conta das ousadas pesquisas estéticas de A Marca do Assassino, que o levaram a ser processado pela produtora Nikatsu.

Dos filmes de Yoshida que pudemos acompanhar é em Eros + Massacre que essa influência mostra-se mais trabalhada. Ao tratar de um escritor maldito do início do século passado, o libertário Sakae Osugi, Yoshida funde passado e presente retrabalhando as noções de plano como se quisesse desafiar toda pré-concepção de enquadramento adquirida dos primórdios até a época do filme. Em um plano belíssimo, vemos duas mulheres filmadas bem de longe no canto inferior direito da tela. O restante está envolto em sombras. É o aperfeiçoamento das pesquisas de Suzuki, ao mesmo tempo em que dá também uma piscadela para o cinema dos anos 10 e 20 (época de Osugi) e seus efeitos de escurecimento parcial do quadro. Se Imamura, Sugawa e, sobretudo, Oshima preocupavam-se mais em jogar com as regras do cinema narrativo, subvertendo-as sutilmente, Yoshida em Eros + Massacre e Golpe de Estado (para ficar em dois exemplares da retrospectiva) procurava a subversão no enquadramento, incomodando o gosto médio e comprovando que a experiência iniciada por Suzuki estava longe de ser bem digerida, o que de fato nunca foi.

Após Golpe de Estado, Yoshida paga caro pela ousadia e cai no ostracismo, sem conseguir meios de fazer um filme. Para além da aposta estética de Golpe de Estado, foi seu conteúdo político que incomodou os japoneses, menos pelo golpe retratado do que pela forma audaciosa e seca que Yoshida imprimiu ao filme. Vê-se por esse filme que a mise-en-scène de Yoshida atingia o ápice, chegando ao cinema-poesia tão sonhado pelos formalistas. Em meia hora de projeção é fácil desistir de acompanhar a trama hermética para nos deleitar com o rigor de sua direção. Rigor que impressiona tanto pela colocação da câmera quanto pela duração sempre exata das cenas. Difícil saber onde Yoshida iria chegar se continuasse com o caminho aberto por Suzuki.

Antes do intelectualismo de Eros, Yoshida encantou cinéfilos com o melodrama As Termas de Akitsu, onde os enquadramentos geniais foram prejudicados pela música invasiva, que terminava por esvaziar a capacidade intimista dos dramas do casal. Um suicídio é filmado com extremo rigor, mas embalado por uma melodia forte, bonita, mas que por isso mesmo deveria ser usada parcimoniosamente. Apesar de assemelhar-se mais ao cinema de qualidade francês, estilo (ou falta de) que precedeu a Nouvelle Vague e que tinha em René Clement e Claude Autant-Lara seus maiores expoentes, As Termas de Akitsu permanece um belo filme. Ainda melhor e mais pessoal é Histórias Escritas com Água, onde o incesto recebe um tratamento raro. É compreensível a lembrança do saudoso Walter Hugo Khouri, pelo uso da banda sonora. Lembra também Bergman, pela atmosfera freudiana e, sobretudo, Resnais, pela subordinação do tempo do filme ao fluxo de memória dos personagens. Com este filme percebe-se uma evolução estilística no cinema do diretor, que iria culminar nas pesquisas já mencionadas de Eros + Massacre.

Bergman é uma influência sentida também em Promessa Humana, filmado após o intervalo forçado pelo incômodo de Golpe de Estado, e onde trata novamente do suicídio. É um de seus filmes mais exasperantes. O diretor abandona as preocupações formais de sua juventude para cuidar de um tema polêmico com delicadeza de mestre. Dessa forma, a análise deve ser dissociada do contexto da Nouvelle Vague japonesa detendo-se em sua "nova" maneira de filmar, mais próxima de As Termas de Akitsu do que de Golpe de Estado.

Dois anos depois de Promessa Humana é lançado O Morro dos Ventos Uivantes, filme que, se visto superficialmente, parece ter sido realizado por outro diretor. Na verdade, Yoshida parte do romance de Emily Brontë para tratar de temas que lhe são caros como o incesto, a condição feminina e o suicídio como alternativa para a crise existencial, tendo como pano de fundo o Japão da Idade Média. É sem dúvida um de seus grandes filmes, com pelo menos uma dúzia de planos antológicos. É neste filme que se vê a melhor adequação do estilo barroco de Yoshida ao conteúdo operístico que por vezes se impõe em seus filmes. Estilo barroco que já estava presente em As Termas de Akitsu (que tem também um forte tom operístico) e, principalmente em Histórias Escritas com Água (de visual que trabalha muito bem a capacidade reflexiva, no sentido ótico, da água). Curiosamente, O Morro dos Ventos Uivantes deixou a injusta impressão de filme menor em muitos cinéfilos.

Assim como Mulheres no Espelho, o que é igualmente discutível. O filme foi acusado de derivativo e prolixo. Pode até ser derivativo, mas então toda a obra de Yoshida o é, já que ele mesmo admitiu que desde o início incorporou influências do moderno cinema europeu. O que interessa é que seus filmes são muito bem resolvidos, independente de serem derivativos ou não. Ao abordar o traumático bombardeio a Hiroshima, o filme investiga laços familiares perdidos pelo tempo adornando-os num jogo de espelhos maneirista, porém eficaz. O espelho quebrado é freqüentemente filmado, como metáfora das relações que se esvaíram e das fraturas causadas pela bomba atômica. É certo que o filme vai se construindo de forma lenta, com o tempo de uma cicatrização, mas negar a beleza de todos aqueles planos onde as três gerações são representadas seria limitar-se aos parâmetros analíticos ofensivos de Syd Field e companhia. A condição da mulher na sociedade japonesa, a maior obsessão de Yoshida, aliada à reflexão a respeito de Hiroshima, ganha aqui uma profundidade digna de quem passou anos maturando o tema. Penso que Mulheres no Espelho tem muito mais sentido para quem conhece bem a carreira de Yoshida, ou para quem pôde ver boa parte de seus filmes, tendo uma noção menos difusa dos percursos de um autor para a depuração de suas obsessões. Só uma revisão, entretanto, poderia concluir se Yoshida foi completamente bem-sucedido exorcizando-as, seja com a poesia formal de Eros e Golpe de Estado, ou no intimismo de Promessa Humana ou Mulheres no Espelho.

Sérgio Alpendre